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No automobilismo, os principais atores são, indiscutivelmente, os pilotos e as máquinas. As pistas, no entanto, são o grande cenários dessas batalhas.

Retomando nossa viagem pelos circuitos da F1, os primeiros anos da década de 1980 viram uma extensão do final dos anos de 1970. As cercas de proteção ainda eram usadas (apesar de odiadas pelos pilotos), mas o uso de pneus velhos para a proteção vinha aumentando desde o primeiro ano de Long Beach na categoria, em 1976. Em 1981 eles passaram a ser obrigatórios em locais considerados perigosos, assim como o centro médico permanente, que passou a ser obrigatório em 1980, após ferrenha luta dos pilotos e do Doutor Sid Watkins, médico oficial da F1 desde o final dos anos de 1970. Em 1984, a FIA passou a recomendar a substituição dos guard-rails por muros de concretos.

1986 foi um ano chave para a categoria. A estréia de pistas como Hungaroring na Hungria, e Jerez na Espanha, mostrava um novo padrão a ser seguido. Pistas mais curtas, com muitas curvas fechadas e cotovelos, eram uma nova tendência e acabavam proporcionando algumas provas de grande disputa entre os competidores. Traçados de média velocidade, como Estoril em Portugal, o retornado Hermanos Rodríguez no México ou o traçado de média/alta de Imola também constituíam muito da identidade da década. 1986 também viu o adeus das cercas de proteção, proibidas um ano antes, (sendo a pista de Jacarepaguá uma das últimas a abolir o ultrapassado e perigoso método de segurança) e a adesão definitiva dos pneus de proteção.

A história se repetia e pistas consideradas padrões de segurança para a década de 1970, como Österreichring, eram eliminadas do calendário por não conseguirem se adequar aos novos padrões de segurança. A imagem da Minardi de Alessandro Nannini entrando num matagal na corrida da Áustria seria totalmente aceitável em 1976, mas era um completo contraste para o ano de 1986, quando modernas máquinas de motores turbo eram vigiadas por cada câmera de TV, assistidas por milhões de pessoas ao redor do mundo.

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httpv://www.youtube.com/watch?v=RsrhuZxy9_U

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Até mesmo o então perfeito Paul Ricard sofria na década de 1980. Após a morte de Elio De Angelis em testes no ano de 1986, o traçado foi reduzido, perdendo muito do seu apelo.
Além disso, a infraestrutura era falha para os padrões atuais (o pódio que era moderno para 1971 parecia amador e deslocado em 1989). Outros circuitos também deixavam o campeonato, seja por motivos de segurança, políticos ou econômicos, como Kyalami (85), Zandvoort (85) Watkins Glen (80), Jacarepaguá (89), Buenos Aires (81), Zolder (84) ou Jarama (81). Enquanto isso, a F1 começava sua desesperada e errática caçada por um lar decente nos EUA, onde peregrinou por pistas de rua como Long Beach (a melhor entre todas tentativas), Detroit, Dallas, Las Vegas e Phoenix, nunca conseguindo se estabilizar com o sucesso almejado.

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httpv://www.youtube.com/watch?v=mUuQY_JtkD4

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A década de 1980 também viu o retorno de pistas clássicas como Spa e Nürburgring, mas apenas Spa conseguiu se modificar com as necessidades da época, mantendo muito do espírito do original, com suas inesquecíveis curvas como a Eau Rouge ainda em plena forma. Em minha modesta opinião, mesmo sendo mais curto que o antigo, o novo Spa, renascido para a F1 em 1983, consegue ser melhor e mais completo que o original. O novo Nürburgring, que voltou em 1984, era apenas uma sombra pálida e sem vida do seu antigo e mágico antecessor.

Com o final da era Turbo, em 1988, a F1 viveu uma época de incríveis avanços aerodinâmicos e, com isso, muitos dos traçados considerados padrões para a década de 1980, sofreriam na década seguinte. Os primeiros anos de década de 1990 viram novos circuitos chegarem, como Magny Cours na França ou Barcelona na Espanha, mas ambos pareciam sofrer de uma esterilidade latente. Seguros, com projetos bem executados, mas com traçados sem vida ou emoção. Momentos como a sensacional ultrapassagem de Mansell a Berger, por fora, na perigosa curva Peraltada no México em 90, iam diminuindo com o passar dos anos da década de 1990.

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httpv://www.youtube.com/watch?v=V2g1yrGputA

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E então veio Imola 1994, trazendo todas as tragédias que a F1 parecia estar imune nos últimos anos. E como consequência do compreensível pânico, além de muitas modificações técnicas nos carros, pilotos, organizadores e dirigentes pareciam querer matar toda e qualquer curva veloz e perigosa que ainda pudesse existir na F1. O pânico de 1994 trouxe chicanes (algumas ridículas, como a instalada em Barcelona, antes do veloz S Nissan) em muitos trechos clássicos e perigosos de pistas como Monza, Imola, Spa, Montreal ou Estoril. Tais chicanes serviram apenas para acalmar os ânimos daquela temporada, mas estava claro que soluções definitivas teriam que ser tomadas nos anos seguintes. Tais soluções vieram, mas em muitos casos eliminando definitivamente as antigas e belas curvas.

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httpv://www.youtube.com/watch?v=yyXEp2M8exQ

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Em Barcelona e Montreal a solução foi transformar as zonas perigosas em retas maiores. Em Monza, curvas perigosas e desafiantes como as duas De Lesmo, se tornaram curvas de 90% graus atenuadas, sem nenhum charme. Em Imola, as chicanes ficaram para sempre. Soluções razoáveis, mas que aumentaram o caráter inofensivo das pistas da década de 1990.

Quando Hockenheim entrou definitivamente no lugar de Nürburgring, em 1977, muitos reclamaram do seu traçado inócuo com 4 grandes retas, entrecortadas por (então) 2 chicanes. Em 1997, a grande maioria, agradecia aos céus por Hockenheim ainda estar no calendário, dando um pouco de personalidade no calendário recheado de pistas padronizadas de média velocidade.

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httpv://www.youtube.com/watch?v=apGakrkbRBU

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Pistas como Suzuka e Spa ainda permaneciam como as melhores e mais completas da época. Para piorar, a evolução aerodinâmica dos carros de F1 foi tamanha nessa década que era virtualmente impossível seguir um carro mais lento em curvas de média ou alta velocidade, devido a grande turbulência provocada pelo carro da frente. Esse fator tornou a maioria dos traçados daquela década obsoletos para os carros da época, tornando as ultrapassagens feitas na pista em algo extremamente raro e precioso. Quando a ultrapassagem acontecia em uma curva com as características citadas acima, era um gol de placa, como foi a sensacional passada de Villeneuve a Schumacher na parabólica externa de Estoril, em 1996.

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httpv://www.youtube.com/watch?v=L9hvq76txLo

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Quando tudo parecia extremamente previsível para as pistas de F1, eis que surge um nome, que todos nós, fãs de F1, ouvimos falar muito nos últimos 15 anos: Hermann Tilke. Esse engenheiro alemão, também ex-piloto de corridas, foi o responsável por praticamente todas as pistas que aterrissaram no calendário da F1 nos últimos anos. Começando com a reforma do velho Österreichring, transformado em A1-Ring (agora rebatizado como Red Bull Ring), Tilke teve o seu primeiro traçado completo em Sepang, no GP da Malásia, em 1999.
De certa forma Sepang e todos os outros circuitos desenhados por Tilke para os anos de 2000, como Shanghai, Bahrain ou Korea, são a completa antítese das pistas que estrearam na F1 de meados dos anos 1980 até o final dos anos de 1990: São extremamente largas, relativamente longas em extensão, tem curvas de todos os tipos e estilos, longas retas precedidas por curvas lentas (para eliminar o problema da turbulência nas entradas de zonas de ultrapassagem), além de construções arquitetônicas astronomicamente caras.

Bom, vendo por esse lado, poderíamos dizer que os novos circuitos são lindos e épicos como as grandes pistas clássicas da F1, certo? Infelizmente a resposta é não. Mesmo com todo esse esforço (e ainda que o traçado dessas pistas seja indiscutivelmente superior aos pobres traçados de pistas como Aida ou o reformado Kyalami de 1992/1993), muita coisa se perde na falta de vida desses circuitos. Projetados de forma articulada em superfícies muitas vezes artificiais, tais traçados parecem apenas um exercício de equilíbrio entre todas as propriedades que uma pista deveria ter. Os problemas da falta de ultrapassagem foram resolvidos, tanto pelos novos traçados, quanto pelos novos regulamentos com dispositivos como o DRS, mas a questão permanece: O quanto isso seria válido? Corridas bastante disputadas (às vezes nem isso), mas baseadas em pistas feitas milimetricamente pensadas nesse fato e com os carros utilizando de dispositivos extras para que tal competição aconteça.

E tudo isso para atrair um público cada vez mais distante e ausente. Talvez esse público sinta toda essa artificialidade no ar. No ambiente de cada paddock, na palavra de cada piloto em suas entrevistas, na padronização de cada forma dos chassis e, também, na grandiosidade extremamente calculada de cada pista que estreou na F1 na última década.

Por outro lado, os esforços na direção da segurança são cada vez melhores. As antigas caixas de brita da década de 1990 deram lugar às seguras áreas de escape asfaltadas, que para segurar os carros é mais abrasiva. Os já seguros pneus de proteção dos anos de 1990 deram lugar aos sofisticados Safer ou Tecpro Barriers – que recentemente salvaram Carlos Sainz Jr. em Sochi. Em muitas pistas atuais, as áreas de escape são tão longas e seguras que um carro só atinge algo sólido se bater em outro. Fato completamente inimaginável para as décadas de 1970 ou 1980. Após as mortes de 2 comissários de pista, em Monza 2000 e Melbourne 2001, a posição dos postos de fiscalizações e as proteções para os que trabalham dentro deles foram revistas, para que a chance de serem atingidos por peças e detritos de um carro acidentado fossem cada vez menor.

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httpv://www.youtube.com/watch?v=sdvCbWDAjao

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Mesmo com todo esse avanço o imponderável ainda circunda o circo da F1, como as mortes de um fiscal de pista no GP do Canadá de 2013 e a morte de Jules Bianchi no GP do Japão de 2014 (primeiro piloto a falecer em um evento oficial de F1 desde Ayrton Senna em 1994) comprovaram, ambas em condições extremamente extraordinárias, em uma triste junção de pequenos erros e fatalidades.

Outra tendência positiva foi o aumento de circuitos de rua no calendário. Ainda que Valencia tenha falhado em ser o sucesso que todos esperavam (apesar do belo traçado e paisagem), Marina Bay encantou a todos com uma corrida noturna (outra novidade desesperada da F1 dos anos 2000), em um longo e variado traçado sendo presença certa no calendário desde 2008.

Por outro lado, a cobiça da F1 a faz se distanciar cada vez mais das suas raízes europeias, sendo a grande quantidade de provas no oriente odiada pela maioria dos puristas do esporte. Em um primeiro momento, o escape da proibição da propaganda tabagista na Europa parecia indicar para essa solução, mas os motivos atuais de tal descentralização de pistas da F1 vão muito além disso.

Em um último e utópico pensamento, o antigo fã aqui, sempre sonhando com uma nova fase da categoria, pensa em um antigo Nürburgring reformulado. Não precisaria nem ter os 22km do clássico Nordschleife, mas boa parte deles. Áreas de escape seriam introduzidas, dentro do possível, para a pista se adequar aos padrões mais atuais.

A cobertura televisiva, um dos problemas da pista nos anos de 1970, não seria uma questão nos dias atuais, onde facilmente poderia se cobrir cada curva com várias câmeras. O custo para tal projeto seria astronômico (talvez maior do que o centro de entretenimento criado por lá em 2005 e que a levou a falência em 2013), mas para quem já gastou zilhões com construções artificiais no deserto, milhares de holofotes para fazer corridas noturnas ou hotéis paradisíacos sem sentido algum dentro de pistas e corrida, não custaria tanto investir em algo que agradaria tanto os fieis e antigos fãs da categoria, quanto os mais novos (sim existem alguns), além de salvar um patrimônio do automobilismo que anda meio sem rumo atualmente (trocando de donos e com perspectiva de voltar para F1 em 2017).

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httpv://www.youtube.com/watch?v=TA2yYohW1Vs

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Mas bem, como é algo que deve agradar os antigos fãs, e que teria como objetivo simplesmente resgatar valores tradicionais do automobilismo, tenho certeza que tal ideia seria descartada de início. Não custa sonhar…

Abraços a todos e até a próxima.

Júlio Oliveira Slayer
Júlio Oliveira Slayer
Músico profissional e professor de bateria, acompanha Fórmula 1 desde o GP da Áustria de 87. Sua grande paixão é a história da categoria.

5 Comments

  1. Carlos Chiesa disse:

    Bela aula.

  2. Robinson Araújo disse:

    Colegas

    Cada dia me parece melhor quando tinha 8 anos e assistia em uma TV Telefunken a algum GP de 1986 de modo desfocado, sem saber falar direito o nome das equipes e dos pilotos, mas totalmente eletrizado pelo o que ocorria.
    Quanto mais a habilidade dos pilotos e o desgaste dos equipamentos forem se tornando itens distante da competição mais o esporte irá se distanciar da realidade da grande massa de espectadores, se tornando extremamente racional e com uma técnica pra computador ver.

    Sinceramente não vejo volta, talvez uma grande mutação que possa nos contagiar novamente com uma fórmula ainda a ser descoberta.

    Um bom final de semana a todos

  3. Mauro Santana disse:

    Bela coluna Slayer!

    As pistas das antigas, que foram criadas até os anos 80, tinham suas características e personalidades porque foram criadas por pessoas diferentes, assim tivemos vários clássicos.

    O que não acontece mais quando o assunto envolve Herman Tilke e suas chatices de sempre.

    O cara só acertou a mão na pista da Turquia, e infelizmente a pista está fora do calendário.

    Pra mim, seria um sonho poder ver a volta do Original Interlagos, mas, infelizmente, nem todos os sonhos se tornam realidade.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-Pr

  4. Lucas dos Santos disse:

    Ótima análise, Júlio.

    Gostei muito dessas matérias.

    A respeito das barreiras de Tecpro, elas realmente salvaram o Carlos Sainz Jr., mas tinham potencial para causar um grande problema se o carro estivesse em chamas. Pois a barreira se desmontou e os blocos foram parar em cima do piloto, que não conseguia sair do carro. É algo que precisa ser revisto, mas, sem dúvidas, é uma evolução em relação às barreiras de pneus.

  5. Fernando Marques disse:

    A Formula 1 caminha para artificialidade em todos os seus aspectos …
    Os atuais circuitos tilkeanos não demoram muito estarão defasados face a falta de operabilidade dos robôs que estarão guiando os carros de Formula 1 e que em breve já será testado e utilizado pela Formula E …
    e assim caminha a humanidade …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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