A chance de uma vida

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Uma história (na verdade um dois-em-um) que nos convida à reflexão de como temos que encarar as chances que a vida nos oferece.

 

Queria compartilhar uma história (na verdade um dois-em-um) que nos convida à reflexão de como temos que encarar as chances que a vida nos oferece.
Para quem é piloto, talvez o objetivo máximo universal seja ser campeão mundial – de preferência da categoria mais importante, como é a Fórmula 1. Mas há níveis e níveis de ambição, muitas vezes ligados ao próprio senso de realidade e de capacidade de cada piloto. Alguns se contentam em ao menos vencer uma corrida, mas, ainda mais modestos, há aqueles que dariam a vida apenas por participar de ao menos um GP. Chegamos aqui ao gancho do “causo” desta coluna.

Ah, ter uma largada de F1 em seu currículo vale muito. Dois pilotos dos anos 70, o austríaco Otto Stuppacher e o alemão Hans Heyer, tinham plena consciência disso. Não possuíam talento suficiente para voos maiores, mas queriam ter o gosto de uma largadinha que fosse, algo que colocasse seus nomes na História ao melhor estilo do “sim, eu estava lá”. Nessa busca por entrar para os registros, ambos tiveram destinos completamente diferentes diante da chance de ouro.

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Stuppacher, piloto de rally de subida de montanha na Áustria, inscreveu um velho Tyrrell-Ford com dois anos de uso na tentativa de classificar-se para o GP da Itália de 1976, prova que ficaria famosa por marcar a volta (na verdade, “ressurreição” seria a palavra mais adequada) de Niki Lauda após o apocalíptico shunt em Nürburgring.

Raridade em se tratando de Monza, choveu nos treinos da sexta-feira, o que para um novato como Otto nunca é boa notícia. Todos fizeram tempos de volta acima de dois minutos, mais de 20s acima do que fariam montados em slicks. Para o novato, o dia seguinte de treinos teria que ser na base do tudo-ou-nada.

Eis que chega o sábado, com pista seca. Mas Stuppacher estava mergulhado em problemas com o carro, fazendo como seu melhor um sofrível 1min55s. Ao fim do treino, que qualificava 26 carros, o inevitável: 29º e último tempo, quase 14s acima da pole do folclórico Jacques Laffite, com uma Ligier-Matra. O tempo de volta de Otto era tão miserável que o não menos folclórico Arturo Merzario, 28º com uma Williams-Ford sofrível, havia conseguido virar 8 segundos mais rápido…

Chegou o domingo da corrida e a notícia bombástica na parte da manhã: os pilotos da McLaren, James Hunt e Jochen Mass, e da Penske, John Watson, tiveram tempos cancelados por irregularidades na gasolina, com octanagem acima do permitido.

Esse fato surpreendentemente promovia Stuppacher para o grid. Ainda que em último, caramba, era poder largar! Alguém, então, faz a inevitável pergunta “Legal! O Otto vai correr! Por falar nisso, cadê ele?”.

Stuppacher, desolado com a performance pífia, havia voltado para Áustria em um voo ainda no sábado, à tarde.

Merzario tinha um carro impossível e abdicou de sua vaga no grid. Guy Edwards, de March-Ford, também desistiu – reza a lenda que fez isso por um punhado de dólares oferecido por Roger Penske, para que John Watson pudesse largar. E Stuppacher estava a não menos que 600 quilômetros longe do autódromo, curtindo uma fossa em Viena… No fim, os três cassados – Hunt, Mass e Watson – acabaram largando para uma corrida vencida de modo surpreendente por Ronnie Peterson, a bordo de uma March.

Niki Lauda diria na ocasião que foi uma pena o compatriota Stuppacher não participar, pois isso barraria Hunt, que crescia no campeonato. Mas fica a certeza que Otto ficou ainda mais chateado que Lauda…

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Bem, com Hans Heyer aconteceu o exato oposto. Ao contrário de Stuppacher, ele tem em seu currículo uma largada na F1 – e não tinha sido aceito em um grid para isso.

Assim como Otto, Heyer não tinha a menor experiência com F1. Sua formação era em categorias de turismo, fazendo algum sucesso no campeonato europeu naquela época. Sua marca registrada era desfilar pelos paddocks usando um chapéu tirolês, igual aos que podem ser vistos aos montes nos bebuns da Oktoberfest.

A chance de sua vida na F1 tomou forma em 1977, na oportunidade de pilotar um temporário segundo carro da recém-formada equipe ATS em seu GP de casa, em Hockenheim. O time, que passou a maior parte do ano com apenas um carro para Jean-Pierre Jarier, corria com chassis da Penske, que havia se retirado no fim do ano anterior, ainda ressentida pela morte de Mark Donohue nos treinos do GP da Áustria de 1975.

Assim como ocorrera em Monza, o grid para Hockenheim tinha, obviamente, mais carros do que vagas – 30 inscritos para um grid de apenas 24. Heyer, que apesar de ter 34 anos só havia feito uma corrida de monopostos na vida (de F2, no ano anterior), conseguiu se adaptar ao carro, principalmente porque conhecia o circuito muito bem.

Ainda assim, a concorrência era muito acirrada no fundão. Jarier fez um excelente 12º tempo (1min55s19), mas Hans marcou o 27º (1min57s58), 0.4s mais lento que o mexicano Hector Rebaque, um “paga-pra-correr” que estava com uma Hesketh e alinharia na 24ª e última vaga. Entre os pilotos que ficaram de fora desse grid estava também Emerson Fittipaldi, sofrendo com o desempenho da Copersucar FD-04, tão amarela quanto a ATS.

Apesar de não qualificado para a largada, Heyer forçaria a entrada de seu nome nos registros da F1. Ele se aproveitou de uma confusão na largada no enrosco entre Alan Jones (Surtees-Ford) e Clay Regazzoni (Ensign-Ford) e não se fez de rogado. Simplesmente disse “fui!” e partiu com o carro dos boxes!

Já existiram muitos casos de desqualificação de pilotos que tentaram largar com carros reserva. Mas nada se compara ao que Hans Heyer fez. Trata-se do primeiro e único caso de largada ilegal da História da F1!

A direção de prova, aturdida com o acidente entre Jones e Rega, simplesmente não sacou que Heyer havia partido. Mas a TV alemã captaria imagens daquela ATS amarela nº 35 a partir da terceira volta…

Heyer parou no 10º giro. Não por ter recebido bandeira preta da direção de prova, mas sim porque a transmissão de sua Penske quebrou, fato que já havia acontecido com seu “lícito” companheiro Jarier voltas antes.

O nome de Hans Heyer aparece nos registros oficiais da Fórmula 1 como o “25º” do grid do GP da Alemanha de 1977. Não há menção de desqualificação. Apenas consta que ele “retirou-se” da prova quando era o 21º colocado.

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Esta coluna foi publicada originalmente em 4 de dezembro de 2009

Lucas Giavoni

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

1 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Vale lembrar que Nelson Piquet alugou carros semelhantes para estreiar na Formula 1 … e mesmo tendo calhambeques conseguiu classificação e fazer boas corridas que chamou a atenção da Brabham ….

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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