Cinco coisas para levar a um GP

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Quais as cinco coisas que você levaria ao GP do Brasil?

Assisti* a poucos GPs do Brasil ao vivo, quase todos eles trabalhando, mas tive a sorte de presenciar a primeira, histórica e heróica vitória de Ayrton Senna na corrida de sua terra natal. E essa eu assisti como espectadora, no meio da platéia que se espremia no chamado setor A, começo da reta dos boxes. Chegar até lá, e depois sair, foi uma aventura que, se não me transformou em um Ulisses moderno e de saia, pelo menos valeu uma boa história.

Antes de relatá-la, devo bater no peito e assumir que tenho em minha vida a mácula do favorecimento público. Um agregado da família, naqueles tempos, exercia cargo de razoável importância em uma corporação pública. Não era exatamente uma tarefa impossível, nem tampouco hercúlea, colocar para dentro do autódromo meia dúzia de amigos fanáticos por Fórmula 1, mas o aparentado foi mais generoso. Armou um belo esquema para mim e meus camaradas. A nós bastava encontrar uma tal viatura em uma tal esquina das cercanias de Interlagos e estaríamos dentro. Meu coração batia na boca desde a véspera, mas sabe como é esquema com turma: claro que um dos fulanos tinha que se atrasar, e chegamos à tal esquina suspeita (epa!) meia hora depois do horário combinado.

Com o pânico instalado em todos os meus poros, constatei que a viatura ainda estava lá, com um soldado a postos. Chegamos e nos apresentamos, falando em nome – e na patente – do agregado manda-chuva. O guardinha manifestou certa surpresa, mas indicou que entrássemos no camburão, discretamente. Ao entrar lá, outros três soldados já estavam acomodados, todos de cabeças baixas. Zarpamos. Era noite ainda, mas o soldado recepcionista reforçou as recomendações para que não chamássemos a atenção. E emendou: “E esconde a moça, porque aí já é bandeira demais.” A única moça da Veraneio, claro, era eu.

Bateu a porta traseira e a viatura começou a andar. Vira aqui, segue em frente, entra à esquerda, e eu lá, com a cabeça afundada entre as pernas e meus amigos a me esconder. Pronto, entramos. Voltei a sentar normalmente e vi uma cena risível: os tais soldados que já estavam dentro despiram-se de seus disfarces e se revelaram torcedores tão caras-de-pau quanto nós. Melhor para eles, bom para todos, abriu-se a porta. O dia se fez enquanto eu me escondia na viatura e, quando nos despejaram na arquibancada, tive vontade de gritar de alegria. Eu estava lá, na arquibancada da reta dos boxes!

Meu contentamento se elevaria à enésima potência com o resultado da prova, mas eu nem imaginava que aquele concreto duro não tinha sido a mim destinado. O tal agregado, quando armou o tal esquema, idealizou colocar-me e a meus amigos no camarote da corporação, com bela infra-estrutura, serviço de bordo e outras pequenas gentilezas. O esquema mequetrefe da arquibancada dura era outra história: destinava-se ao açougueiro do manda-chuva, que havia lhe torrado a paciência semanas a fio para ir ao GP na faixa. Essa foi a grande conseqüência do atraso de um dos meus amigos: o açougueiro chegou antes e foi para o camarote. Nós chegamos depois – daí o estranhamento do soldado, que esperava só um fura-fila, e não seis! – e lá fomos nós para o lugar do fatiador de carnes.

Mas tudo bem, naquela altura eu não sabia da troca de esquemas, importava é que estava lá, estava feliz e ficaria ainda mais com a vitória de Senna. Das seis da manhã até as duas da tarde, faça as contas, veja quanto tempo fiquei com meu loló depositado no concreto duro, antes ainda da corrida. Valia a pena. Sede e fome eram o de menos. Um dos meus amigos, na verdade o “tio” da turma, já entrado nos 50 à época, achou por bem providenciar laranjas para enganarmos o estômago, mas declinei da oferta. Coisa de mulherzinha: não quis ficar com cheiro de laranja na mão e ponderei que a ainda por cima poderia manchar a pele (para quem não sabe, fruta cítrica no sol é um veneno!).

Todo mundo há de se lembrar dessa corrida, aquela na qual Senna teria ficado progressivamente sem as marchas, terminando a prova só com a sexta. Depois que cheguei em casa, fui ver o vídeo do GP e me espantei com o drama da narração e só então entendi o que tinha se passado na pista. A cada volta, Patrese, em segundo, diminuía drasticamente a diferença para Senna, dando a nítida impressão de que passaria cedo ou tarde.

Se você já esteve em uma corrida, sem o recurso da TV, do rádio ou dos monitores de tempo, sabe do que estou falando. Era assim que eu estava, solta na multidão, desplugada de todo e qualquer equipamento eletrônico. Não se tem a precisão da cronometragem, o drama é muito menor. Eu até via que o vuuuuuum de Senna era seguido cada vez mais de perto pelo vraaaaaamm de Patrese, mas até aí…

Para piorar a coisa, começou a chover. Finda a prova, desabou um aguaceiro caudaloso em Interlagos, e a dispersão da multidão, embora feliz, foi caótica. Eu tinha uma vaga noção de onde poderia estar o carro do meu primo Paulo, que nos conduziu até lá, mas confesso estar perdidinha naquela saída. Era um mar de gente e de bonés azuis do Banco Nacional, seguindo pela avenida Interlagos, depois pela Senador Teotônio Vilela. Cuidei para não me perder da turma e logrei sucesso, mas o improvável aconteceu. Quando conseguimos sair da horda, um, dois, três, quatro, cinco… Cadê o sexto elemento? Justamente o mais velho, Davino, o tio da turma, desgarrou-se do bando. Ficamos os outros cinco com cara de idiotas molhados, esperamos alguns minutos, ou muitos, até resolvermos ir embora. Não foi de todo ruim o tempo esperado, porque o trânsito escoou e pegamos vias relativamente vazias no caminho de volta. Claro que o tio tinha se virado, pegou carona até uma estação do metrô e chegou em casa antes de todos nós.

Ao fim e ao cabo, tive provavelmente o dia mais cansativo e inusitado da minha vida, e mesmo com todos os desencontros, tinha valido tanto a pena que continuou na minha mente a ponto de virar tema de coluna. Olhando em retrospectiva, elejo minhas cinco coisas para levar ao GP: 1) uma almofada para sentar na arquibancada; 2) uma fruta que não seja cítrica para enganar a fome (nos dias de hoje, seria mais fácil levar uma barrinha de cereais, item básico da minha bolsa nessas ocasiões); 3) uma capa de chuva; 4) um protetor de ouvidos (gente, o ronco dos motores é lindo, mas deixa surdo, viu?!); 5) um celular com despertador (para acordar os amigos atrasados), agenda telefônica (com os números dos amigos perdidos), câmera fotográfica (para registrar o evento que deve consagrar o campeão mais jovem da história) e gravador (para fazer do ronco da McLaren meu toque pessoal).

Bom retorno de F1 a todos.

Alessandra

*Coluna publicada originalmente em 14 de setembro de 2005

Alessandra Alves
Alessandra Alves
Editora da LetraDelta e comentarista na Rádio Bandeirantes desde 2008. Acompanha automobilismo desde 83, embalada pelo bi de Piquet e pelo título de Senna na F3.

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