Resgatados por Sid Watkins

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Graças à chegada do polêmico Halo, a Fórmula 1 voltou a ter debates acalorados sobre segurança. O feioso artefato desenvolvido para proteger a cabeça dos pilotos em torno do cockpit tem sido defendido por alguns e defenestrado por muitos.

Isso me fez pensar no saudoso Doutor Sid Watkins, um profissional que colaborou muito nos bastidores para aumentar o nível de segurança da categoria. Em 1996 ele publicou o livro “Viver Nos Limites – Gloria e Tragédia na Fórmula 1” em que relata sua vida na categoria e como foi o atendimento a vários pilotos. Hoje em dia já não é tão fácil achá-lo, então resolvi colocar aqui algumas de suas impressões.

Amante de carros e corridas, Sid Watkins sempre esteve perto das corridas. Nos anos 1960, atendia em um hospital perto do circuito de Silverstone onde pode assistir Jim Clark correr. Depois, passou um tempo nos Estados Unidos curiosamente residindo perto de Watkins Glen, antiga sede do GP dos Estados Unidos.

Em meados de 1978, Watkins recebeu o amigo Bernie Ecclestone em seu consultório no London Hospital com uma nova proposta de trabalho. Comecemos então pela opinião que tinha do (antigo) maior chefão da Fórmula 1.

Bernie Ecclestone

Minhas primeiras impressões sobre Bernie mantêm-se. Ele ainda é um homem de poucas palavras. Creio que é porque tem um domínio completo de qualquer coisa que aconteça na F-1 o que lhe dá a capacidade de ver um problema e sua solução antes que ocorra. Eu costumava telefonar-lhe sobre alguma coisa que queria fazer e ele começava dizendo ‘eu sei o que você quer falar e concordo’. Para ter certeza eu delineava o problema e ele ouvia até terminar, só para dizer ‘eu já havia concordado’. Aparentemente ele é um empresário duro, implacável e poderoso; por baixo dessa capa é uma pessoa muito afável.”

Ronnie Peterson

O venerado piloto sueco foi vítima de um grande acidente na largada para o GP da Itália de 1978, quando foi tocado pelos carros de James Hunt e Riccardo Patrese rodopiando na pista em chamas. Foi o próprio piloto inglês, com a ajuda de outros pilotos que retirou Peterson do Lotus.

Watkins começou a atender a Fórmula 1 no Grande Prêmio da Inglaterra, mas esse foi o primeiro grande acidente que prestou assistência como médico na categoria. O médico fez o que pôde, mas essa seria uma situação muito confusa, conforme descreve abaixo:

Preparei-me para chegar à cena no acidente, mas fui impedido de prosseguir pelos ‘carabineri’ que tinham feito uma barreira ao longo da pista. Cheguei ao centro médico ao mesmo tempo em que a ambulância. Havia uma enorme multidão que tentava tocar o acidentado Peterson como se fosse uma relíquia sagrada. Apesar das diversas fraturas expostas nas pernas, sua pressão sanguínea estava normal. Ele tinha queimaduras superficiais no ombro e peito. Ronnie estava muito ansioso que eu fosse ao hospital tão depressa quanto possível e lhe garanti isso. Na verdade ele disse ‘por favor não me deixe professor’.”

Enquanto a corrida transcorria sem mais incidentes, as notícias sobre Peterson pareciam boas. Ele estava calmo e disposto quando entrou no bloco cirúrgico. No entanto, na madrugada as coisas mudaram repentinamente e o quadro tornou-se crítico.

“Por volta das 4h da manhã o empresário de Peterson, Steffan Svenbi me telefonou dizendo que as coisas tinham piorado. Ele havia desenvolvido dificuldades respiratórias e agora estava sendo ventilado artificialmente. Um Raio-X mostrou que ele desenvolvera embolias múltiplas e um exame neurológico revelou severas lesões na cabeça. Logo o eletroencefalograma não revelava mais atividade cerebral. Havia agora uma multidão histérica na porta do hospital. Logo a notícia se espalhou. O clima no aeroporto era péssimo”.

Gilles Villeneuve

Quatro anos mais tarde, quando Gilles Villeneuve saiu voando de seu Ferrari no treino classificatório para o GP da Bélgica de 1982, Watkins já tinha mais autonomia e o atendimento havia melhorado consideravelmente. No entanto, nada pôde ser feito para salvar a vida do herói canadense.

“Quando chegamos à parte de trás do circuito começaram a aparecer os destroços vazios de uma Ferrari. Vi então que era Villeneuve e o coração caiu-me aos pés recordando suas palavras quando nos conhecermos: ‘espero nunca precisar de você’. Ele estava bastante flácido e suas pupilas dilatadas. De uma forma geral parecia não ter ferimentos pelo qual concordamos que provavelmente tinha uma fratura na coluna cervical, diagnóstico que foi confirmado rapidamente ao chegar ao hospital. Ele não tinha qualquer chance. Os últimos minutos foram de silêncio.”

Nigel Mansell

Curiosamente, apesar de ambos serem ingleses, Watkins e Mansell não desenvolveram nenhuma espécie de amizade pessoal, apesar das inúmeras vezes em que o neurocirurgião precisou ir ao encontro do piloto em um acidente. De qualquer forma, há elogios e lembranças divertidas.

Esse homem intrépido é de muitas maneiras um enigma. Corajoso além do que se possa acreditar em um carro, arrojado e ardente na pista, mas às vezes comporta-se como um garoto levado, lamentando-se e chorando desnecessariamente quando se exige uma compostura pública mais composta. Fui muitas vezes em assistência de Nigel. Sua tendência para se envolver em acidentes era fascinante e me recordo com divertimento dos seus colapsos em Spa, Detroit, Paul Ricard, México e Dallas.”

Frank Williams

Quando Frank Williams sofreu um acidente de carro na França, em março de 1986, não foi Sid Watkins quem o resgatou imediatamente, mas Bernie Ecclestone fez questão de chamá-lo para dar continuidade ao atendimento.

Frank Williams foi um maravilhoso e notável paciente que nunca reclamava; não me lembro dele jamais ter se esquecido de falar ‘por favor’ ou ‘obrigado’ sempre que precisava de alguma coisa.”

Nelson Piquet

Ao contrário de Mansell, Watkins parecia ter mais intimidade com Piquet, com a qual brincava e até brigava algumas vezes, sempre abusando de seu senso de humor tipicamente britânico. A história abaixo aconteceu logo após o acidente do brasileiro em Imola, 1987:

“Fui surpreendido no sábado de manhã quando Bernie Ecclestone chegou em mim e disse ‘o Nelson apareceu e quer correr!’ O malcomportado rapaz dera alta a si mesmo no hospital e chegara ao circuito. Ele veio me ver e eu disse-lhe: ‘Nelson, não pode pilotar, tens uma lesão no cérebro’. Piquet retrucou: ‘como é que sabe?’ Chamei-lhe a atenção que calçava apenas um sapato e esquecera do outro. ‘Não esqueci’ ele disse. ‘O pé está inchado e dolorido pra calçar’. Isso me deu a oportunidade: ‘lesão no cérebro, lesão no pé… não vais correr hoje!’”

Gerhard Berger

O acidente de Gerhard Berger na Tamburello, em Imola 1989 é uma de minhas primeiras lembranças automobilísticas e, como podemos ver, foi inesquecível para todos, inclusive para Watkins que classificou o episódio como “épico”.

“Tenho enorme respeito por esse requintado homem. O acidente na Tamburello em 1989 foi épico. Chegamos rapidamente ao local do acidente e Gerhard estava inconsciente no carro. Abri sua viseira e coloquei um tubo de ventilação na sua boca. Quando estávamos o retirando, ele começou a acordar e a debater-se. Por isso sentei-me no seu peito e fiquei cavalgando nele. Mais tarde ouvi falar que tinha fraturado uma costela, por isso na próxima vez que o vi em Mônaco pedi desculpas caso tenha sido o culpado quando saltei em cima de seu peito.”

Martin Donnely

O promissor Martin Donnely sofreu um dos acidentes mais horríveis da história da Fórmula 1 ao colidir contra um guard-rail no circuito de Jerez de La Frontera, 1990. Com o impacto frontal, seu Lotus 102 Lamborghini ficou dividido ao meio, deixando o piloto britânico caído no meio da pista.

“Já estávamos bem no meio dos treinos quando foi acionada a bandeira vermelha. Ao chegar permaneci sem saber quem era, pois os destroços estavam irreconhecíveis. Ao abrir a viseira, vi que o piloto estava azul, com falta de oxigênio. Era Martin Donnely e estava completamente inconsciente. Havia deformidades aparentes nas pernas, mas a medida que o tempo foi passando, começou a agitar-se, diminuindo o grau de inconsciência. Senti-me melhor com isso. Ele foi levado para o hospital de Sevilha e teve uma longa, mas completa recuperação.”

Rubens Barrichello

Assim como para Ayrton Senna, Watkins reservou elogios impressionantes a Rubens Barrichello, então com apenas 24 anos de idade em (1996). O neurocirurgião confirma a impressão que muitos já têm dele, tanto nas pistas quanto fora delas.

“Rubens Barrichello é outro potencial gênio ao volante. É muito novo e muito inocente. É terrivelmente fácil alguém tirar sarro dele e quando finalmente compreende que estamos brincando tem sempre um sorriso agradável.”

Como todos sabem, Barrichello foi o primeiro grande acidentado no Grande Prêmio de San Marino de 1994. Sid Watkins se recorda aqui do atendimento ao piloto que na época fazia sua segunda temporada na fórmula 1.

“Ouvimos o enorme estrondo de um violento acidente atrás de nós. Cruzamos a pista em meio aos carros que ainda circulavam. Barrichello, inconsciente, sangrava bastante pelo nariz, mas o problema era o fluxo de ar. Levou alguns minutos para tirá-lo com alguma compostura e mais alguns para que voltasse a si, confuso e irracional. O levamos ao centro médico onde em Imola as condições são tais que foi imediatamente radiografado, escaneado e examinado por um excelente neurocirurgião. Rubens se recuperou o suficiente para deixar o hospital Maggiore na manhã seguinte.”

Mika Hakkinen

Sid Watkins demonstrou ter opiniões proféticas sobre Mika Hakkinen, que na altura em que o livro estava sendo escrito ainda não havia vencido nenhuma corrida na F-1. Logo depois, o finlandês se sagraria bicampeão consecutivo pela McLaren.

“Penso que Mika Hakkinen tem um grande potencial e, assim que amadurecer (ainda está pelos vintes) vai ser uma estrela. Sempre foi muito delicado e respeitador e foi, na realidade, o único piloto a que coloquei a coroa de louros de vencedor em uma corrida de Fórmula 3000, há uns anos em Silverstone. Fui inesperadamente chamado pelo RAC para a cerimônia de honra, quando lá me encontrava de férias.”

O neurocirurgião também comentou, é claro, sobre o violento e conhecido acidente de Hakkinen nos treinos livres para o Grande Prêmio da Austrália de 1995. Felizmente o piloto se recuperou rapidamente para a primeira prova de 1996.

“A causa do acidente foi um súbito do pneu traseiro esquerdo, o que o fez rodar e ser atirado praticamente sem desaceleração contra uma barreira a 200 km/h, de acordo com Ron Dennis, o chefe da McLaren. Quando cheguei ao local, dois minutos após o embate, ele estava inconsciente e tinha grandes dificuldades respiratórias. Retiramo-lo do carro e tivemos que fazer uma traqueostomia logo ali. Felizmente e, embora tenha fraturado o crânio, as lesões internas não foram graves. Recuperou a consciência no sábado de manhã e quando lhe disse que tinha tido um acidente grave, as suas primeiras palavras foram: ‘foi erro meu? ’”.

Michael Schumacher

Sobre o lendário heptacampeão mundial (então “apenas” com dois títulos), Watkins demonstrava estar impressionado com o seu talento, que assim como muitos, lembrava o de Ayrton Senna. “É um jovem muito lúcido, racional e inteligente”, disse em uma das passagens. ”Ele está sempre bem posicionado, num circuito ou numa reunião”.

“Michael Schumacher irrompeu a cena em Spa,1991. Desde então, a sua progressão tem sido tão espetacular quanto a de Senna em 1984. Já me referi, em outro local, ao seu acidente em Suzuka, no Japão, em 1991. Desde esse momento só uma vez tive oportunidade de buscá-lo em um acidente, quando bateu nos últimos minutos da última qualificação em Adelaide, 1994.”

Watkins iria mais uma vez em assistência à Schumacher no Grande Prêmio da Inglaterra de 1999, quando fraturou a perna na curva Stowe. Sobre o resgate em Adelaide, o neurocirurgião destaca o excelente preparo físico do alemão.

“O acidente deu-se na primeira chicane e, dessa forma, Frank Gardner conseguiu colocar-se lá muito rapidamente, pois era a umas poucas centenas de metros da saída dos boxes onde estávamos. Michael estava fora do carro, ileso e contente por ter carona de volta aos boxes. Ele é provavelmente o piloto de Fórmula 1 mais em forma nesse momento. Pelos seus comentários, quando se sentou na traseira do carro, ao lado do nosso anestesista Roger Capps, ficou bem claro que também era um dos mais frios de todos. Experimentando o ar-condicionado com uma fungada, disse: ‘Importam-se de desligar o ar? Pois faz mal ao meu nariz’. Frank, com uma piscadela de olho desligou-o, mas ficou impressionado e disse: ‘se ele está em condições de reagir ao ar condicionado depois de um acidente à 180 km/h, também está, com certeza, bem ligado!’”

Ayrton Senna

De todos os pilotos, Sid Watkins tinha um carinho especial por Ayrton Senna. O piloto e o médico costumavam pescar Salmão juntos na Escócia e neurocirurgião foi um dos poucos que sabia do drama emocional que Senna estava vivendo no fim de semana de sua morte.

“Quando resgatamos [Roland] Ratzenberger, Senna apareceu à porta do Centro Médico. Ele tinha estado no local do acidente com um carro oficial que tinha requisitado e questionado os fiscais sobre o acidente (sendo mais tarde repreendido por isso). Quando Charlie Moody chefe da equipe Simtek apareceu, tive que lhe dar a má noticia, de que Ratzenberger não tinha qualquer salvação médica. Então Ayrton desabou e chorou no meu ombro.”

No dia seguinte, quando foi a vez de Senna sofrer o seu acidente na sétima volta da corrida, Watkins e seu motorista Mario Casoni, partiram para a Tamburello de seus postos, atrás da última chicane na reta de chegada.

Quando o Safety Car saiu da pista na volta seguinte e os F-1 puderam acelerar, Senna e Schumacher cruzaram à minha frente como raios. No momento seguinte as bandeiras vermelhas estavam de volta. Eu sabia que era Senna antes de chegar a Tamburello. Ele parecia sereno e estava de olhos fechados. Virei suas pálpebras e ficou claro que tinha uma maciça lesão cerebral. Quando o colocamos no chão, ele olhou e apesar de eu ser totalmente agnóstico, senti que havia partido naquele momento.”

Sid Watkins foi o médico-chefe da Fórmula 1 até 2005. Nos últimos anos teve o seu carro pilotado por Alex Dias Ribeiro e Bernd Mayländer. Hoje a função é exercida pelo conterrâneo Ian Roberts, um dos responsáveis pelo desenvolvimento do Halo.

Fonte | “Viver Nos Limites – Glória e Tragédia na Fórmula 1”, Editora Edipromo, 1998.

Lucas Carioli
Lucas Carioli
Publicitário de formação, mas jornalista de coração. Sua primeira grande lembrança da F1 é o acidente de Gerhard Berger em Imola 1989.

4 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Bela lembrança, Lucas!

    Tenho este livro guardado com muito carinho em minha coleção.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba PR

  2. Fernando Marques disse:

    Lucas,

    Sid Wathins certamente era a pessoa mais importante do Circo da Formula 1, fora das pistas, depois do Tio Bernie … competente como médico e amigo dos pilotos … deve ter de histórias para contar …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  3. João Carlos Benício Viana disse:

    Foi meu primeiro livro sobre corridas. Tenho guardado com muito carinho até hoje!

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