Le Mans 1955, 60 anos depois

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Ontem (11) se completaram 60 anos das 24 Horas de Le Mans de 1955, que ficou marcada por aquilo que consideramos hoje o maior acidente da história do automobilismo.

Nos anos 50, a Europa ainda se refazia dos estragos da Segunda Guerra mundial. Mas a depressão do pós-guerra, já havia passado. O continente vivia um momento de prosperidade econômica. Pela primeira vez, a juventude estava ganhando voz ativa, com sua rebeldia. E um dos passatempos para essa classe em expansão eram as corridas de automóveis.

As fábricas, interessadas nesse nicho participavam cada vez mais ativamente das principais corridas da época, como o recém-criado campeonato mundial de Fórmula 1 e corridas de longa duração como a Mille Miglia na Itália e as 24 Horas de Le Mans, na França.

Idealizada em 1922 em um circuito que usaria o pequeno circuito Bugatti e as principais estradas das cidades em volta, as 24 Horas de Le Mans foi concebida para ser uma prova de resistência, que contribuísse para a evolução do progresso técnico e favorecer o desenvolvimento do automóvel. 24 horas correndo em Le Mans, gerava mais quilometragem que uma temporada inteira de Fórmula 1 da época e uma exposição sem igual para o vencedor. Era como “vencer no domingo, e vender na segunda-feira”.

Em 1955 a competição estava mais acirrada do que de costume. A volta da Mercedes-Benz às competições no ano anterior causou alvoroço. Depois de serem destruídos na Segunda Guerra, os alemães voltaram com uma fábrica novinha em folha e carros de última geração. O modelo W196 venceu na Fórmula 1 em seu primeiro ano e agora chegavam à Le Mans com o também revolucionário 300 SLR, de comando de válvulas desmodrômico e injeção direta de combustível.

Para enfrentar o poderio alemão apenas uma fábrica era capaz de fazê-lo. Um pequeno grupo de engenheiros britânicos: a Jaguar. Nos anos 50, a montadora do felino era ainda uma pequena fábrica sediada em Conventry, muito menor que a Mercedes. Mas estava cercada de mentes criativas. Já havia vencido duas vezes a prova de resistência, em 1952 e 1953, com o épico Jaguar “D Type”. Um carro de corrida leve, aerodinâmico e igualmente inovador.

Ao se encontrarem em Le Mans, britânicos e alemães levavam a rivalidade para fora da pista. Fazia apenas 10 anos que a Segunda Guerra Mundial havia acabado e sentimentos inflamados dos dois lados ainda eram bem latentes. Não era apenas Jaguar contra Mercedes. Eles encaravam como Inglaterra contra Alemanha, em plena França, outrora ocupada pelos nazistas. Os alemães querendo mostrar a força de seu renascimento e os ingleses querendo provar que ainda eram superiores.

As duas equipes levaram um verdadeiro arsenal para a pista. Enquanto a maioria dos times competia apenas com um carro, Jaguar e Mercedes levaram três. Cada um deles, com uma dupla de pilotos. Na época ainda não era costume (e obrigação) correr em trio. A Jaguar só levou pilotos britânicos, liderados pelo melhor piloto inglês da época, Mike Hawthorn e seu companheiro Ivor Bueb.

A Mercedes por outro lado, contava com o maior piloto de todos os tempos: Juan Manuel Fangio. Mas em um ato de conciliação com a Inglaterra eles contavam também com o jovem promissor britânico Stirling Moss, então com 25 anos. Também estava em um de seus carros um herói francês. Pierre Levegh, 50 anos de idade, o piloto mais velho da corrida, era chamado por seus colegas como “o bispo”. Havia se tornado ídolo quando quase venceu a prova em 1952, correndo 22 horas ininterruptamente!

Entusiasmado por esse “clima de guerra”, o público lotou as superintendências do Circuit de La Sarthe. Quando a prova teve início, mais de 200 mil pessoas estavam presentes, a maioria delas na estreita reta dos boxes, onde apenas montes de terra, e fardos de feno separavam as pessoas dos carros.

A largada aconteceu ao estilo da época. Os pilotos ficavam de um lado da pista e corriam em direção aos seus carros desligados do outro lado. Fangio parte mal. O argentino ao pular para dentro do Mercedes enfia a calça na alavanca de câmbio! Fica para trás, assim como Hawthorn. Quem liderava as primeiras voltas era a Ferrari de Eugenio Castellotti. Mas não havia dúvidas que essa seria uma batalha particular dos dois titãs. Em pouco menos de uma hora eles já eram primeiro e segundo, competindo tão ferozmente quanto em uma Sprint Race.

Parte da arte de ser um piloto, é quase ter um senso de superioridade e exuberância, para dizer aos outros pilotos: ‘não brinque comigo que sou o maior cão aqui’.” (Martin Short)

O Mercedes 300 SLR e o Jaguar D Type eram veículos muito diferentes e ainda assim ambos formidáveis. O carro germânico era feito de magnésio, de aspecto pesadão, mas sólido. Tinha 310 cavalos de potência, e andava mais rápido nas retas. O britânico era menos potente, com 290 cv de força. Mas o seu maior trunfo eram a maior leveza e os então revolucionários freios a disco nas quatro rodas, possibilitando freadas mais fortes e próximas das curvas que seu rival que usava enormes e pesados tambores.

Com duas horas de prova os dois corriam separados por poucos metros, e já haviam se ultrapassado uma dúzia de vezes. Hawthorn estava dando tudo de si, tentando impedir a vitória da Mercedes. “Maldição. Por que um carro alemão deve vencer um carro inglês?” dizia. Naquele ritmo tão intenso, nenhum dos dois carros resistiria até o final. A dúvida era, qual deles seria o primeiro a quebrar.

Pierre Levegh, no outro Mercedes vinha quase uma volta atrás. Hawthorn e Fangio se preparavam para colocar uma volta no francês e em Lance Macklin que vinha competindo em outra categoria com seu pequeno Austin-Healey. Ai que aconteceu o acidente.

Um filme de terror

Eu havia empurrado a minha mulher para o chão então todos os pedaços do carro passaram por cima de nós. Se eu não tivesse feito isso, não estaria aqui hoje.” (espectador)

Hawthorn havia acabado de superar Macklin e Fangio vinha atrás dos dois e de Levegh. Quando o Jaguar subitamente diminuiu a velocidade para parar nos boxes, o Austin-Healey atrás foi pego de surpresa com a forte desaceleração sendo obrigado a frear de repente e tirar para a esquerda para não bater. Mas ao fazer isso, não conseguiu impedir de ficar na frente de Levegh que vinha muito mais rápido pela esquerda. O Mercedes bateu na traseira de Macklin a mais de 250 km/h, decolando em direção à multidão em frente à reta dos boxes.

Colidindo com uma um túnel de concreto que dava acesso à pista, o Mercedes 300 SLR se dividiu em várias partes, carro e piloto para um lado e motor para outro, tudo em cima das pessoas. Os segundos que se seguiram são de puro horror. Havia gente esquartejada por todos os lados. Um incêndio havia começado e se expandido com as ligas de magnésio do carro, altamente inflamáveis. Agora sim, o cenário lembrava muito um campo de batalha, com feridos demais para os míseros 25 médicos disponíveis.

Eu vi o motor voando. Caiu em cima da multidão. As pessoas foram divididas em dois pedaços. Vi um corpo no chão, o binóculo ainda em volta do pescoço, mas decapitado.” (espectador)

O acidente provocou uma reação em cadeia. O público em pânico passou a correr em direção aos portões de saída, e muitas pessoas morreram pisoteadas. Mesmo com a reta de chegada mergulhada no caos, o diretor da prova Charles Faroux preferiu manter a corrida em andamento, acreditando que se tudo parasse o fluxo de pessoas nas estradas de acesso, iria tornar a remoção dos feridos muito mais lenta do que já estava. Assim, o socorro às vítimas acontecia ao mesmo tempo em que carros ainda competiam, fazendo paradas para troca de pneus, pilotos e reabastecimento.

A Mercedes ficou ainda algum tempo competindo, na liderança com Fangio e Moss. Mas perto da meia-noite Alfred Neubauer, o chefe de equipe, ordenou que Moss voltasse aos boxes em luto pelos mortos. Em seguida, o alemão foi à Jaguar sugerindo que fizessem o mesmo. Mas os britânicos ficaram na pista até o final. Em uma decisão ainda polêmica, o chefe da equipe mandou o aviso à Hawthorn. “Pode diminuir o ritmo que a Mercedes está saindo” disse.

A Jaguar conseguiu a sua esperada vitória sobre a Mercedes e a Alemanha. A vitória acabou sendo comemorada por Hawthorn num ato que os franceses consideraram como indigno. Principalmente porque o britânico é considerado um dos pilares causadores do acidente. Envolvido em seu afã por vencer Fangio, ele não esperou atrás de Macklin até ir aos boxes, passando à frente dele, para diminuir bruscamente em seu caminho. Um simples erro de julgamento pode ter causado a morte de mais de 100 pessoas.

No entanto, algumas pessoas testemunharam o que teria sido um “ataque histérico” do inglês, minutos após o acidente. Convencido de que teria sido um erro seu, Hawthorn não queria competir novamente. Ele precisou ser consolado por amigos para voltar ao carro.

De um jeito ou de outro, as consequências vieram para todos. A Suíça baniu as corridas de automóveis em seu território, decisão que sou foi revogada apenas há pouco tempo. A Mercedes se retirou quase imediatamente do automobilismo, permanecendo afastada, por mais de 30 anos, assim como a Jaguar.

Fangio nunca mais pisou em Le Mans e parou de correr em 1958, ano que Hawthorn se tornara o primeiro campeão britânico de Fórmula 1. Após conquistar o título, ele anunciou imediatamente sua aposentadoria. Mas apenas dois meses depois, encontraria a morte em um acidente rodoviário com seu Jaguar na Inglaterra, colidindo ironicamente em um Mercedes.

Alguns críticos consideram a tragédia de Le Mans ’55 como o acidente do esporte a motor definitivo. Aquele que separou uma era de outra e que soou o alarme a respeito dos perigos das corridas e da falta de segurança de carros e autódromos. O ponto de partida para profundas mudanças no esporte que viria nos anos seguintes. Você pode ler mais sobre essa fatídica corrida nesta coluna do nosso “mestre Jedi”, Edu Correa.

Bom final de semana, e boa maratona!

Lucas Carioli
Lucas Carioli
Publicitário de formação, mas jornalista de coração. Sua primeira grande lembrança da F1 é o acidente de Gerhard Berger em Imola 1989.

3 Comments

  1. Lucas dos Santos disse:

    E lá vamos nós, mais uma vez “ver a história acontecendo diante de nossos olhos”.

    A “estratégia” para me manter acordado assistindo já está montada. Agora é torcer para que ela funcione e que nada atrapalhe, assim como foi nos últimos três anos!

  2. Mauro Santana disse:

    Belo Texto Lucas!

    Realmente Le Mans é mágico, e a edição de 1955 foi mesmo terrível.

    Força ao Lucas di Grassi, e que seja uma batalha épica entre Porsche x Toyota x Audi.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  3. Fernando Marques disse:

    A historia da “24 Horas de Le Mans” é repleto de momentos historicos, vitorias e pesadelos … certamente o maior dos pesadelos aconteceu em 1955 … e para nós brasileiros quem sabe um inédito brasileiro vencedor em 2015 …
    Boa sorte a Lucas di Grassi e a seu Audi
    A FoxSport transmite a largada no sábado e a chegada no domingo …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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