Acerte suas contas com a história

Everest
30/09/2015
Fecha ou não fecha?
05/10/2015

Um carro esteticamente lindo prevalece sobre as questões de segurança?

Até a metade da década de 1990, não havia uma lei que obrigasse os ocupantes de um veículo a usar os cintos de segurança no Brasil. Coube ao então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, introduzir a lei 11.659 que tornava obrigatório o uso do cinto pelo motorista e pelos passageiros.

Pode parecer absurdo, mas houve quem se manifestasse contra a medida. E mais incrível, ainda, o fato de que o argumento preferido pelos detratores do cinto apoiava-se em uma falácia de segurança. Era comum ouvi-los dizer que, no caso de um acidente em que o carro se incendiasse, os ocupantes teriam dificuldade em se soltar e morreriam carbonizados. Como se, em primeiro lugar, um acidente que resulta em fogo já não fosse grave o suficiente para machucar, e muito, motorista e passageiros. E, em segundo lugar, como se estes estivessem presos não a cintos de segurança, mas àquelas correntes que os mágicos usam para se atar no fundo de um tanque de água, em espetáculos de ilusionismo.

Nas primeiras décadas da indústria automotiva, os cintos de segurança eram equipamentos bem diferentes dos atuais. Não eram compostos pelas duas faixas que promovem apoio em três pontos do tronco do ocupante. Nem eram retráteis e, quem viveu a época e forçar a memória, há de lembrar que alguns modelos tinham uma espécie de cestinha na coluna do carro, onde o cinto era guardado, enroladinho em si mesmo. Usar cinto de segurança era um gesto quase exótico. Várias vezes, já no começo dos anos 1990, eu entrei em táxis, afivelei o cinto e ouvi do motorista a mesma reação: “Fica tranquila, eu não vou correr.”

Pobre cinto. Estava ali, ninguém usava, mas estava. No máximo, algumas pessoas associavam sua necessidade às viagens em estrada, pela lógica de que maior velocidade poderia resultar em maiores chances de acidentes. Nessa altura, ninguém se perguntava se um carro tinha ou não que conter um cinto de segurança. Mas isso também não foi sempre assim, o que nos leva até a década de 1940 e a um nome – Preston Tucker.

Tucker virou personagem de filme de Hollywood, pintado como um idealista. Não era bem isso. Típico self made man americano, começou a vida como vendedor de carros em uma concessionária. Não demorou muito a se tornar proprietário de uma revendedora de automóveis e, em 1940, inaugurou a Tucker Aviation Corporation, fornecendo material bélico para o governo. Quando a guerra terminou, Tucker já estava rico e inquietou-se com a perspectiva de ver sua fonte de renda secar (tolinho… como se seu país não fosse fazer da guerra em território alheio uma robusta fonte de renda nos anos subsequentes).

Com sua estrutura industrial consolidada, arriscou-se a entrar na proeminente indústria automotiva, projetando um carro revolucionário, tanto em termos de visual e aerodinâmica como, principalmente, de segurança. O Tucker Torpedo era uma revolução em termos de projeto. Seu para-brisa ficava sobre uma espuma de borracha, permitindo que saltasse para fora em caso de uma batida. O interior do veículo era acolchoado e as maçanetas internas, voltadas para dentro das portas, para evitar que se tornassem objetos potencialmente perigosos também no caso de colisões. Ah, claro: tinha cintos de segurança, outra inovação para a época.

O filme de Hollywood mostra como o lobby das três grandes montadoras dos EUA – Ford, Chrysler e GM – atuou para minar os planos de Tucker junto às autoridades do país. Sabe como é… Empresas financiam candidatos, que são eleitos e trabalham para retribuir a quem neles investiu. Não é que Tucker fosse tão ameaçador assim do ponto de vista da sua própria produção, já que ele mesmo tinha uma indústria pequena. O pânico das montadoras estava no conceito introduzido por Tucker, que aumentava a segurança e, naturalmente, os custos de produção de um veículo.

A campanha de difamação de Tucker tinha como um de seus pilares – veja só – uma falácia de segurança. Alegava-se que, se seu Torpedo “precisava” de tantos itens agregados, como o cinto de segurança, então se tratava de um carro potencialmente… inseguro! O governo dos Estados Unidos tentou, a todo modo, incriminar o arrojado industrial. Pintavam-no como uma fraude, que teria enganado acionistas e revendedores, mas nunca se provou nada contra ele. No entanto, Tucker não resistiu à pressão e encerrou sua aventura no segmento automotivo em 1949. Apenas 51 unidades do Torpedo foram produzidas e as poucas que restaram se tornaram peças de coleção. Tucker morreu em 1956, aos 53 anos.

Não viveu para presenciar seus conceitos serem, quase integralmente, incorporados à produção de veículos. Como a motivação principal pelas grandes mudanças é sempre o dinheiro, é de se supor que as grandes montadoras começaram a equipar seus veículos com itens de segurança depois de enfrentarem processos seguidos pela morte de passageiros, ou mesmo de receber pressão oficial pelos custos (claro…) ocasionados à saúde pública, por causa de acidentes. Ninguém supõe, hoje, que um carro possa sair de fábrica sem cinto de segurança, como ninguém estranha atualmente a existência de uma lei que obrigue os ocupantes a usá-lo.

Mas muita gente estranha à beça a ideia de fechar os cockpits dos carros de competição, para proteger a vida dos pilotos. A discussão voltou à tona depois de duas mortes recentes – a de Jules Bianchi, na Fórmula 1, e a de Justin Wilson, na Indy. Em acidentes e circunstâncias totalmente diferentes, ambos foram vítimas de ferimentos na cabeça, o tipo de acidente mais comum no automobilismo. Nos debates sobre dotar ou não o cockpit de uma espécie de bolha acima da cabeça do piloto, o argumento mais recorrente tem sido a tradição. “Ora, se for cockpit fechado, não é mais Fórmula 1.”

Argumento discutível. A principal diferença entre um monoposto – os veículos de “fórmula” – e os outros carros de competição está na exposição das rodas, não na conformação do cockpit. Isso, sim, influencia a aerodinâmica e o estilo de condução do carro. Estar envolto em uma bolha resistente, dentro de um monoposto, é completamente diferente de estar em um habitáculo de um veículo dotado de carenagem que cobre tudo, inclusive as rodas.

Além disso, advogar uma condição baseado na definição da palavra é plantar-se no tempo e no espaço, como árvore centenária. Na minha casa, moramos eu e meu filho. Bem perto de mim, uma avó e um neto dividem a mesma residência. Não muito longe, um irmão e uma irmã criam juntos a filha dela. Todos os arranjos são família, portanto, se família é algo diferente no dicionário, mude-se o dicionário, adequando-o à vida real.

A Fórmula 1 passou dos 60 anos de idade correndo com carros de cockpit aberto, o que não quer dizer que não tenha se modificado ao longo do tempo. Mudou muito, em alguns casos para pior, mas em termos de segurança, a preocupação com a manutenção da vida é um fato inegável. Quem assistiu ao filme “Rush – No limite da emoção” deve se lembrar de uma cena, logo no início, quando Niki Lauda comenta que ser piloto é encarar uma profissão na qual pelo menos dois colegas morrem por ano. Anos 1970, carros lindos, pilotos destemidos, vários deles colhidos em acidentes fatais.

É difícil aceitar que o meu prazer pessoal, de ver um carro esteticamente lindo, possa estar acima da preocupação institucional com a segurança de um ser humano. O pai de Jules Bianchi talvez gostasse mais de carros com cockpits abertos, mas declarou, dias antes do GP do Japão, que acharia uma boa ideia fechá-los, ainda que a lesão cerebral de Bianchi dificilmente tivesse sido evitada com esse recurso. Eventualmente, nem a lesão de Justin Wilson. Mas muito provavelmente, a de Dan Wheldon seria e, quem sabe, a de Ayrton Senna também.

Mais do que conjecturar o que teria acontecido, parece lógico alinhar-se com a ideia de pelo menos discutir o tema de forma mais técnica, e menos embasada na tradição. Porque parece inexorável que soluções como esta venham, e eu detestaria acertar minhas contas com a história sabendo que marchei do lado contrário do que, um dia, será senso comum.

Alessandra Alves
Alessandra Alves
Editora da LetraDelta e comentarista na Rádio Bandeirantes desde 2008. Acompanha automobilismo desde 83, embalada pelo bi de Piquet e pelo título de Senna na F3.

11 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Pois é Fabiano, e agora vem uma lei que torna opcional o porte de extintores de incêndios nos veículos.

    Uma piada!!!

    Abraço!

    Mauro Santana

  2. Fernando Marques disse:

    Fabiano,

    concordo plenamente com tudo com que você disse … a segurança deve ser sempre uma iniciativa do usuário … mas falta uma boa educação … já que se paga para fazer curso para tirar a carteira de motorista, este deveria ter também o mínimo de excelência …

    Fernando Marques

  3. Fabiano Bastos disse:

    Parabéns Alessandra pela coragem de assumir essa postura de vanguarda!
    Não é fácil lutar contra o comodismo tão natural ao ser humano.

  4. wladimir duarte sales disse:

    Caro Fernando, me permite um adendo: o argumento da frota de automóveis ainda pequena nos anos 50, 60 e 70 é válido no Brasil. Nos EUA os anos 50 e 60 viram o crescimento exponencial do consumismo, inclusive na indústria automotiva. o mustang já vendia meio milhão de unidades por ano, assim como o maverick, os dodge e plymouth e o ícone corvette. Se não empatavam chegavam perto. Não havia comparação possível de mercado automotivo entre EUA e Brasil até meados do século 21. Quanto à aparência dos formulas 1 concordo que os de hoje são horríveis. Ainda mais pela maldita padronização tacanha inventada pela federação! Nos anos 70 havia carros exóticos e até feios ( alguns deles como o Ligier de 1976 não eram modelos de beleza mas eram competitivos). Mas como esquecer os belíssimos ferrari 312t2; lotus 72, 78 e 79; McLaren m23 (o de 76 com aquela entrada de ar baixa e fluída) e Shadow dn8?

  5. Arawak Deserter disse:

    Aviões caça possuem um canopy que resiste a impactos com pássaros bastante grandes. E navegam a velocidades supersônicas, o que eleva exponencialmente as consequências de um acidente dessa natureza. Portanto, a tecnologia para construção do canopy de um F-1 / F-Indy já está mais do que na mão. Tradição? Ora, antigamente se andava de bonde em São Paulo, hoje não mais. Quando eu nasci a moeda era Cruzeiro Novo, hoje não mais… Antigamente havia cigarros patrocinando a F-1, hoje não mais. Antigamente a Ponte Aérea Rio-São Paulo era totalmente operada com aviões turbo-hélice (os inesquecíveis Electra II), hoje não mais. Portanto, nada mais natural do que acrescentar a essa lista a frase “antigamente os cockpitis eram abertos e perigosos, hoje não mais”… 🙂

  6. Fernando Marques disse:

    Alessandra,

    a questão do uso do cinto de segurança e o seu uso obrigatório a meu ver está diretamente relacionado ao maior numero de carros que hoje transitam se comparado aos anos 50,60 e 70 … quanto mais carros mais acidentes … e obviamente mais atenção com itens de segurança … que salvam vidas … o que é mais importante …


    Já a questão da Formula 1 introduzir o uso da bolha e assim fechar o cockpit realmente deve ser debatido sob o lado técnico e não pelo fato de há 60 anos o cockpit de um monoposto ser aberto. Primeiro fato é mostrar se ele realmente pode ser a melhor solução para salvaguardar a cabeças dos pilotos … e segundo se ele realmente poderá ser seguro em todos os sentidos … o lado estético, se pensar bem, pouco importa ou importará … aos atuais monopostos estão muito mais feios que os dos anos 60,70 e 80 … seus projetistas estão muito mais empenhados na eficiência aerodinâmica de seus projetos do que com que a estética do carro em si … os Formula 1 nunca foram tão feios como os destes últimos 10 anos …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Mauro Santana disse:

      Perfeito Fernando!!

      E digo mais, hoje em dia cada vez mais novos motoristas compram carros quando ainda estão nas auto escolas, e com prática zero, saem dirigindo aos montes pelas cidades cada vez mais inchadas.

      Ou seja, os riscos são muito mais elevados.

      Abraço

      Mauro Santana
      Curitiba-PR

      • Leandro disse:

        Mauro, muitos destes ganham carros antes das habilitações, mas eu acredito na velha história do nadador: os melhores morrem afogados, acho que o mesmo ocorre com acidentes de carro, quanto mais seguro, mais rápido a pessoa guia, aí é que está o problema. Quem está começando a dirigir agora raramente corre, acidente à 40km/h é diferente de um a 60 ou 80. E outra em relação a questão de ter prática: como alguém consegue ter prática sem dirigir (praticar)?

      • Fernando Marques disse:

        Mauro,

        ainda mais agora que a tendência atual é de a cada dia ter mais carros com cambio automático nas ruas .. o que fica mole para qualquer braço duro por o carro em movimento …
        E tem mais um porem … as Auto Escolas apenas ensinam seus alunos a passarem no exame prático … ensinar mesmo a dirigir nem pensar …

        Fernando Marques
        Niterói RJ

        • Fabiano Bastos disse:

          Fernando,
          O que você conta não é novidade. Sempre foi assim. De novo, recente, apenas o fato de que somos obrigados a pagar pelas “aulas”. Antigamente era possível apenas realizar o exame.
          Sou bombeiro, trabalho com resgate veicular, desencarceramento de vítimas presas em ferragens, e acho realmente uma pena que os governos tenham que obrigar as pessoas a utilizar equipamentos de segurança em seus veículos. A cobrança por estes equipamentos deveria partir do próprio usuário dos automóveis, mas como isto nem sempre ocorre (principalmente no Brasil), e como a conta da carnificina do trânsito é muito pesada, os governos acabam tendo que obrigar alguns usuários a cuidar da própria segurança.

  7. Rafael Friedrich disse:

    No meu passat iraque 1980, todo mundo estranhava e perguntava por que eu usava cinto.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *