Senhoras e Senhores, o M23

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É possível que este título* a alguns lhes pareça um pouco solene. Porém, creio que é bastante adequado, pois estamos perante o carro mais vitorioso da F1, nem mais nem menos, e para muitos (incluído eu mesmo) um dos mais belos bólidos que puderam ser vistos na categoria. Um verdadeiro clássico que, também, foi o mais longevo, pois esteve presente nos grids durante seis anos, mostrando uma versatilidade assombrosa e acolhendo em seu cockpit a vários dos mais destacados pilotos da Fórmula 1 em algum momento das suas carreiras. Esta é a sua fascinante história.

No fim da temporada de 72, Teddy Meyer, então manager da McLaren, encomenda a Gordon Coppuck, o engenheiro chefe da equipe, a preparação do novo carro para 1973. Naqueles anos, a McLaren, mesmo estando presente na F1 desde 1966, dava maior prioridade aos campeonatos americanos, onde também participava com bastante sucesso (Can-Am, USAC e Formula 5000). Portanto, Meyer lhe diz a Coppuck que não perca muito tempo com o carro de F1 e que seja um modelo barato. Coppuck, estabelece uns princípios básicos para o projeto, cujo código passa a ser M23, e deixa o resto por conta do seu jovem ajudante, um tal John Barnard.

A tarefa de Barnard, como lhe havia dito Coppuck e para poupar tempo e dinheiro, consistia em equipar o chassi do M16 (o carro com o que a equipe disputava o campeonato USAC) com a suspensão do M19 e adaptar o carro à Fórmula 1. O projeto e construção do carro levou apenas três meses, e os primeiros testes começaram logo depois no circuito de Goodwood, no sul da Inglaterra. Quando Denny Hulme voltou ao box, depois das primeiras voltas com o novo carro, todos estavam ansiosos por saber a sua opinião sobre o M23. Hulme, com a satisfação ainda gravada na cara, diria: “The bastard goes like a bomb” (“O danado vai como uma bomba”).

Porém, ninguém podia imaginar até onde o “danado” seria capaz de chegar.

John Barnard, então com apenas 26 anos de idade, seguiu perfeitamente as instruções de Coppuck, mas foi-lhe impossível impedir que o seu enorme talento aflorasse, e o M23 acabou sendo muito mais que uma simples combinação do M16 e do M19, pois tudo havia sido melhorado. Bastava dar uma olhada no M23 para ver que as suas linhas eram muito mais elaboradas que as do M16, e as suspensões do M19, também tinham sido aperfeiçoadas. Como prova do trabalho impecável feito no M23, é só dizer que foi o primeiro carro com o volante extraível para facilitar o resgate do piloto em caso de acidente, e a tomada de ar do motor apresentava formas muito mais refinadas que as dos outros carros da época.

O M23 disputa o seu primeiro GP na África do Sul, onde Hulme consegue a pole (a única de toda a sua longa carreira) e, só não ganha a corrida por culpa de um pneu furado que o obriga a entrar no box para trocá-lo. Ainda assim, terminaria em quinto lugar. Logo depois, na Suécia, chegaria à sua primeira vitória e Peter Revson acabaria vencendo na Inglaterra e no Canadá. A McLaren, que nos últimos três anos, só tinha vencido uma corrida, acabava de vencer três naquele ano graças ao M23. Jody Scheckter, estrearia na categoria pilotando o M23 em algumas corridas.

Em 1974, a temporada começa com vitórias na Argentina (Hulme) e no Brasil (Fittipaldi), além da corrida inaugural do autódromo de Brasília, deixando claro que o M23 não estava disposto a render-se perante a superioridade da Ferrari. Numa acirrada luta que dura toda a temporada, Emerson Fittipaldi consegue, finalmente, bater a poderosa Ferrari somando outras duas vitórias (Bélgica e Canadá) ao currículo do M23, convertendo-se no primeiro piloto da equipe em consagrar-se campeão mundial. A McLaren, também vence o campeonato de construtores essa temporada.

Esse mesmo ano, o grande Mike Hailwood, entra na Fórmula 1 com o terceiro M23 e, após belas corridas, sofre um grave acidente em Nurburgring, que acaba com a sua carreira. Em 1975, apesar da vitória inicial de Emerson na Argentina, o M23 começa a apresentar os primeiros sintomas de que o tempo não passa em vão, e a McLaren não pode oferecer resistência às Ferrari. Mesmo assim e graças a uma inovação introduzida no M23, Emerson ainda seria vice campeão vencendo outro GP (o da Inglaterra). A inovação, consistia num dispositivo que permitia ao piloto regular a dureza da suspensão dianteira durante a corrida. Jochem Mass, que tinha entrado na equipe no lugar do retirado Hulme, vence o infausto GP da Espanha.

Em 1976, a McLaren tem que começar a temporada com o M23, pois o seu substituto ainda não estava pronto. A saída de Emerson e a ausência de Barnard, que já não estava na equipe, retrasavam o desenvolvimento do M26. Com quatro anos nas costas, o velho M23 parecia ter a sua aposentadoria próxima. Porém, outras duas e derradeiras inovações lhe insuflariam novos brios e, com todo o seu vigor recuperado, o M23 é capaz de colocar James Hunt no degrau mais alto do pódio em seis ocasiões (além de vencer a Corrida dos Campeões e o BRDC Trophy), numa apoteose final que levaria o Inglês a proclamar-se campeão mundial.

Uma dessas inovações foi a caixa de câmbio de seis marchas com a que a equipe pretendia aproveitar melhor a potência do motor. A BRM, no principio dos anos 60, já tinha provado uma dessas caixas, mas a do M23 foi a primeira usada regularmente e… resultou ser um completo sucesso. A outra inovação daquele ano era mais sutil e consistia numas pequenas saias, ou deveríamos dizer mini saias, instaladas nos flancos do carro para aumentar o seu rendimento aerodinâmico. Gordon Murray também tinha instalado essas mini saias nos seus BT45 porém no M23, elas se prolongavam por baixo do carro até o bico formando uma V. Com isso, Coppuck conseguia gerar uma pequena depressão na zona interior da V que dava ao carro um downforce extra, fazendo que o M23 fosse o primeiro carro que teve a sua estabilidade melhorada atuando sobre o fluxo de ar que passa por baixo do carro.

O GP da Inglaterra, registraria a estréia de Gilles Villeneuve na Fórmula 1. Foi ao volante de um M23 e aquela seria a única corrida que ele não disputou com uma Ferrari. Em 1977, a McLaren, novamente, começa a temporada com o M23, pois o M26 continua não estando pronto, mas resulta evidente que o M23 trinha chegado ao limite da sua evolução. Mesmo assim, o “danado” ainda venceria a Race of Champions, como se fosse uma espécie de despedida triunfal. Pouco depois, o M26 ocupa o seu lugar na equipe.

Porém, o M23 continuaria competindo com equipes privadas até 1978 e o GP da Itália desse ano, seria a sua última corrida na Fórmula 1. Ao seu volante estava um piloto recém chegado à categoria e que poucos conheciam: Nelson Piquet. O M26, em nenhum momento deu sinais de poder, sequer, comparar-se ao M23. A ausência de John Barnard parecia um obstáculo insuperável para a McLaren e, os modelos que vieram a continuação (M27, M28, M29 e M30), resultaram ser ainda piores, apesar da contratação dos engenheiros Gary Anderson, Tyler Alexander e Tim Wright.

De fato, a McLaren só recuperaria o seu lugar entre as grandes equipes da F1 com o retorno de Barnard.

Em total, o M23 venceu 20 corridas (16 oficiais e 4 extra oficiais) com cinco pilotos diferentes ao longo de cinco dos seis anos em que esteve ativo nas F1. Fittipaldi e Hunt, foram campeões com o M23 e outros três campeões, também, pilotaram o carro: Hulme, Scheckter e Piquet. Assim como dois vice campeões: Ickx e Villeneuve. E não devemos esquecer do mítico Haylwood. Contudo, a história do M23 não acaba aqui, pois o “danado” também deu muitas satisfações em outros campeonatos somando outras dezesseis vitórias e três títulos. Participou nos anos 74 e 75 no campeonato sul africano de Fórmula 1 vencendo oito corridas e dando o titulo de campeão a Dave Charlton em 1974.

Competiu no campeonato Aurora de Fórmula 1 nos anos 77 e 78 , onde Tony Trimmer conseguiu outras cinco vitórias e o titulo em 77. Nesse mesmo ano de 1977, o M23 também venceria o campeonato australiano de Fórmula 1, nas mãos de John McCormack (terceiro colocado em 1976 e vice campeão em 1978). Ao todo, foram outras três vitórias. E ainda há uma ultima curiosidade: em 1976, a Mclaren já estava prioritariamente dedicada à Fórmula 1 devido ao contrato que tinham com a Marlboro e ao enorme crescimento que a categoria registrava. Gordon Coppuck estava envolvido de cheio no projeto do M26 e, quando teve que preparar um novo carro para a Fórmula USAC, ele simplesmente pegou o velho M23 e o adaptou à formula americana (contou com a ajuda de John Baldwin).

Foi uma adaptação muito fácil, pois até o motor continuava sendo um Cosworth e não os habituais Offenhauser usados anteriormente. O caso é que o carro foi inscrito para o campeonato de 1977 sob o código M24 e o piloto Tom Sneva, acabou ganhando o campeonato aquele ano ao seu volante, com duas vitórias. Quatro vitórias também conseguiria Johnny Rutherford em 1977 com o M23, ainda que terminaria apenas em 3o lugar no campeonato. Este “irmão” do M23 conseguiria outras duas vitórias nos ovais americanos em 1978 com Rutherford ao seu volante enquanto que Sneva repetiria titulo, mesmo sem vencer nenhuma prova, graças à sua regularidade.

Também houve outro “irmão”: o M25. Este modelo, desenhado por Barnard para competir na Fórmula 5000, acabaria disputando apenas duas corridas em 1976. É que a categoria já agonizava e logo seria abolida. Aquele carrinho, nascido com poucas pretensões, tinha escrito algumas das mais belas páginas da história do automobilismo e já era todo um mito. Naquele inverno de 1973 no circuito de Goodwood, ninguém podia imaginar que o “danado”, cujas geométricas e nada sofisticadas linhas não pareciam sugerir grande coisa, seria capaz de adaptar-se aos mais diversos circuitos de todo o mundo e aos mais diferentes estilos de pilotagem como nenhum outro carro jamais tinha feito… nem faria.

Nas mãos de pilotos refinados como Hulme ou Fittipaldi, o M23 respondia de forma tão serena e submissa quanto um cachorro guia, mas nas mãos de pilotos combativos como Scheckter ou Hunt, o carro reagia com a fogosidade de uma jovem amante. O “danado” encerrou a sua carreira com um currículo impressionante, e seus pilotos venceram corridas e tornaram-se campeões nas quatro categorias em que participou (incluindo o M24) e a sua adaptabilidade permitiu que alguns estreantes demonstraram suas qualidades, abrindo-lhes as portas de outras equipes.

Não é à toa que o M23 é considerado um dos melhores carros de todos os tempos.

*Coluna publicada originalmente em 29 de setembro de 2004

Manuel Blanco
Manuel Blanco
Desenhista/Projetista, acompanha a formula 1 desde os tempos de Fittipaldi É um saudoso da categoria em seus anos 70 e 80. Atualmente mora em Valência (ESP)

3 Comments

  1. Rubergil Jr. disse:

    Esse texto sempre foi um dos meu prediletos do velho GPTotal. Muito bom!

    Rubergil Jr.

  2. Fernando Marques disse:

    Manuel,

    o M23 foi uma verdadeira máquina de vencer … nunca vi um carro de Formula 1 ser competitivo por tanto tempo … ele é sem dúvidas o maior de todos …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  3. Mauro Santana disse:

    Show Manuel!

    Faz tempo que gostaria de ler um material a respeito do M23, e você descreve com bastante qualidade a história desta lenda.

    Parabéns!

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba PR

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