Haas e Haas

O centésimo GP de Jackie Stewart
09/03/2016
Carros de outro planeta VII
13/03/2016

A Haas e a Haas

Estamos no limiar de mais uma temporada da Fórmula 1. Se o marasmo nos abate quando vemos o quanto os carros e pilotos pouco ou nada mudaram, ao menos temos uma novidade autêntica na chegada da nova equipe americana Haas.

O time chega à F1 com chassis desenhados pela Dallara, e todo o conjunto motriz da Ferrari: motor, sistemas de energia, e câmbio, para os pilotos Romain Gosjean e Esteban Gutiérrez.

Gene Hass, comandante da nova empreitada, é um típico empresário que fez a América. Dono da Haas Automation, ele é um dos maiores fabricantes do mundo de máquinas CNC (Computer Numeric Control), que servem para fazer usinagem de peças de modo computadorizado em tornos, fresadoras, furadeiras etc.

Após se formar em finanças pela California State University em meados dos anos 70, Gene não conseguiu emprego na área que pagasse mais do que conseguia tirar em sua própria loja de máquinas. E nesse mundo, acabou se tornando programador de máquinas CNC ao perceber o quanto os produtos que vendia eram inadequados.

Hass patenteou seus projetos nos anos 80, quando disseminou seus sistemas baratos e programáveis para todo tipo de indústria. Hoje, as vendas das máquinas de Haas alcançam anualmente a cifra dos bilhões de dólares.

Em 2002, Gene montou uma equipe de Nascar. Os resultados foram fracos até se associar a um grande piloto, Tony Stewart, em 2008 – ano em que Hass foi preso por fraude tributária, cumprindo 16 meses numa prisão federal americana. A equipe, porém, evoluía. Após algumas vitórias em corridas, Tony foi campeão em 2011.

Em 2009, um dos engenheiros da Stuart-Haas, Ken Anderson, se juntou ao jornalista inglês Peter Windsor para montarem uma equipe de Fórmula 1, o natimorto projeto USF1. A ideia era usar o Wind Shear, o mais avançado túnel de vento do mundo, construído em 2006 na Carolina do Norte e que comporta carros em escala natural (!) em esteira rolante que alcança mais de 250 km/h. Adivinhem de quem é esse túnel de vento… Sim, do chefe Gene. Certamente o projeto USF1 deve ter feito os olhos do empresário brilharem.

O Haas F1 Team está sediado junto à equipe de Nascar na Carolina do Norte, mas Gene também comprou a antiga sede da Marussia, em Branbury, na Inglaterra. A nova equipe participou de todos os testes de pré-temporada em Barcelona, e acumulou a boa quilometragem de 474 voltas com o modelo VF-16.

Sendo o projeto USF1 arquivado antes mesmo de acontecer, a última participação de um time dos Estados Unidos na Fórmula 1 até o advento da equipe Hass continua sendo… a equipe Haas! Mas a de 30 anos atrás, de Carl Haas, que não tem qualquer parentesco com Gene…

Do alto de seus 86 anos, Carl Haas teve uma vida intensa no esporte a motor, iniciada em 1952, quando passou a pilotar carros clássicos como Jaguar, Ferrari e Porsche em corridas para esportivos em solo americano. Na década seguinte, tornou-se importador de carros Lola nos Estados Unidos. Após possuir equipes no Can-Am (campeão de 1977 a 1980) e na F-5000 americana, se associou ao ator Paul Newman para criar a lendária Newman-Haas Racing em 1982 para corridas na Indy.

A Newman-Haas deu tão certo logo de cara que o primeiro piloto que o time contratou foi ninguém menos que Mario Andretti. E esse trio foi campeão da Indy em 1984. No fim daquele ano, Carl acertou um polpudo contrato com a Beatrice Foods, um conglomerado gigantesco que ia desde a marca de condimentos Hunt’s até a locadora de carros Avis. Carl era amigo do diretor da Beatrice, Jim Dutt, que por sua vez era amigo de Donald Peterson, então diretor da Ford Motor Company. Algo grande estava para acontecer.

A Beatrice não apenas ia colocar sua marca na Lola-Ford de Andretti na Indy, como ia financiar a criação de uma equipe de F1, com pensamentos em expansão internacional da marca. Para esse novo projeto, Carl se associou a Teddy Mayer, ex-dono da McLaren, de títulos com Emerson Fittipaldi e James Hunt, enquanto Paul Newman ficaria com as operações da Indy.

O time se fixaria no começo de 1985 em Colnbrook, justamente a cidade da antiga sede do time fundado pro Bruce. Tyler Alexander, um dos fundadores da McLaren e conhecido de Mayer de longa data, também embarcou no projeto.

Com direção técnica de Neil Oatley, que mais tarde seria o responsável pelos carros da McLaren por toda a década de 90, e com ninguém menos que Ross Brawn cuidando da aerodinâmica, o time fechava seu pacote ao tirar da aposentadoria o campeão de 1980 Alan Jones e um invejável contrato de exclusividade do novo Ford-Cosworth turbo, que começou a ser desenvolvido no fim de 1984.

Oatley e Brawn, com o também projetista John Baldwin, conseguiram fazer um projeto com linhas bastante fluídas e elegantes, mas os problemas não tardariam em aparecer. O primeiro de todos veio da própria Cosworth, em uma saga contada em um (ótimo) documentário em duas partes produzido pela rede de TV Channel Four da Inglaterra.

httpv://www.youtube.com/watch?v=1LkxGx5WJzA

httpv://www.youtube.com/watch?v=7RCdRKkt4ds

Com pensamento em economia de combustível (a FISA, que banira o reabastecimento, começava a impor limites dos tanques) e simplicidade de engenharia, Keith Duckworth insistiu em fazer um motor 4 cilindros em linha, como já eram os motores BMW e Hart.

Só que esse motor nasceu com um defeito congênito fatal: vibração no virabrequim a altas rotações. O motor, em bancada de testes, e ainda sem a pressão do turbo, mal chegava em 10.500 rpm e entrava em colapso. Keith teve que recomeçar do zero, o que, obviamente, atrasou os planos da Haas.

O time fez quatro provas no fim de 1985, usando provisoriamente motor Hart, que já tinha um déficit grande demais de potência diante dos outros motores. Na tentativa de entregar mais cavalos do que o conjunto suportava, acabava explodindo sempre. Foram 4 corridas e 4 abandonos – numa das corridas, Jones sequer largou.

O novo motor ficou para 1986, quando Patrick Tambay, campeão com Haas no Can-Am, se juntou ao time no segundo carro. A nova usina era um V6 a 120 graus, como o da Ferrari – outro erro, uma vez que os melhores motores, como TAG-Porsche e Honda usavam 80º e 90º, respectivamente. Em contraste com o bloco de ferro fundido de Honda e BMW, o Ford era de alumínio, como o Renault.

Keith fez um bom trabalho nas dimensões. O novo Ford-Cosworth TEC Turbo era bem compacto e “redondo” na resposta de acelerador, apresentando muito pouca hesitação (lag) no turbo. Só que, claro, precisava de mais potência, justamente no ano em que a F1 teve mais cavalos de força em seu grid em toda a história. Uma característica desagradável era a elevação da temperatura quando aumentada a pressão do turbo. Ele mais esquentava do que corria…

O TEC tinha gerenciamento totalmente eletrônico, e usava uma central Ford baseada naquelas usadas nos automóveis de rua da marca. Era bem moderno, mas Bosch Motronic, Honda e Bendix (Renault) estavam na frente nessa corrida da informática.

O chassi, apesar de ter um dos melhores desenhos de 1986, ainda exigia muitos acertos, e um dos problemas era o aquecimento correto dos pneus. O carro, incluindo o motor ‘suave’ para o padrão turbo da época, era ‘gentil’ demais com a borracha, que não esquentava corretamente em um dos eixos, ou em ambos, para alcançar os níveis operacionais de aderência. Isso fica bem explicado no documentário do Channel Four, em que Jones até propõe uso de pneus de qualificação na dianteira e pneus de corrida na traseira durante os treinos!

Mas o tiro de misericórdia viria no bolso. Um conglomerado chamado KKR tomou o controle da Beatrice no começo de 1986, destituiu o aliado Jim Dutt e rompeu o contrato com Carl Haas. O desespero só não foi maior porque a multa contratual pagou os custos até o fim do ano.

Enquanto a temporada seguia, o carro até melhorou e mostrou potencial. Tambay e Jones conseguiam se qualificar relativamente bem, muitas vezes na primeira metade do grid. Em diversas oportunidades, porém, seus carros quebraram quando figuravam entre os seis primeiros. Salvariam pontos em apenas três oportunidades, em circuitos de alta. Jones e Tambay foram 4º e 5º na Áustria, e Jones ainda salvaria um 6º lugar na Itália. Curiosamente, o THL-2 mostrava mais potencial em circuitos sinuosos. Tambay classificou o carro em 8º em Mônaco, e em 6º em Hungaroring.

Mesmo com um staff incrível, a Haas acabou encerrando as atividades ao fim daquele ano. Mesmo com o contrato da Ford em mãos, não surgiu ninguém para substituir a Beatrice, contrato esse que pararia nas mãos da Benetton.

Isso mostra o tamanho do desafio que Gene tem pela frente. Ao menos não terá uma Beatrice a interromper seus planos, uma vez que tudo está vindo de seu próprio bolso.

Que a Haas de agora consiga fazer tudo que a Haas do passado não conseguiu.

Abração e uma ótima temporada a todos!

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

3 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    GP da Austrália 1986.

    Jackie Stewart da uma excelente explicação a respeito de um F1 Turbo, e logo na Lola Beatrice.

    https://www.youtube.com/watch?v=4JIXPqgwQHk

    Abraço!

    Mauro Santana

  2. Mauro Santana disse:

    Belo texto, e bela história, Amigo Lucas!

    Estou na torcida que a Haas consiga fazer um belo campeonato.

    Abraço!

    Mauro Santana
    CURITIBA-PR

  3. Fernando Marques disse:

    Lucas,

    bela historia!!!
    Que belo carro era Beatrice!!!
    Só que Haas, apesar de ser a grande novidade de uma Formula 1 que como bem voce disse, de nada tem de diferente em relação ao ano passado, o avanço tecnológico e o restrito regulamento demonstra que a equipe de novo não tem nada … os carros são todos iguais … a ponto da gente não conseguir identificar quem copiou quem …o que muda são os patrocinadores …
    Mas fica o alento … estamos de olho na Haas

    Fernando Marques
    Niterói RJ

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *