Um misto de Steve McQueen e Ayrton Senna? – parte 3

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Confira o início clicando aqui.

Após o funeral, Bernd é liberado dos testes em Monza e decide espantar sua tristeza esquiando. Mas vem uma outra má noticia: seu irmão Job sofreu um acidente, bateu em uma árvore e veio a falecer.

Para minorar um pouco a dor da perda, ele e Elly se mudam do apartamento de solteira dela, tão pequeno que ele tinha que dormir no sofá. Enquanto não vinham os testes de abril em Monza e no renovado AVUS, ele tratou de se ocupar tomando aulas para tirar brevê de piloto de aviões.

Os testes de Monza foram realizados sem incidentes, os motores da Tipo C agora com 6,0L. Em AVUS Bernd foi destacado para testar um modelo carenado, mais adequado para uma pista tão rápida, que exigia soluções aerodinâmicas diferentes.

AVUS é uma sigla, Automobil Verkehrs und Übungs Strasse, algo como “rua para prática de carros e tráfego”. Era similar ao que os americanos chamam de circuito oval, duas retas conectadas por duas curvas de 180º, 9km de extensão. Em 1936 Berlim recebeu os Jogos Olímpicos, que obviamente foram usados pela propaganda nazista em prol de seus objetivos. AVUS era o circuito berlinense para corridas de esportes a motor. Para acomodar o Salão do Automóvel de Berlim de 1936, aproveitando o grande fluxo de turistas gerado pelas Olimpíadas, um novo acesso a essa pista precisou ser construído, e para isso foi preciso reconstruir a Nordkurve e encurtar o percurso. A Nordkurve agora era inclinada, a 43,6º, com piso de tijolos. Como era comum na época, ninguém pensou em colocar algum tipo de proteção caso alguém escapasse. Se isso acontecesse o infeliz piloto iria se tornar passageiro de um avião sem asas e sabe-se lá como e onde iria pousar. E por pouco

Bernd não inicia a serie que viria a apelidar essa curva de “O muro da morte”.

Ele fez uma aproximação alta demais e as rodas da direita subiram no muro, gerando o risco de sair completamente fora da pista. Felizmente a habilidade não era pequena e ele conseguiu se safar sem maiores problemas.

Dia 9 de maio, GP de Tripoli. A tônica foi o enorme número de trocas de pneus, para as duas equipes dominantes. Só a AU trocou 35 pneus, tal o desgaste. Lá pela 18a. volta Bernd foi atingido na cabeça por um pedaço de banda de rodagem, felizmente sem consequências maiores. Em tempos analógicos, esse número extraordinário de trocas gerou uma mega complicação para controlar quem estava em qual volta. Virou, mexeu, cortou e distribuiu, Lang estava aparentemente folgado na liderança. Mas box da Mercedes tinha se equivocado no controle das voltas de Rosemeyer e não percebeu que este tinha descontado todo o atraso, a Mercedes não sabia se era uma ou duas voltas, e na verdade ele estava a meros (para a época e circuito) 10 segundos atrás. Lang conseguiu se manter na posição e Bernd terminou mesmo em segundo.

Detalhe curioso é que Fagioli, agora competindo pela Auto Union, e Caratsch duelaram boa parte do tempo, até que o italiano se impôs. Seguramente Rudi usou e abusou dos truques para bloquear a passagem do ex-colega porque após a corrida este pegou um martelo e o atirou contra o alemão, errando a cabeça por pouco. A turma do deixa-disso atuou imediatamente e afastou o furioso Fagioli do local.

A prova seguinte aconteceria em AVUS, prova que seguia o regulamento Formula Libre. Por que Formula Libre?

Porque para esse circuito interessava a Mercedes e Auto Union fazer experiências com carros carenados e estes eram mais pesados que os carros de GP. A formula dos carros GP limitava o peso a 750 quilos. Como ambas montadoras vinham trabalhando para bater recordes de velocidade pura, seria natural adaptar o que aprenderam com os carros de recorde para essa corrida. Sem contar que carros alemães batendo recordes de velocidade mundial era material de primeira para a propaganda nazista. Não há duvida de que o Ministro Goebbels esteve envolvido nisso desde o inicio e que todas as providências foram tomadas para provar a superioridade ariana, a começar por essa exceção nas regras.

“Deutschland über alles”, Alemanha sobre todas as coisas, em tradução livre, era o mote.

Circuito novo, o mais rápido do mundo naquele momento, com carros especialmente desenvolvidos para aproveitar essas condições, a preocupação da Continental, que fornecia pneus para ambas montadoras, era enorme. Não tinha certeza do quanto eles aguentariam essa velocidade extrema, principalmente depois da quantidade de trocas de Tripoli, também um circuito rápido.

A AU levou dois carros de roda coberta especialmente construídos para essa corrida (Rosemeyer e Fagioli) e dois GP convencionais (von Delius e Hasse).

Stuck tinha sido destacado para participar do GP da Gávea, no Rio de Janeiro.

Bernd e Caratsch largaram na primeira bateria, 7 voltas. Os dois deixaram os colegas von Delius e Seaman, com carros GP, cerca de 25 km/h mais lentos, se divertirem até a volta 5, buscando poupar pneus para um sprint final. Nessa volta Caratsch passa ao ataque ultrapassando Bernd na freada da Nordkurve. Os tempos, que até ali estavam na faixa de 4’40″ baixam para 4’33”. A torcida fica de pé, conforme os dois vão se alternando na liderança mais de 5 vezes por volta, andando no limite naquela faixa de velocidade praticamente inédita, 380 km/h nas retas, 180 km/h na Nordkurve. Na volta 6 ambos estão virando na casa dos 4’27”. Quando começa a última volta Caratsch lidera e aborda a Nordkurve na parte alta, Bernd ao lado na parte baixa. Rudi tem assim a vantagem e cruza a linha 0.7” à frente. Mas não deve ter ficado tão orgulhoso ao saber que o motor de Bernd estava funcionando só com 13 cilindros e ele teve seus óculos de proteção sujos de óleo por causa disso. Mesmo com um motor manco e com a visibilidade drasticamente reduzida ele fez a última volta em extraordinários 4’11”2, média de 276,39 km/h. A volta mais rápida da categoria naquela época. Para se ter uma idéia, a Indy só foi atingir essa média na década de 70.

Enquanto acontecia a segunda bateria, Ludwig Sebastian, o mecânico principal de Rosemeyer tentava fazer voltar a funcionar os cilindros com problemas. Sem sucesso. Bernd larga em desvantagem e, na tentativa de acompanhar o ritmo, acaba cedo com seus pneus, tendo que fazer uma troca inesperada. Termina em quarto, com o macacão totalmente encharcado de óleo do motor quebrado.

Eifelrennen ocorre no dia 13 de junho e sendo Nürburgring o circuito favorito de Rosemeyer, ele vence, depois de um intenso duelo com Rudi. Este assumiu a ponta após a largada, Bernd reagiu, os dois foram se alternando na ponta até que em Aremberg este passou por fora e não mais perdeu a liderança. Um dos motivos foi que os mecânicos da Auto Union conseguiram fazer sua troca de pneus em estupendos 25”, contra 38” da troca de Rudi. O público aplaudiu os mecânicos de Bernd!

A Auto Union tinha um plano para ganhar mais espaço na mídia e impressionar todo mundo, independente dos resultados na GP: bater recordes mundiais de velocidade.

Em outubro Rosemeyer bate 3 recordes mundiais de velocidade e 16 recordes de diferentes categorias. Foi o primeiro ser humano a ultrapassar a barreira dos 400 km/h em terra (406 km/h), em estrada de uso normal. Bom lembrar que os melhores caças da época, Spitfire e Messerschmitt 109, atingiam velocidade máxima em linha reta na faixa dos 500 km/h. O recorde de aceleração de Rosemeyer, para um quilometro partindo do zero, 188,7 km/h, permaneceu por muitos anos.

Ele acha essa experiência muito mais cansativa, necessitando mais concentração e controle mental que um GP. Em uma dessas tentativas ele chega a desmaiar e é preciso que seja retirado do carro.

A próxima corrida seria a Vanderbilt Cup, em Nova Iorque.

Em breve, novos capítulos dessa história.

Carlos Chiesa
Carlos Chiesa
Publicitário, criou campanhas para VW, Ford e Fiat. Ganhou inúmeros prêmios nessa atividade, inclusive 2 Grand Prix. Acompanha F1 desde os primeiros sucessos do Emerson Fittipaldi.

5 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Chiesa,

    “Um misto de Steve McQueen e Ayrton Senna? – parte 3” está um show também …


    Qual é o atual recorde de velocidade em terra?

    Fernando Marques
    Niterói – RJ

    • Fernando Marques disse:

      Eu mesmo respondendo a minha pergunta pesquisei no Wikipedia o seguinte. O atual recorde pertence ao britânico Donald Campbell que em 17/07/1964, no LAgo Eyre/ Australia, atingiu a marca de 648,730 km/h a bordo de um Bluebird com motorização turboshaft com 4.000 ph …

      Fernando MArques

      • Thiago Rocha disse:

        Valeu Fernando! E sobre a coluna é maldade capitular assim, aguardando a próxima parte! 😀

        • Carlos Chiesa disse:

          Desculpem o atraso, rapazes, mas fiquei feliz em ver que vocês auto-resolveram as dúvidas. Abraços a ambos. Observem que Campbell atinge 648 com 4.000HP enquanto os rivais M-B e AU estavam, quando muito, na faixa dos 600HP. Desproporcional, não?

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