Entre cisões e conchavos

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A história do esporte a motor é cheia de exemplos de decisões que mudaram os rumos de suas categorias.

Em diferentes momentos da história, dirigentes, esportivos ou não, se veem em situações em que uma decisão pode mudar o rumo de todo um negócio ou de uma categoria. Dando certo ou não, a escolha que esses dirigentes tomam, lições deverão ser aprendidas para a posteridade, havendo um maior embasamento para as próximas decisões. Ou não.

A história do esporte a motor é cheia de exemplos de decisões que mudaram para sempre o destino de categorias, mas as lições extraídas parecem não terem sido totalmente aprendidas ou relembradas, fazendo com que erros terríveis de avaliação fossem cometidos.

No dia 7 de fevereiro de 1981, era realizado o Grande Prêmio da África do Sul daquele ano, no que poderia ser a primeira corrida da história do WFMS (World Federation of Motor Sport). Essa entidade era presidida por Bernie Ecclestone, com total apoio dos demais representantes da FOCA (Formula One Constructors’ Association), na época, em guerra aberta com a FISA de Jean-Marie Balestre.

httpv://www.youtube.com/watch?v=ZtycwFc9oeQ

A FOCA foi criada em 1968 pelas equipes inglesas como forma de barganha, para que houvesse uma negociação mais justa entre as equipes e a CSI (percussora da FISA), com relação aos aspectos técnicos, e os promotores de corridas, no que tange a distribuição de dinheiro por participação das provas.

A guerra FISA-FOCA irrompeu por causa de um desentendimento técnico relativo às implicações do efeito-solo, que estava sendo usado desde o final dos anos 1970 pelas equipes inglesas para desafiar os motores turbo e Flat-12 de Renault, Ferrari e Alfa Romeo.

Devido às opções limitadas que tinham para escolher um motor fora o batido Cosworth V8, as equipes inglesas se concentravam no desenvolvimento dos chassis e com o surgimento do efeito-solo, times como Lotus e Williams cresceram exponencialmente, enquanto a Ferrari tinha sérias dificuldades em imitar os ingleses na nova tecnologia, principalmente devido ao largo motor Flat-12.

A Ferrari sempre foi aliada à CSI e, posteriormente, a FISA. Os italianos rapidamente fizeram um lobby na FISA, afirmando que as velocidades em curva estavam altas demais, causando um problema de segurança. Desde 1978, a presidência da FISA era ocupada por Jean-Marie Balestre, que fez o mesmo que os seus antecessores, dando razão a Ferrari e proibindo imediatamente o efeito-solo, para desespero das equipes inglesas e da FOCA, presidida por Bernie Ecclestone.

Durante o verão de 1980, os efeitos dessa guerra começaram a ficar mais presentes, com o quase cancelamento do Grande Prêmio da Espanha devido ao não pagamento de multas pelas equipes da FOCA, e a corrida só aconteceu devido ao comprometimento pessoal do Rei Juan Carlos na questão, mas essa prova não seria válida pelo campeonato daquele ano.

No final de 1980, com FISA e FOCA não se entendendo, foi criada a WFMS, para promover um novo Campeonato Mundial sem a chancela da FISA, tendo apenas as equipes da FOCA. A FISA publicou seu calendário próprio e contemplando apenas suas equipes leais (Ferrari, Renault, Alfa Romeo, Osella e Toleman).

Trinta e cinco anos atrás, as equipes da FOCA foram à Johanesburgo para o que seria a primeira corrida da nova categoria, mas o que se viu foi um grande fracasso. Apenas 19 carros foram inscritos e num final de semana chuvoso e vencido por Carlos Reutemann, com o pole Nelson Piquet em segundo e Elio de Angelis em terceiro. Pouco público foi à Kyalami, além da parca cobertura da imprensa.

Era uma clara advertência para a FOCA e a FISA: uma cisão da F1 seria extremamente danosa para o esporte. O público, e principalmente os patrocinadores, exigiam uma maior estabilidade.

A próxima corrida seria realizada em dois meses, em Long Beach. Isso deu tempo para que todos os envolvidos se reunissem e aparassem suas arestas, surgindo o Pacto da Concórdia, em que ficou definido que a FISA ficaria responsável pelas regras e pelos aspectos jurídicos da F1. O órgão não decretou o fim do carro-asa, mas acabou banindo o uso das saias laterais em favor da regra dos carros com altura de 6 centímetros – que seria brilhantemente driblada por Gordon Murray, da Brabham.

Enquanto isso, a FOCA ficaria responsável pela administração dos Grandes Prêmios, além dos direitos para administrar e negociar os direitos televisivos da F1, o que interessava em muito Bernie Ecclestone e fez dele o czar da categoria. Apesar de algumas rusgas (como o episódio em Ímola no ano seguinte), o Pacto da Concórdia sobrevive até hoje.

No dia 27 de janeiro de 1996, no circuito oval Walt Disney World, a Indy Racing League dava a largada para sua primeira corrida na história. A prova foi vencida pelo inexpressivo Buzz Calkins, que acabou sendo o primeiro campeão da categoria após apenas três corridas, empatado com o não menos obscuro Scott Sharp.

httpv://www.youtube.com/watch?v=yoz7kOm4fcw

As corridas americanas de monoposto já tinham sofrido uma cisão antes, quando as principais equipes da USAC decidiram criar a CART e formularam um campeonato a partir de 1978, claramente se inspirando na FOCA de Bernie Ecclestone.

Porém, a iniciativa da CART obteve êxito e o campeonato rapidamente se tornou um sucesso, suplantando o campeonato da USAC, que tinha forte apoio do Indianapolis Motor Speedway (IMS). Na época, faltaram nomes fortes na USAC e o presidente do IMS, Tony Hulman, havia falecido em 1977. E sobravam nomes fortes na CART, como Roger Penske, Pat Patrick e Carl Hass. Tanto que a USAC só dava as cartas quando a CART chegava à Indianápolis para disputar as 500 milhas.

Em 1990, o jovem Tony George se tornou presidente da IMS e tendo a principal corrida do calendário como trunfo, passou a exigir mais poder dentro da CART. A F-Indy vivia seu melhor momento, mas alguns problemas começaram a aparecer, principalmente com o aumento de custo da categoria.

No começo da década de 1990, um jovem e talentoso piloto americano despontou nas categorias de Sprint Cars e sonhava em correr em Indianápolis, algo comum entre os pilotos ianques. Seu nome era Jeff Gordon. Ele e seu padrasto, John Bickford, foram procurar um lugar na CART para que Gordon pudesse realizar o seu sonho:

– Jeff e eu fomos de porta em porta em todas as equipes da CART no início de 1990, com o seu impecável currículo em SprintCars e a resposta de todos foi: Quanto dinheiro você pode trazer? Bem, nós não temos dinheiro, então tivemos as portas batidas na nossa cara. Pilotos com muito menos talento do que Jeff estavam recebendo chances, porque eles tinham apoio financeiro. Então nós fomos para NASCAR, onde o talento ainda era o fator mais importante na obtenção de uma chance.

George viu nisso um exemplo de que algo estava errado na CART, além da constante internacionalização da categoria e a saída gradual de circuitos ovais do calendário. Em 1994, George criou a IRL centralizada nas 500 Milhas de Indianápolis, só com ovais e início previsto para 1996.

O resultado foi devastador para ambos os lados logo de cara, dividindo patrocinadores e torcedores. A CART inicialmente ficou com os maiores nomes – incluindo Al Unser Jr. e Michael Andretti e equipes como Penske e Chip Ganassi – enquanto a IRL manteve a maior corrida – a Indy 500.

Ao contrário do movimento no final dos anos 1970, a cisão entre CART e IRL foi desastrosa para o automobilismo americano de monoposto. Os primeiros anos da IRL foram marcados por situações embaraçosas e a categoria tinha um quê de campeonato pirata e, muitas vezes, mambembe.

O piloto Jim Guthrie venceu uma corrida em Phoenix em 1997 após comprar seu carro semanas antes da prova (!) ao hipotecar (!!) sua casa pela segunda vez (!!!). E Guthrie só não perdeu a sua casa, pois ganhou o prêmio de Novato do Ano e a pagou com o prêmio (!!!!).

Não raro, havia pilotos amadores disputando as 500 Milhas de Indianápolis, enquanto os melhores pilotos dos EUA eram impedidos de correr na tradicional corrida em Indiana. A partir do ano 2000, equipes da CART passaram a disputar as 500 Milhas de Indianápolis e a distância entre o profissionalismo da Penske, Chip Ganassi e Rahal sobre as equipes da IRL era brutal, com domínio de Montoya em 2000 e da Penske em 2001.

Em 2002, a Penske resolveu sair da CART e ir para a IRL devido à pressão da Philip Morris. No ano seguinte, a Chip Ganassi e a então Andretti-Green fizeram o mesmo. E a CART foi se esvaindo até falir no final de 2007, com as equipes sobreviventes sendo absorvidas à IRL, que a essa altura, corria em vários circuitos mistos e de rua, além de ter vários pilotos estrangeiros – justamente o que combatia em seu começo.

Tony George não teve a visão (ou seria juízo) que os dirigentes da FISA e da FOCA tiveram quinze anos antes. Se a F1 foi salva com o raro bom senso dos seus dirigentes trinta e cinco anos atrás, George demoliu a categoria que era a segunda mais popular do mundo.

Porém, há detalhes não confirmados de que a cisão da Indy teve o dedo de Ecclestone. Incomodado com a crescente popularidade da Indy e sabendo o que uma cisão é capaz de fazer com uma categoria, Bernie teria incentivado George a criar a IRL, incluindo a premissa de que a categoria voltasse às suas raízes americanas e não pensasse em se internacionalizar, um dos objetivos do então presidente da CART, Andrew Craig.

Ou seria maldade demais pensar que a volta do GP dos EUA à Indianápolis em 2000 teria alguma coisa a ver com conchavos entre Ecclestone e George…?

Um abraço.

JC Viana

JC Viana
JC Viana
Engenheiro Mecânico, vê corridas desde que se entende por gente. Escreve sobre F1 no tempo livre e torce pelo Ceará Sporting Club em tempo integral.

10 Comments

  1. Robinson Araujo disse:

    Colegas.

    Pelo que me lembro foi neste contexto que o Cheever venceu em Indy 500. A categoria realmente esteve nivelada por baixo naqueles tempos e atualmente tudo tende a se nivelar ao nível do politicamente correto e pouco competitivo, principalmente na F1.

  2. Mário Salustiano disse:

    JC

    Coluna espetacular, as ilações cronológica dos fatos estão perfeitas

    parabéns

    Mário

  3. Mauro Santana disse:

    E pra mim, a pá de cal que a Indy enfrenta, são estes carros extremamente e igualmente bizarros.

    Isso é inadmissível!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  4. Antônio disse:

    Tony George tentou consertar algo que não estava quebrado e absolutamente todos os aspectos que ele bradava como prioridades para criação da IRL foram caindo por terra um a um com o passar dos anos e no final das contas a categoria hoje se parece mais com uma versão requentada da antiga CART do que a categoria que voltaria as origens com corridas só em ovais, de baixo custo, que deveria ser repleta de pilotos americanos oriundos dos sprint cars . O máximo que conseguiu foi relegar toda a cena dos Indycars a um nível muito mais baixo do que tínhamos durante os anos de ouro da era CART.

  5. Fernando Marques disse:

    JC,

    infelizmente a politica e poder andam juntos lado a lado.
    Um dia um brasileiro que tinha se aposentado da Formula 1, que tinha sido bi-campeão mundial, resolveu voltar as pistas na Formula Indy. Ele venceu, foi campeão, venceu as 500 Milhas e mostrou ao mundo que o auge da carreira de um piloto de corridas não precisava estar ligado diretamente ao seu sucesso na Formula 1. Ele quebrou barreiras e a partir daí a Formula Indy passou a ser vista com outros olhos pelo mundo do automobilismo mundial. Não preciso nem dizer o nome desse piloto brasileiro.que saiu falido da Formula 1 e voltou a ficar rico na Indy.
    Isso deve ter incomodado muito a Velha Raposa

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  6. Mauro Santana disse:

    Belo texto JC!

    Li certa vez, acho que num texto do Edu, que a reforma de Interlagos em 1990 teve o dedinho de merda da velha Raposa, e que tinha como o maior interesse anular o anel externo do templo, pois temia que naquela época a Indy pudesse correr no Brasil.

    Infelizmente, ele conseguiu mutilar a pista paulistana, mas, porém, 6 anos mais tarde a Indy faria sua primeira prova na história no saudoso autódromo de Jacarepaguá.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-Pr

    • João Carlos Viana disse:

      Obrigado Mauro,

      Quando a Indy foi correr em São Paulo, num circuito de rua, Ecclestone fez questão de dizer que não queria uma prova da categoria americana em Interlagos, lugar da F1.

      • Marcelo C.Souza disse:

        Parabéns pela excelente coluna JC !!!

        É lamentável mesmo o rumo que o automobilismo norte-americano de open-wheels tomou a partir de 1996, já que, se este episódio não tivesse ocorrido, a Fórmula Indy provavelmente teria “destruído” a Fórmula 1 nos dias de hoje, fazendo o Tio Bernie ter ataques de fúria (ou até mesmo infartar de vez).

        Para mim, a antiga e saudosa CART sempre foi e sempre será a F-Indy verdadeira, e a IRL continuará sendo a categoria pirata e medíocre que cresceu às custas dela.

        Um forte abraço !!!!!

        Marcelo C.Souza
        Amargosa-BA

  7. Flaviz Guerra disse:

    Jc, em 2010 tive a chance de andar em IRL similar a esse do Guthrie no Oval da Disney. Era completamente amador, a construção do carro e também da pista. Parecia um oval “da várzea”!

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