Contraproducente

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Um time pode perder, mas dificilmente será goleado num placar demasiadamente elástico se entrar em campo livre de pressões, e concentrado apenas em fazer o melhor trabalho possível, venha o que vier. Já uma postura demasiadamente reativa e tensa, ao contrário, tende a confundir o julgamento na hora de tomar decisões, torna o competidor previsível e suscetível a provocações, e pode se revelar catastrófica quando em situações de adversidade.

Aqui torna-se inevitável lembrar da seleção brasileira em seu vexame nas semifinais da última Copa. Mais do que o desempenho opaco que já vinha sendo apresentado até então, ou a ausência da principal estrela do time, é esse tipo de cenário – o pavor causado por estar perdendo quando tinha a obrigação emocional de vencer, combinado à descrença na própria capacidade de virar a partida – que explica o famoso “apagão” que a seleção brasileira viveu no Mineirão, em 2014, durante o qual sofreu quatro gols em seis minutos.

Certo, mas por que falar disso agora?

Bom, porque a meu ver a Ferrari alinhou na China com estado de espírito muito parecido com o que a seleção brasileira pisou o gramado em Belo Horizonte, quatro anos atrás. Explico: os vermelhos já estão há 10 anos sem um título de pilotos, o último deles conquistado por Kimi Räikkönen em 2007. No ano passado a equipe não tinha o melhor carro do grid, mas estava bem o bastante para se manter na briga até o terço final da disputa. E caiu muito mais por erros próprios do que por falta de desempenho. Já para este ano a perspectiva não parecia tão boa quanto em 2017, e a vitória na Austrália foi claramente fortuita. Daí a equipe consegue uma inesperada pole position no Bahrein, e vai para a corrida tensa o suficiente para ter sua estratégia diretamente afetada pela Mercedes, deixando Vettel em situação muito precária nas voltas finais.

O medo de perder e repetir 2017 parece muito mais aflorado do que a simples vontade de vencer. E a inesperada liderança no mundial aliada à nova pole position na China, desta vez dominando a primeira fila, de novo fazem com que a equipe sinta-se na obrigação de agarrar a oportunidade surgida, sobretudo porque ainda não tem a confiança necessária para acreditar em vitórias sob circunstâncias normais, sem uma marcação implacável a qualquer tentativa da Mercedes de ter pista livre à frente.

É, em resumo, a postura de blefe e tensão constantes, típica dos cachorros pequenos, e de quem sabe – ou sente – que não tem condições de estar onde está, e de levar adiante as disputas que se lhes apresentam. Na prática isso tem significado que a Ferrari está mantendo sempre suas atenções voltadas ao que os outros fazem, por vezes negligenciando o que ela própria precisa fazer e comprometendo sua capacidade de estar à frente das próprias decisões. Não surpreende, por exemplo, que a equipe tenha optado por largar com pneus macios, tão logo a rival alemã sinalizou esta possibilidade.

Apagadas as luzes vermelhas, a vantagem de monopolizar a primeira fila perdeu-se de imediato. Kimi teve o melhor arranque, mas sua progressão seria bloqueada por Vettel no caminho para a curva 1. Como resultado Bottas e Verstappen deixaram Räikkönen para trás, e Hamilton só não chegou a fazer o mesmo graças a uma vigorosa manobra defensiva por parte do finlandês.

https://www.youtube.com/watch?v=BCPHsa2NDpE

Vettel agora corria sem escolta, mas ainda assim saía-se bem. Ao completar a segunda volta ele está dois segundos à frente de Bottas, e ao longo das próximas passagens irá administrar essa diferença, geralmente aumentando-a centésimo a centésimo. Ricciardo, nessa altura, era apenas o sexto colocado, ao passo que Fernando Alonso aparecia na 11ª posição, atrás das duas Renaults e dos carros da Haas.

As posições seguem estáveis ao longo das primeiras oito ou nove voltas, quando os pneus ultramacios dos carros da Red Bull começam a perder rendimento. A distância entre Bottas e Verstappen começa a crescer, até criar um hiato de aproximadamente cinco segundos entre os dois primeiros e os quatro que vinham logo atrás. Nessa altura, a vantagem de Vettel para Alonso, ainda o 11º, já era superior a 26s.

O primeiro a trocar os pneus é Brendon Hartley, na abertura da 11ª volta. Seu companheiro, Pierre Gasly, havia largado com pneus médios, e faria sua parada bem mais à frente na corrida. Após conseguir uma vibrante quarta colocação no Bahrein, a dinâmica dos carros da Toro Rosso novamente se revelaria importante para os rumos da corrida.

Na volta 15 a vantagem de Vettel sobre Bottas chega a 3,7, com Verstappen já 5,7s atrás do finlandês da Mercedes. Mas, se na pista o desempenho da Red Bull parece comprometido, nos boxes a equipe dava um show de ousadia e competência. Na abertura da 18ª volta ela chama seus dois pilotos ao mesmo tempo, e realiza as duas trocas, com intervalo não superior a cinco segundos entre elas, com rapidez e eficiência.

As parciais, tão logo retornam à pista, não deixam dúvidas de que, mesmo com pneus médios, a borracha nova era uma vantagem expressiva. Hamilton troca na volta seguinte para se defender de Ricciardo, e por muito pouco consegue retornar à pista também à frente de Magnussen. Mais alguns instantes, e Ricciardo, logo atrás, também consegue superar o piloto da Haas.

Os benefícios da troca a essa altura eram evidentes, e a Mercedes naturalmente chama Bottas na volta seguinte. O movimento era previsível, mas a Ferrari não cobriu a aposta, por algum motivo. Em vez disso a equipe segura Vettel na pista, enquanto a Mercedes faz uma troca rapidíssima e o finlandês dá início a uma volta de retorno especialmente rápida. Tendo perdido o melhor momento, restaria à Ferrari manter Vettel na pista, contando com Kimi como zagueiro, a fim de fazer apenas uma parada e apostar no ritmo mais forte na parte final da prova. Assustada com a progressão de Bottas, no entanto, a equipe chama Vettel para a troca, ficando com o pior dos dois mundos: sem a liderança, e sem qualquer vantagem significativa com relação à juventude da borracha que pudesse permitir uma ultrapassagem.

A Ferrari ainda mantém Kimi na pista, despudoradamente com o intuito de atrasar Bottas e dar a Vettel uma chance de recuperar a liderança. Ciente do risco que corria, Bottas parte para uma manobra muito decidida, por fora, no mergulho da curva 1. Estamos na volta 27, e Vettel chega quase a tocar na traseira da Mercedes, mas é preciso tirar o pé em meio ao “esse” de alta, e ao fazer isso sabe que nunca mais terá uma chance real de ultrapassagem. Até mesmo porque, andando na turbulência, seus pneus logo estariam mais desgastados do que os do rival.

Kimi vai aos boxes na primeira oportunidade após ter sido superado, e duas voltas mais tarde – estamos na 30ª – Alonso finalmente faz sua troca. A transmissão ainda acusa a presença do asturiano nos boxes quando corta para a imagem dos dois pilotos da Toro Rosso se chocando no grampo ao fim da reta oposta. Gasly vinha andando rápido com seus pneus novos e forçou uma manobra impossível. Como resultado a pista ficou cheia de pedaços de fibra de carbono, justamente no traçado utilizado pelos pilotos.

Uma intervenção era evidentemente necessária, mas cabe questionar a opção pelo safety car tradicional, inclusive com autorização para que retardatários recuperassem as voltas perdidas. O reagrupamento evidentemente afetava o andamento da corrida, colocando todo mundo junto novamente, mas também é crucial observar o momento em que a presença do carro de segurança foi anunciada. Bottas e Vettel já haviam passado da entrada dos pits, mas os carros da Red Bull ainda tinham oportunidade de aproveitar o momento para uma nova troca. Em questão de segundos a equipe convocou os pilotos e preparou outro pit stop duplo, que mais uma vez funcionou. De novo méritos ao time, reforçados pelo fato de que a Mercedes também poderia ter chamado Hamilton, mas não o fez.

A prova seria reiniciada na 36ª de 56 voltas com Bottas liderando Vettel, Hamilton, Verstappen, Räikkönen e Ricciardo, e o importante detalhe de que a Red Bull tinha pneus macios e novos em seus dois carros. A partir daí seria uma corrida franca até o fim, sem paradas nos boxes para mais ninguém. É quando começa o show de Ricciardo.

Na volta 37 ele deixa Kimi para trás. Já na volta 39 é a vez de Verstappen partir para cima de Hamilton, tentando um mergulho nada convencional, por fora, na primeira perna do “S” de velocidade. Os dois quase se tocam e Max acaba saindo da pista, perdendo a posição para o companheiro de equipe. Na volta seguinte é a vez de Ricciardo atacar – e superar – Hamilton, com a categoria de sempre. Mais duas voltas e o australiano já subia para a segunda posição, deixando Vettel para trás. Na mesma volta Verstappen finalmente consegue superar Hamilton, abrindo caça a Vettel.

As Red Bulls estavam voando, e na volta 43 Verstappen já está em posição de superar o tetracampeão da Ferrari. Ao fim da reta oposta o alemão escorrega e espalha um pouco a trajetória, e Max o acerta de forma atrapalhada, levando os dois a rodar. Hamilton contorna a cena por fora, e perde a posição para Räikkönen no processo. Vettel ainda consegue retornar à frente de Hülkenberg, mas será superado na reta seguinte e jamais voltará a ter desempenho competitivo. Pelo acidente, Verstappen teria 10s acrescidos ao seu tempo final.

Sentindo a possibilidade de vitória, Ricciardo completa seu show com uma arrojadíssima ultrapassagem sobre Bottas na volta 45, ao passo que na volta 48 Verstappen volta a superar Hamilton, ainda que, para efeitos de classificação, o inglês continuasse à sua frente.

As principais posições estavam definidas, mas o inferno de Vettel ainda não havia acabado. Nas voltas finais Alonso consegue ultrapassar Magnussen, e na penúltima volta deixa Vettel para trás, jogando o alemão para fora da pista no processo.

Como resultado da oitava posição Vettel somou apenas quatro pontos, e viu sua vantagem para Hamilton, em dia muito apagado, cair de 17 para 9 tentos na tabela de classificação.

Pensando friamente, em termos de perspectivas para o campeonato, a Vettel e a Ferrari mais vale perder uma corrida tendo ritmo para a vencer, do que vencer sem o ritmo necessário, apenas por força das circunstâncias, como aconteceu na Austrália.

Se quiser pensar seriamente em título, no entanto, a equipe precisa recuperar a autoconfiança e trazer de volta o foco para o próprio desempenho. Se a posição para Bottas não tivesse sido perdida numa sequência de hesitação e covardia, toda a história de Vettel no GP teria sido diferente, mesmo que eventualmente a vitória se provasse impossível.

Uma ótima semana a todos.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

8 Comments

  1. Rubergil Jr. disse:

    Um pouco tarde, mas me veio um fato a mente:

    Este GP de 2018 foi o primeiro GP da China da história sem Felipe Massa disputando.

  2. Rubergil Jr. disse:

    Muito boa sua coluna, como sempre. Vamos ver se o Verstappen aprende com esses erros, como Senna aprendeu com os seus e se tornou um piloto espetacular.

    Afinal, é mais fácil ensinar um piloto rápido a parar de errar, do que ensinar um piloto que não erra como ser mais rápido…

    Abraço.

  3. Mauro Santana disse:

    Belo texto, Márcio!

    E a vitória do Ricardo foi muito bonita e importante para o campeonato.

    Eu acho melhor para ele não ir para a ferrari.o campeonato está aberto.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba PR

  4. Fernando Marques disse:

    Marcio,

    como a Formula 1 virou um jogo de tabuleiro, a sua analise está perfeita … digna de quem realmente entende do riscado.
    Na coluna anterior externei minha decepção com os erros do Vertappen na pista … ontem novamente ele errou demais e parece que levou um belo pito da cúpula da RBR. Se vai valer de alguma coisa veremos mais a frente.
    A vitoria do Daniel Ricciardo foi sensacional, ainda mais por tudo o que aconteceu com ele neste fim de semana. Ele é um top driver com toda a certeza.
    Dizem que ele está conversando com a Ferrari para fazer parte da equipe ano que vem. E aí vem a pergunta: vale a pena ir para lá e ser escudeiro do Vettel? … Em termos financeiros creio até que sim, mas ir para lá fazer o que o Kimi está fazendo, seria uma regressão.
    Aliás como torcer pelo Kimi, se ele simplesmente está proibido de andar na frente do Vettel?
    No mais, a corrida foi muita boa de se ver … para isso nada melhor que uma vitoria do Ricciardo para dar uma boa embolada no campeonato

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  5. Carlos Chiesa disse:

    Brilhante. Um ponto que sempre me incomodou: o piloto que provoca um acidente leva uma punição. No caso deste GP, Max tomou 10″. Mas, não falta uma compensação para o piloto prejudicado? No caso, Vettel não teve mais um carro competitivo. Virou uma presa fácil pra turma que vinha atrás, e que em circunstâncias normais não o passaria. Muito prejuízo, sem que ele tivesse culpa, não?

    • Manuel disse:

      Caro Chiesa, o seu ponto é muito pertinente. Contudo, quando a “justiça” se rompe… é impossivel de ser restabelecida. Neste caso, modestamente creio que o causante de um acidente que cause prejuizo a outro rival, nunca deveria terminar a prova à frente desse rival.

      • Essa é uma bela tese, meu amigo.
        Obrigado a todos pelo retorno.

        • Carlos Chiesa disse:

          Pois é, rapazes, a Justiça nem sempre é fácil de ser praticada, especialmente em um meio dinâmico por natureza como a F1. Mas já que pensaram em uma não-solução como o halo, poderiam gastar tempo para resolver um problema muito mais frequente…

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