Algo a provar – 1990 revisitado

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Revisitando a Temporada 1990, revendo alguns conceitos formados e pouco aprofundados.

Ainda sob a luz dos lamentáveis acontecimentos do final da temporada de 1989 , a temporada de 1990 começava com certa tensão e apreensão para os pilotos das duas principais equipes da categoria. Ayrton Senna, Alain Prost, Nigel Mansell e Gerhard Berger todos, por diferentes motivos e em diferentes níveis, tinham algo a provar para o mundo da F1 em 1990. Alguns conseguiram seus objetivos, outros não, de forma a que a temporada de 1990 foi um verdadeiro delineador para algumas das carreiras entre os pilotos acima citados.

Senna terminou a temporada de 1989 arrasado. De nada adiantou ser, mais uma vez, o piloto mais veloz do grid. Apesar de ter feito 13 pole positions em 16 corridas e de ter vencido, de forma convincente, 6 provas, Senna foi batido na tabela final da temporada por Alain Prost. O episódio de Suzuka ficou marcado na memória de todos e Senna devia se sentir prejudicado por sua desclassificação após uma vitória épica. Porém Senna só chegou em Suzuka em condições tão desfavoráveis, por sua grande quantidade de abandonos naquele ano. Mesmo que a grande maioria não tenha sido sua culpa, parte da imprensa internacional questionava a regularidade do então campeão de 1988, assim como sua pré-disposição a se envolver em acidentes com outros pilotos, motivados em sua maioria por sua agressividade e tenacidade nata (Monza 88, Brasil 89 e Suzuka 89, por exemplo). Mesmo seu mais ferrenho crítico não questionava o fato de Senna ser então, o piloto mais veloz e combativo da F1, mas muitos se indagavam se ele seria capaz de vencer um campeonato de forma mais madura, com diferentes variantes e variáveis.

Para 1990 a Mclaren apresentou uma atualização do chassi de 1989, o MP4/5B, projetado por Neil Oatley. Embora as primeiras impressões de Senna tenham sido favoráveis, com o piloto relatando que o MP4/5B parecia mais sensível as mudanças de regulagens que seu antecessor, o decorrer do ano mostrou exatamente o contrário, com os pilotos se debatendo com muitos problemas de estabilidade, principalmente na entrada de curvas de média e alta velocidade. Com uma Ferrari cada vez mais competitiva e um chassi problemático, a McLaren dependia cada vez mais do motor Honda V10 (que com várias atualizações durante a temporada acabou sendo um dos salvadores da pátria para a equipe inglesa) e claro da capacidade fora do comum de Ayrton Senna.

httpv://youtu.be/V2g1yrGputA

Se em 1989 e 1989 vimos o melhor da velocidade de Ayrton e em 1991 teríamos, provavelmente, sua melhor temporada de sempre, como um piloto mais maduro e sempre operando no máximo das suas possibilidades, em 1990 tivemos um Senna em transição, um amadurecimento necessário para o Senna praticamente infalível que vimos na temporada seguinte. Ainda o mais veloz do Grid (10 poles em 16 corridas) destruindo completamente em performance seu novo companheiro Gerhard Berger, Senna venceu venceu 6 corridas e embora 3 delas tenham sido em seu tradicional estilo imperial de ponta a ponta, saindo da pole (Mônaco, Bélgica e Itália), outras vitórias nos mostraram um Senna mais maduro e sábio, sabendo a hora certa de atacar. No GP dos EUA Senna venceu um dos mais belos duelos da história da F1 com uma sensacional ultrapassagem sobre o então jovem Jean Alesi e sua Tyrrel. Ultrapassagem pensada e calculada milimetricamente na volta 35, após Alesi ter recuperado a posição em uma primeira tentativa frustrada na volta anterior. Não foi porém, a ultrapassagem que mostrava um novo Senna e sim seu ritmo cauteloso no começo da corrida. Extremamente preocupado com o desgaste dos pneus, Senna aguardou o momento certo para começar a tirar a vantagem de Alesi. Esse mesmo piloto maduro apareceu no GP da Alemanha, quando Senna interrompeu uma série de 3 vitórias do seu grande rival Alain Prost. Nesse final de semana, com a estréia da evolução 4 do potente Honda V10, poucos duvidavam da volta de Senna as vitórias, mas o competente Nannini com sua Benneton Ford V8 largou com pneus B, mais duros, tentando fazer a prova sem nenhuma parada. Quando Senna voltou de sua parada nos boxes Nannini tomou a liderança e mesmo com a incrível diferença de potência entre os 2 motores Senna não conseguia se aproximar o suficiente para fazer uma ultrapassagem. O vácuo eliminava parte do ar que entraria no motor de Senna e com isso a maior potência do V10 Honda do brasileiro se esvaia. Senna foi paciente e aguardou os inevitáveis problemas de pneus que Nannini sofreria mais tarde, fazendo a ultrapassagem na volta 34. O Senna maduro salvou dois terceiros lugares na pior fase da McLaren na temporada, nos GPs da França e Inglaterra, quando problemas sérios de estabilidade impediram qualquer performance melhor a Ayrton. E quando foi necessário, o Senna avassalador de 88/89 voltou, fazendo valer os cavalos a mais do seu Honda V10 em Spa e Monza, duas corridas cruciais para a decisão do título mundial.

Senna, porém, não foi perfeito em 1990. Erros e batidas desnecessários ainda o perseguiam. A ansiedade pela primeira vitória em casa pode servir de desculpa para um afobado Senna na tentativa de ultrapassagem em um piloto como Satoru Nakajima, em um trecho complicado da pista de Interlagos (3 curvas adiante e uma longa reta se abriria…), durante o GP do Brasil. Contudo para eliminação do pobre Nannini no GP da Hungria, em um trecho impossível de se ultrapassar, se deve mais a sua impaciente agressividade, que ainda dava a luz da graça em momentos como esse. O triste acidente com Alain Prost em Suzuka, que decidiu o título a favor do brasileiro, carregou muito mais do que apenas uma das manobras mais estúpidas da história do automobilismo e não merece ser julgado de forma simples e fora de contexto. Porém, como Jackie Stewart comentou na época: “Senna é um merecido campeão, mas é o campeão com o maior número de acidentes com outros pilotos de toda história”. O automobilismo entrava em uma era cada vez mais competitiva (muito por influencia do próprio Senna), mas as palavras de Stewart mostram bem o que foi o Ayrton 1990: um piloto em constante evolução, que provou ser capaz de ganhar um título sendo mais cauteloso e com uma nova sabedoria, mas que ainda estava a alguns metros de sua versão mais lapidada e definitiva, que apareceria de forma definitiva na temporada seguinte.

httpv://youtu.be/zg-Ww-KuapA

Alain Prost, por sua vez, precisava demonstrar o oposto de Senna. Mesmo sendo vice-campeão em 1988 (conquistando incríveis 11 pontos a mais que Senna,mas perdendo na regra dos descartes) e conquistando o tricampeonato em 1989, o francês passou as duas temporadas, em sua maior parte, herdando vitórias em quebras do brasileiro, conseguindo muitos segundos lugares e se impondo apenas em situações específicas, fossem pistas do seu gosto (Estoril) ou correndo em casa (Paul Ricard). Prost começou a temporada de 1988 com o título incontestável de melhor e mais completo da F1. No final de 1989, mesmo com o tricampeonato, sua reputação estava seriamente abalada.

1990 via Prost na Ferrari, que tinha no 641 uma evolução do já ótimo chassi do ano anterior. O motor V12, embora cada vez melhor, ainda perdia para o Honda V10, principalmente em baixas rotações.

Podemos dizer que Prost foi soberbo durante toda temporada, conseguindo fazer o que nenhum piloto nos 4 anos anteriores tinha conseguido: fazer uma Ferrari brigar pelo título. Desde seu árduo trabalho de testes, que finalmente deu ao câmbio semi-automático a durabilidade que todos esperavam, passando por sua postura centralizadora dentro do seio da equipe e chegando a grandes atuações na pista, com vitórias conquistadas de forma agressiva e com ultrapassagens, como no México, quando largou na décima terceira posição ou na França, após uma bela luta com o surpreendente Leyton House Judd de Ivan Capelli, a vitórias dominadoras, como na Espanha. Podemos considerar que Prost fez mais do que muitos esperavam, ainda mais por ter vencido, em geral, o duelo de performance com seu veloz companheiro de equipe, Nigel Mansell. O conjunto da sua obra em 1990 levou vários jornalistas a lhe dar o prêmio de piloto do ano, com o francês liderando as listas dos conceituados anuários Autocourse e Fórmula 1 (fato que irritou Senna de forma tão grande que o mesmo se recusou a fazer o prefácio do Autocourse em 1991).

Porém, como Senna, Prost também não teve um ano perfeito e apesar de ter errado claramente menos que o brasileiro, demonstrou certa hesitação em pequenos momentos. Atuações discretas em Imola (escolha errada de pneus), Canadá e Alemanha (corrida comprometida com um erro grave de acerto nos carros da equipe Ferrari), mas principalmente sua habitual letargia no começo de prova, que causou um violento acidente com Berger em Mônaco e prejudicou sua corrida em Monza, além de sua notória dificuldade em ultrapassar retardatários (Spa e Monza) acabaram por manchar um pouco sua avaliação final.

Em 1990 tanto Senna quanto Prost realçaram mais suas qualidades do que seus defeitos e embora seja Prost quem tem mais o que reclamar de problemas alheios a seu controle durante a temporada (como a largada absurda de Mansell em Portugal, a atitude anti-desportiva De Cesaris em Monza, para não citar a batida de Senna em sua traseira em Suzuka…), foi Senna quem pode dizer, sem dúvidas, que foi o piloto mais veloz do ano, com 556 voltas lideradas e 10 poles, contra apenas 110 do francês e nenhuma pole.

Se Senna e Prost se destacaram pelo lado positivo, Berger e Mansell, seus respectivos companheiros, decepcionaram de forma latente, sendo ambos notas negativas da temporada.

Após um excelente 1989, quando ganhou o famoso apelido de Leão pelos apaixonados Tifosi da Ferrari, Mansell não parecia temer muito a presença do tricampeão Prost na equipe. Afinal ele tinha conseguido atormentar a vida de Nelson Piquet na Williams em 86/87 e se sentia seguro para fazer o mesmo com o francês em 1990. Só que Prost tinha um temperamento muito diferente de Piquet. Onde Piquet e seu jeito relaxado permitiram o leão crescer dentro do time (auxiliado por certo fator nacionalista da equipe Williams é importante lembrar), Prost e seu senso de controle logo dominou o seio técnico da “neutra” (nesse caso) Ferrari. A igualdade entre ambos foi dissipada quando o recém chegado Steve Nichols começou a desenvolver o 641 de Enrique Scalabroni para o estilo mais técnico e delicado do francês. A aplicação de Prost nos testes e sua consistência de resultados em pista desestabilizou Mansell, que adotou uma postura inicial de vitimismo (quando anunciou sua breve aposentadoria, após mais um dia frustrante no GP da Inglaterra), culminando em uma postura de indiferença.

Ao analisar por alto a tabela final da temporada temos a impressão de um Mansell demolido em tudo por Prost, mas analisando mais profundamente vemos que houve um grande pareamento de performance entre os dois, principalmente nos treinos (ficando 8 a 8 o placar final na disputa de posições no grid) e com Mansell conseguindo 3 poles, contra nenhuma de Prost. Porém, no contexto geral Mansell ficou bem abaixo sim. Seus maiores destaques acabaram sendo momentos espetaculosos de breves arroubos, como seu inacreditável controle de carro nas rodadas em 360 graus nos EUA e Imola (essa a mais de 320 km/h, na curva Villeneuve) ou sua inesquecível ultrapassagem sobre Berger, por fora, na temida curva Peraltada no México. Mesmo em sua única vitória, no GP de Portugal, Mansell merece ser duramente criticado por sua largada, que prejudicou de forma clara o companheiro Prost. No final da temporada Mansell voltou para sua casa, a Williams, equipe inglesa que deu o ambiente e as condições técnicas necessárias para o Leão ser vice campeão em 1991 e conquistar o sonhado título em 1992.

Se Mansell ficou abaixo do esperado, o que dizer de Gerhard Berger. Sem dúvida alguma Berger foi a grande decepção do ano. Do velocista austríaco, que enfrentaria Senna de igual para igual nos treinos e finalmente teria condições de ser campeão pela poderosa McLaren, sobraram apenas duas poles e alguns pódios espalhados pelo ano. Nunca conseguiu se impor na equipe, 100% dominada por Ayrton e teve suas performances seriamente prejudicadas por simplesmente não caber no carro direito. O cockpit da McLaren não foi desenvolvido para acoplar o robusto austríaco e com isso muitos remendos e reformas foram feitas para contornar a situação, com o resultado final ainda não agradando de forma total o piloto austríaco. Desculpa ou não, Berger parecia realmente desconfortável quando pisou no acelerador acidentalmente na corrida de estréia nos EUA, desperdiçando uma pole nas barreiras de proteção. Ou quando era ultrapassado por Mansell, sem dó nem piedade, em diferentes ocasiões na temporada (México e Hungria). Muito menos quando cometia erros de avaliação como na tentativa de ultrapassagem sobre Boutsen na Espanha. Ou quando cometeu mais um erro infantil no GP do Japão, saindo da pista sozinho no final da primeira volta, naquela que seria sua maior chance de vitória na temporada. De futuro campeão que finalmente tinha sua chance, Berger terminou o ano com a constatação de ser apenas um “bom piloto”, mas falho. Suas grandes qualidades, como um dos melhores pilotos em curvas de média/alta velocidades, só iriam aparecer ao lado de Senna no final da temporada seguinte, 1991, em finais de semana como dos GPs da Espanha, Portugal ou Japão.

Muitos outros pilotos tinham coisas a provar na temporada de 1990, como Piquet, que provou não estar acabado para a F1, com duas excelentes vitórias em uma crescente Benneton (bem melhor que os Lotus que dirigiu em 88/89) ou mesmo seu companheiro Nannini que se bateu em velocidade com Nelson durante boa parte do ano, tendo sua carreira tristemente encerrada após um terrível acidente de helicóptero na parte final da temporada. Ou ainda nosso grande Roberto Pupo Moreno, que provou ser capaz de andar na frente, desde que com um carro que lhe desse essas possibilidades, conquistando um ótimo segundo lugar na famosa dobradinha com Piquet em Suzuka.

No final das contas 1990 foi um dos últimos anos de uma era clássica da F1. A tecnologia era cada vez maior, mas ainda não o suficiente para evitar que bons pilotos se destacassem em carros inferiores. A aerodinâmica dava saltos gigantescos, mas ainda permitia ultrapassagens tradicionais com carros saindo no vácuo de outros, mesmo em curvas de alta velocidade. A segurança evoluía, mas ainda tínhamos que ver cenas como a de Martin Donelly, com seu corpo estendido pelo chão, após seu Lotus ter se desmanchado em um impacto com o Guard-Rail nos treinos do GP da Espanha. Até o espírito das transmissões de TV ainda mantinha o clima clássico dos anos 80, com as mesmas câmeras colocadas nas mesmas curvas à muitos anos. A era da eletrônica total, dos carros/mísseis aerodinâmicos, impossíveis de se acompanhar de perto em curvas velozes, das curvas com números ao invés de nomes, dos carros praticamente blindados e das transmissões altamente tecnológicas, onde nada escapa das múltiplas câmeras espalhadas pelas pistas e carros estava cada vez mais perto, mas ainda não tinha chegado, nos proporcionando esses últimos anos de uma F1 com um delicioso sabor mecânico, analógico e real, muito mais palpável, mutável e menos artificial.

Abraços e até a próxima!

Júlio Oliveira Slayer
Júlio Oliveira Slayer
Músico profissional e professor de bateria, acompanha Fórmula 1 desde o GP da Áustria de 87. Sua grande paixão é a história da categoria.

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