Uma lenda em forma de V8 – final

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Desde nossa última coluna, paramos em meados de 1965, e o momento era de conseguir o dinheiro para fazer acontecer o ambicioso Cosworth V8 DFV. Para a “meia versão” 4 cilindros FVA, destinado para a F2, Keith Cosworth e Mike Costin poderiam se financiar, mas Keith, o homem da prancheta do DFV, sabia instintivamente que seu motor de Fórmula 1 estava fora de questão sem apoio externo.

Keith nunca fez cálculos precisos, mas disse a Colin Chapman que para projetar, desenvolver e construir os cinco motores que o Lotus necessitava por uma temporada, seria necessário cerca de 100 mil libras esterlinas para fazer o trabalho corretamente.

Keith e Colin conversaram com a Ford, mas a resposta inicial não foi encorajadora. Eles então se aproximaram do proprietário da Aston Martin, David Brown, que estava interessado, mas queria controlar o projeto, e também a Cosworth, algo que Keith evidentemente não aceitaria. A petrolífera Esso, fornecedora da Lotus, também foi sondada, mas todas essas sementes não deram certo.

A chamada seguinte de Colin estava em obter apoio do governo britânico. Afinal, afinal um grande prestígio para a indústria automóvel britânica como um todo estava em jogo, e agora era um bom negócio para o governo fornecer o dinheiro necessário para garantir que isso continuasse. Essa aproximação, porém, igualmente não logrou êxito.

O fato é que Colin foi recebido com total incompreensão. O governo britânico ou não entendeu, ou não se preocupou com a importância do automobilismo como uma das maiores indústrias do país. Em contraste, alguns anos mais tarde, o general Charles de Gaulle ofereceu o equivalente de hoje a 500 milhões de euros a qualquer empresa disposta a desenvolver um motor francês na F1… Uma história que pode, e deve, render uma coluna no futuro…

Mesmo diante das portas fechadas, Colin não desistiu da Ford. Nesse ponto, ele havia desenvolvido um relacionamento muito bom com Walter Hayes, relações públicas da Ford britânica. Seu envolvimento com a marca estava em alta por sua vitória nas 500 milhas de Indianápolis, quando usou um Ford V8 4.2, e ocasionalmente Walter foi jantar na casa de Chapman.

O assunto de um motor de F1 voltou a surgir e eles discutiram longamente. Colin foi particularmente persuasivo. Quando Walter voltou para casa, ele estava convencido dessa ideia, e que a Cosworth era a empresa para produzi-lo.

Foi uma grande motivação para todos envolvidos, porque Keith queria desenvolver o DFV a partir do FVA, que era baseado no bloco do Ford do modelo Cortina. Houve, portanto, um link direto para a imagem da Ford. Não importava que o DFV não continha componentes Ford: a linhagem estava lá. Além disso, a escolha de uma configuração V8 casou lindamente com a imagem internacional da Ford, pois era um tipo de motor que a companhia tinha popularizado a partir dos anos 30 com o famoso bloco Flathead.

Tudo no projeto se encaixava perfeitamente: o que Chapman e Duckworth queriam por razões de desempenho, a Ford precisava por razões comerciais. Eles, dentro das ambições de transformar a Ford em uma marca mundial de alto prestígio, já estavam dominando o mundo da endurance com o Ford GT40, e agora poderiam ter um excelente passaporte de entrada para a Fórmula 1.

Em tudo isso, o valor da boa vontade gerada pelo resgate da F1 britânica em sua hora de necessidade era incalculável. Walter Hayes era um relações-públicas de ofício, percebeu tudo isso e foi o maior porta-voz junto à Ford a partir dali.

Além disso, um importante aliado potencial tinha chegado recentemente da sede da Ford em Detroit. Harley Copp, vice-presidente de engenharia da Ford britânica, fora transferido para o coração da corporação e era um entusiasta apaixonado por esportes a motor. Walter imediatamente falou com ele sobre a ideia do DFV.

O próximo desafio foi que Hayes e Copp tivessem o projeto aprovado e as despesas autorizadas. Este foi um processo que eles conduziram com maestria nos meses seguintes, primeiro na Inglaterra e depois em Detroit. Mesmo nos anos 60, o valor de 100 mil libras era considerado baixo para uma indústria do porte da Ford, que só com o projeto do GT40 gastou incalculáveis milhões de dólares.

Se Keith Duckworth e Mike Costin tivessem a noção de negócios, jamais teriam pedido um valor tão baixo. Ao mesmo tempo, e totalmente sem querer, a Ford aprovou um orçamento quase insignificante em face ao retorno que iria obter nos (muitos) anos seguintes.

Com o projeto finalmente recebendo sinal verde, era hora de trabalhar para materializar o Ford-Cosworth DFV. Não havia tempo hábil para a temporada de 1966, mas a de 1967 era totalmente viável.

Quando finalmente ficou pronto, para a terceira corrida da temporada, os cálculos de Duckworth sobre potência estavam corretos. O motor, logo em sua primeira versão, chegava aos 410 cavalos, maior potência já alcançada para um motor 3 litros.

O H16 da BRM que a Lotus usou em parte da temporada 66 alcançava 405 cavalos – portanto, 5 a menos. Não parece muita diferença, mas quando percebemos que o DFV pesava 168 kg, e o BRM pesava 232 kg é que temos a dimensão da eficiência do projeto da Cosworth. Isso sem contar a falta de confiabilidade que um motor de 16 cilindros tinha naquela época…

O motor Repco V8, que dominava a cena até então com a Brabham, já havia chegado ao seu pico de performance e não iria render mais do que os 330 HPs que já estavam sendo extraídos. Não podemos esquecer os V12: o da Ferrari beirava os 390 HPs, enquanto que o da Honda gritava mais forte com os mesmos 410 cavalos do DFV. Mas esses dois motores multicilindros eram mais pesados, bebiam mais e a curva de torque era muito inferior ao que o DFV conseguia. O novo projeto de Duckworth era muito redondo, essa usina tinha ótima potência mesmo em faixas médias de giros. Não era exatamente uma revolução, mas claramente um novo patamar de engenharia que ninguém havia conseguido alcançar. Era um motor à frente de seu tempo.

Em 4 de junho de 1967, o GP da Holanda tornou-se para a eternidade do esporte a motor o “Dia do DFV”. Para um ótimo motor, a Lotus chegou com um ótimo chassi novo, leve e ágil e elegante como todo modelo de competição da marca: o 49.

Depois de uma temporada de 1966 muito problemática e com motores improvisados, a Lotus voltava a ditar o ritmo. Graham Hill obteve a pole nos treinos, liderou as 10 voltas iniciais da corrida, mas teve um problema e abandonou. Seu companheiro Jim Clark, que mal tinha treinado com o carro, assumiu a ponta na volta 16 e liderou as 75 voltas restantes, ganhando a prova. O DFV começava sua trajetória na Fórmula 1 com uma bela vitória.

Esses dias de desenvolvimento do DFV e a estreia com o 49 acabaram virando o clássico documentário “9 Days in Summer”, felizmente disponível no youtube para consultarmos.

httpv://youtu.be/Ucau77iVndk

E muitas vitórias estariam a caminho desse novo e excelente motor. A partir do ano seguinte, a Lotus perdeu o privilégio do fornecimento. Walter Hayes achou que seria melhor negócio disponibilizar o DFV para quem quisesse comprar, e a Cosworth decolou muito mais alto do que Costin e Duckworth podiam imaginar.

Nos anos seguintes, o DFV foi parar em chassis de equipes grandes, médias e pequenas. Todo mundo podia começar sua equipe de F1 contando com um bom motor. Isso deu a tônica de toda a década de 1970: sim, toda. Esse motor teve uma incrível sobrevida e terminaria sua carreira apenas no começo da década de 1980. Quando a régua foi passada, o DFV colecionou 176 vitórias, 535 pódios, 10 títulos de construtores e 13 títulos de pilotos.

Mas esse motor era tão bom que, não contente em dominar a Fórmula 1, atravessou fronteiras e se tornou vencedor em outros teatros. Na metade dos anos 70, Parnelli Jones pegou um DFV, baixou a cilindrada e botou um enorme turbo no conjunto, criando um fantástico motor para correr de Indy. Apesar do preconceito que Duckworth nutria pelos motores turbo, a Cosworth adorou a ideia, tomou as rédeas do projeto e lançou o Cosworth DFX, que dominaria as provas americanas dali em diante, com títulos e vitórias nas 500 Milhas de Indianápolis.

Mas tinha mais. Esse mesmo DFV, que era projetado para aguentar provas de 300 km da Fórmula 1, podia, com alguns ajustes, ser usado para a enorme maratona das 24 Horas de Le Mans, que passava facilmente os 4 mil quilômetros.

E em duas oportunidades, o DFV venceu a corrida. Em 1975, com o protótipo Gulf Mirage GR8, seguido por outros dois carros equipados pelo DFV; e na popular vitória de 1980 com Jean Rondeau. Assim como os garagistas da Fórmula 1, esse francês construiu um protótipo com as próprias mãos, o Rondeau 379B, e derrotou sob forte chuva, um Porsche 936 dirigido por ninguém menos que Jacky Ickx, na época o melhor piloto de endurance do mundo.

Na semana em que esse motor se tornou cinquentão, não resta a menor dúvida de que, mais do que um simples componente de um carro de competição, o DFV, como eu disse no título desse texto, é uma lenda em forma de V8.

Abraços,

Mário

Mário Salustiano
Mário Salustiano
Entusiasta de automobilismo desde 1972, possui especial interesse pelas histórias pessoais e como os pilotos desenvolvem suas carreiras. Gosta de paralelos entre a F1 e o cotidiano.

8 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Grande Salu!!!

    Rapaz, incrível, história fantástica, e claro, como detalhes que só tive o privilégio de conhecer agora.

    Parabéns mais uma vez!

    Grande Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  2. Carlos Chiesa disse:

    Que gostoso ler essa história, contada de modo tão completo. Parabéns, Mario.

  3. Fernando Marques disse:

    Mario,

    o DFV tem que ser mesmo referenciado … numa Formula 1 muito mais democrática e menos egoísta que a atual, este motor pode servir a todos sem distinção de ser uma equipe grande, media ou pequena, na Indy, nas 24 Horas de Le Mans e como bem disse o Rubergil na F.3000 também …

    Obs: Apesar de toda a boa vontade de atender a todos, o melhor do DFV nem sempre era destinados a todos … havia aqueles DFV “revisados” mas já usados que tinha um custo bem menor de compra (apesar de ter a garantia de fábrica) mas que serviam bem as equipes pequenas … a Fittipaldi mesmo usou na sua maioria das vezes motores DFV “revisados” … numa das raras vezes que a equipe investiu num zero bala mesmo, Emerson chegou em 2º lugar no GP do Brasil aqui no Rio em 1978, sendo esta a melhor corrida da historia da equipe, provando que podia fazer um bom carro, dando a entender que faltava apenas um motor de ponta.

    E estou curioso para saber esta historia de E$ 500 milhões do governo francês para fazer um motor de Formula 1 …

    Meu amigo, nota 1000 pela coluna!!!

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Mario Salu disse:

      Fernando vou atender sua sugestão, vou pesquisar e preparar uma coluna mais detalhada sobre a oferta de de Gualle para a construção de um polo automobilistico na França, fica tranquilo que logo sua curiosidade será saciada..rsrsrs
      valeu e um abraço

  4. Rubergil Jr. disse:

    Mário, que texto lindo! E que história fantástica deste motor. Espetacular.

    Só faltou dizer que ele fechou com chave de ouro sua carreira servido às equipes de F-3000 por quase 10 anos. Inclusive o Moreno ganhou o título de 1988 com o DFV. O ultimo título do DFV foi a F3000 de 1992, com Luca Badoer. E o DFV esteve presente no grid da F3000 até 1995. Talvez correria em 1996 ainda, não tivesse a F3000 adotado o motor único Judd em todas as equipes.

    Abraço!

    • Mario Salu disse:

      obrigado pelo comentário Junior, as vezes as lacunas são propositais..rsrs
      assim amigos como você vem aqui e colocam uma cereja no bolo e nos propiciam uma boa oportunidade para conversar
      abraços e continua conosco

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