Uma primavera própria

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Querida Fórmula 1, caia fora do Bahrein!

Pula fora, Fórmula 1. Não corra no Bahrein.

Desde 2004, isso é fato, eu sou contra as corridas naquela pequena ilha árabe do Mar Vermelho. Mas o motivo era meramente esportivo. País lotado de petrodólares e sem tradição alguma no automobilismo, caiu na fala sedutora de um certo baixinho inglês e, junto a um arquiteto alemão picareta, ergueu no meio de suas areias um autódromo esteticamente belíssimo e de traçado tão emocionante quanto pegar um táxi numa tarde de quinta-feira. É um desafio tentar lembrar alguma edição minimamente “memorável”. A atmosfera, prejudicada pelo calor insuportável (a edição de 2005 foi a 40ºC), também não tem o mesmo apelo, pois não há nas arquibancadas torcedores de verdade.

Agora sabemos também que os direitos individuais e democráticos do povo do Bahrein não são de verdade. Reflexo da primavera árabe, que escancarou a falta de liberdades das nações do norte da África e Oriente Médio, e já derrubou ditadores do Iêmen, Egito, Tunísia e Líbia, país que caçou e trucidou de modo bárbaro o facínora Muamar Khadafi. Outros regimes balançam, como o do até então “moderno” Bashar al-Assad, que para não largar o osso já matou quase 10 mil de seus conterrâneos sírios. Ele está no poder há mais de uma década, depois de suceder o pai, que ficou quase três. (Muito moderno, não é mesmo?)

No Bahrein, o povo clama pela queda da monarquia da família Al-Khalifa em troca de um governo parlamentarista. Todo gabinete ministerial é apontado pelo rei e todos são membros da família real, incluindo o primeiro-ministro, há intermináveis 40 anos no cargo. O termo “nepotismo” torna-se uma redundância enorme quando falamos naquela ilha. Uma terra minúscula, com população de 800 mil pessoas e uma desigualdade brutal. Tudo é da família real, ou dos investidores ocidentais que lá se instalam.

A população quer apenas ter o direito de escolher seus representantes, na eterna disputa por igualdade entre xiitas e sunitas, que vivem a sufocar um ao outro. O governo real, claro, quer resolver tudo na base do cala-boca. Oprime passeatas na base da porrada (pois lá as manifestações precisam ser autorizadas pela monarquia), com uso de tropas de choque, gás lacrimogêneo, balas de borracha e prisões. Ou então, para aliviar a barra, promete envio de cheques à população, ao melhor estilo cabresto.

Agora os manifestantes escolheram um grande alvo: o principal evento internacional promovido pela monarquia, o GP do Bahrein de Fórmula 1. A prova passou a ser um símbolo da monarquia, portanto algo a ser combatido. É proibido hoje, por decreto real, ser contrário à realização do evento!

Em uma situação minimamente coerente, era para a Fórmula 1 tirar o corpo fora e não passar mais por aquelas bandas. Não apenas o evento se tornou um alvo político de críticas, como a própria segurança de sua realização fica em cheque. Forçar a realização da prova em troca de borrachadas em manifestantes não é em nada saudável, não importa por qual ângulo seja visto.

Em 2011, a corrida já havia sido cancelada por conta dos protestos, que naquela época eram iniciais. Os barenitas têm graves problemas internos a resolver, e a presença da Fórmula 1 só piora a situação, ao contrário das famosas excursões do Santos Futebol Clube na África, que conseguiu convencer até as sangrentas guerras tribais a fazerem uma pausa em nome do futebol. Damon Hill, figura pública que tem credibilidade de sobra, foi o primeiro a quebrar o silêncio e dizer que a Fórmula 1 arriscará sua reputação se mantiver a corrida. E cada vez mais, o bom senso aponta para uma retirada.

Os novos fatos mudaram minha visão do porquê de não se realizar corridas no Bahrein. O GP hoje é um risco desnecessário (nesse ponto, um retrocesso que nos leva a episódios como Montjuich 75) e uma mensagem de apoio a uma monarquia opressora e retrógrada. A imposição do GP do Bahrein torna-se, para o automobilismo, o símbolo máximo da manifestação de poder de Bernie Ecclestone, o único interessado em sua realização.

Ecclestone, aquele mesmo que tem fortuna de £6 bilhões, construída quase que totalmente graças à sua astúcia em lucrar com a Fórmula 1. Ao mesmo tempo, é aquele que prefere arriscar o pescoço de todos e atochar o circo em meio a uma revolução popular de paus, pedras e coquetéis molotov, do que perder dinheiro. A Fórmula 1 também vive sua própria ditadura.

Bernie parece ser aquele faraó que, quando morrer, vai exigir que seus funcionários sejam embalsamados vivos junto com ele (Herbie Blash e Charlie Whiting, cuidem-se). Parece não caber na cabeça de Bernie que ele vai morrer antes da Fórmula 1. Deste modo, fica a terrível impressão de que Bernie é capaz de matá-la, apenas para provar que ainda é e ainda está no poder. Há quanto tempo Bernie enriquece a custa da Fórmula 1 mesmo? Ninguém discute que o circo jamais seria tão grande e profissional, não fosse seu trabalho. Mas já passou a hora de passar o bastão aos mais jovens.

Nos últimos meses cheguei, junto com meus colegas de GPTotal e os fiéis leitores que sempre comentam nossas colunas, a uma constatação preocupante: a Fórmula 1 não se apresenta como um produto atraente para a juventude. Não, não estamos falando de modo algum sobre níveis de audiência, pois isso é coisa de investidores tubarões, de gente insensível, desprovida de espírito esportivo, que está lá só por causa da grana e enxerga números ao invés de pessoas. Nossa preocupação primordial é ver poucos jovens entusiasmados com aquilo que a gente gosta tanto e não renuncia de jeito algum. A gurizada de hoje prefere assistir desenho animado a ver os tais carrinhos correndo, como lembrou o leitor Artur Cardoso. Sem olhos nos mais jovens, como a Fórmula 1 pensa em sobreviver?

Fico minimamente esperançoso em saber pelo grande fotógrafo Paul-Henri Cahier, que existe uma chance de ser anunciado o cancelamento da corrida, marcada para 22 de abril, durante o fim de semana do GP da China, dia 15. Bem é verdade, isso já deveria ter sido feito há muito tempo e sempre fica a apreensão do que Bernie é capaz.

Assim como o povo barenita, a Fórmula 1 também deveria procurar sua própria primavera. Apenas as minorias opressoras e avarentas sairiam perdendo.

Aquele abraço!

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

8 Comments

  1. Sandro disse:

    Corrigindo: Golfo Pérsico ao invés de Mar Vermelho.
    F-1 para quem tem 40 anos de idade ou mais!
    20 anos de idade? Nem pensar!
    1974: corrida extra-campeonato em Brasilia (tem hifen?) com o nome oficial de Grande Premio Presidente General Medici ou qualquer coisa parecido com isso.
    Money talks!

  2. Lucas Giavoni disse:

    Claro! Caiu a ficha!

    Pessoal, peço desculpas por demorar tanto para perceber o porquê do silêncio de Jean Todt. O apoio a sua gestão está pesadamente ligado aos automóveis-clube do Oriente Médio, e o xeique Abdullah Al-Khalifa, segundo filho do rei do Bahrein, foi um dos homens fundamentais na campanha de eleição do pequinino francês na FIA.

    Hoje Abdullah é presidente da Comissão Internacional de Karting. E é óbvio que o Bahrein tem uma enorme tradição no kartismo.

    Trata-se portanto do bom e velho “rabo preso”. Se Todt voltar-se contra o GP do Bahrein, pode perder todo o seu apoio no Oriente Médio e poderá ficar sem base aliada. Sua “governabilidade” (ô palavrinha asquerosa) pode ser totalmente comprometida.

    Política, política e mais política. Tudo cheira muito mal.

    Aquele abraço!

  3. Fernando Marques disse:

    Pelo que andei lendo as equipes podem boicotar o GP do Bahrein e que o todo poderoso Tio Bernie em nada poderia interver ao contrario …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Lucas Giavoni disse:

      Oi Fernando!

      Trata-se de mais uma jogada ardilosa do Tio Bernie.

      Ao dizer que as equipes tem opção, a frase que ele realmente quis dizer é: “Vocês podem desistir de correr se quiserem, mas se entendam com multas contratuais astronômicas e punições esportivas que a FIA deverá impor a vocês”.

      É óbvio que a intenção da frase, para o público, é dizer que ele não vê motivo de não se realizar a prova (sim, ele sabe se fingir de velho cego) e joga para as equipes a responsabilidade serem “amarelonas”, de não estarem pensando nos fãs etc.

      O que mais me deixa espantado, e isso eu acabei não colocando no texto, é a passividade de Jean Todt. Ele está quieto demais, e aparentemente fazendo o que Bernie pede. Ainda não endendi o que ele quer a curto e a médio prazo. A longo, desconfio fortemente que ele queira cortar a cabeça do velho.

      Aquele abraço!

      Lucas Giavoni

    • Fernando Marques disse:

      Se for assim quem vai boicotar? … Pelo visto nenhuma equipe …

      Fernando Marques
      Niterói RJ

  4. Mauro Santana disse:

    Amigos do GPTotal!

    Em condições normais, já não assistiria a esse GP, pois ele não combina com a minha F1.

    Minha!?

    Sim, somos todos um pouco donos dela.

    E também, porque a F1 que eu apreendi a amar, quase não existe mais.

    E do jeito que estão as coisas por lá, no Bahrein, me nego totalmente a acompanhar este GP.

    Abraço a todos!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  5. Lucas Rodrigo dos Santos disse:

    Sou completamente contra essa corrida, como a maioria do pessoal.

    Não consigo ver condições dela ocorrer. Após ver as fotos desta coluna pude notar que a situação está pior do que eu pensava.

    Fico pensando na quantidade de vidas a serem colocadas em risco. Não somente dos pilotos, equipes e demais pessoas envolvidas na realização do evento. Mas a integridade do público, dos torcedores e, principalmente, dos turistas fica ameaçada.

    Bernie Ecclestone afirmou à imprensa que não terá prejuízos se a corrida não for realizada, pois dessa vez o governo o pagou adiantado. Se ele não terá prejuízos eu fico me perguntando o que ele ganhará em realizar a prova?

    Será que ninguém percebe que a Fórmula 1 nesse país será um mero “objeto” que será “usado” pelas duas frentes desse impasse? “Objeto” esse que corre o grande risco de ser “jogado fora” após o “uso”.

  6. Fernando Marques disse:

    Quando a politica se mete no esporte nada presta

    Fernando Marques
    Niteroi RJ

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