Carros de outro planeta II

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Às vezes, só um carro de outro planeta não é o bastante para se tornar campeão.

Segue o desfile de carros do outro planeta, iniciada em 21/10/2011.

Mercedes W196

Em 54, chega o Mercedes W196, a quem só pode ser atribuído o adjetivo de “magnífico”, mais parecendo uma limusine em meio a carros populares – com uma diferença de preços equivalente. Cada W196 devia custar, entre projeto, construção, testes e manutenção, sem exagero, o orçamento de todo o resto do grid para o ano inteiro. E, absolutamente avessa ao risco, a Mercedes ainda recrutou o melhor piloto disponível, Juan Manuel Fangio. Resultado: a equipe disputou, entre 54 e 55, 12 GPs, vencendo nove deles, oito com Fangio e um com Stirling Moss, então uma jovem promessa do automobilismo.

Força dominante do automobilismo internacional nos anos 30, a Mercedes se reergueu incrivelmente rápido depois da II Guerra, sendo readmitida na Fia em 1950. Dois anos depois, já vencia as 24 Horas de Le Mans. Foi então que a decidiu partir para a Fórmula 1.

O regulamento havia mudado para a temporada 54, passando a acolher carros com motores de 2,5 litros. Ferrari e demais equipes não investiram na ideia e optaram por continuar com motores do ano anterior, de dois litros, o que facilitou um pouco a vida da Mercedes… Ela optou por um motor de oito cilindros em linha, potente e muito sofisticado do ponto de vista de engenharia.

O chassi do W196 era tubular e os freios a tambor! A suspensão do carro usava barras de torção, que só voltariam a ser usadas na categoria no Lotus 72, o carro que deu o título a Jochen Rindt e Emerson Fittipaldi em 70 e 72. O regulamento permitia e os engenheiros construíram o W196 em duas versões: uma clássica, outra com rodas cobertas, para ser usado em pistas velozes. Hoje, essa opção é proibida pelo regulamento.

Os Mercedes não ficaram prontos para o início da temporada. A estreia só aconteceu no 3º GP do ano, em Reims, na França, disputado em 4 de julho. Desde logo, a superioridade da equipe ficou patente. Fangio marcou a pole, derrubando o tempo do GP de 53 em doze segundos! Na corrida, liderou com tranquilidade, colocando uma volta de vantagem sobre o 3º colocado. Outro Mercedes, pilotado por Karl Kling, chegou em 2º.

Imediatamente, o mundo passou a associar a palavra “imbatível” ao carro, só para ser desmentido duas semanas mais tarde. Em Silverstone, os Mercedes acumularam problemas e terminaram batidos pela Ferrari. Ainda usando a carroçaria fechada, Fangio teve dificuldades para enxergar a pista e terminou com os para-lamas dianteiros amassados em choques com barris metálicos cheios de areia para demarcar a pista. Depois disso, a equipe passou a usar com mais frequência a versão do W196 com as rodas descobertas.

Estava quebrada a mística do carro. Ele era sim de outro planeta mas não imbatível. Em Monza, precisou de sorte para vencer e na Espanha, última corrida do ano, perdeu novamente para a Ferrari, Fangio terminando em 3º, somando pontos que lhe deram uma vitória folgada no Mundial.

O W196 estava de volta em 55. Fangio venceu todos os GPs do ano menos Mônaco, onde quebrou, e Inglaterra, onde terminou em 2º, até hoje restando dúvidas se deixou seu jovem companheiro de equipe, Moss, vencer.

Nesta altura, o destino dos W196 já estava selado. Um mês antes do GP da Inglaterra, havia ocorrido o terrível acidente em Le Mans, provocado por um piloto da Mercedes e onde morreram mais de 80 pessoas. Dias mais tarde, a equipe já havia decidido abandonar as competições ao final do ano e assim foi feito.

Separador

Lancia Ferrari D50A

O Lancia Ferrari D50A é um carro de outro planeta, não se discute, mas relutante, ungido pelo vácuo da Mercedes. Olhando para a classificação do Mundial de 56, sua condição extraordinária não transparece: Fangio venceu o campeonato daquele ano pilotando o modelo com apenas três pontos de vantagem mas, se houvesse naquela época um Mundial de Marcas – que foi instituído só no ano seguinte -, o Lancia Ferrari venceria com sobra: 52 pontos contra 40 da Maserati, 2ª colocada no campeonato virtual. Em sete GPs, o D50A ganhou cinco.

A origem do carro é pra lá de inusitada. Foi construído pela Lancia em 54, tendo sido inscrito por ela na prova final, na Espanha. Lá, Alberto Ascari marcou a pole, mesmo diante dos Mercedes, e liderava quando o carro quebrou.

Em 55, a equipe participou dos três primeiros GPs e podia ter vencido em Mônaco, não tivesse Ascari perdido o controle e mergulhado nas águas da baia, naqueles tempos pré-guard rails.

Depois disso, a situação financeira da Lancia se deteriorou a tal ponto que seus proprietários a venderam para a Fiat mas a operação não incluiu a equipe de corrida. Misturando argumentos patrióticos e uma boa doação em dinheiro da Fiat, a Lancia decidiu doar seus carros, projetos, peças etc. para a Ferrari. Foi uma manobra providencial pois a equipe estava sendo massacrada pelos alemães e também pela Maserati.

A Ferrari só passou a usar os D50 em 56, ligeiramente remodelados. Eles haviam sido projetados por Vittorio Jano, que participara da equipe que criou os Alfetta, e eram equipados com um motor incrivelmente compacto de oito cilindros em V. A Ferrari adicionou um A, de “ameliorato” a designação do modelo e sofreu durante todo o ano por usar pneus da marca Engelberg, bem inferiores aos Pirelli.

Fangio ganhou na Argentina, Inglaterra e Alemanha. Terminou em 2º em Mônaco, naquela que talvez tenha sido a pior corrida da sua carreira: ele rodou e bateu seu Lancia Ferrari, passou ao de outro companheiro mas como o carro rendi pouco, optou por assumir o carro de um terceiro companheiro de equipe, de forma que terminou o GP em 2º e 4º.

O aperto final na pontuação de Fangio se deve ao fato de ele ter vencido na Argentina dividindo o carro com outro piloto, o que lhe deu apenas metade dos pontos. O mesmo aconteceu em Mônaco e Monza, onde ele terminou em 2º, junto com Peter Collins.

O título de Fangio, o 4º da sua carreira, deve-se ao extraordinário espírito esportivo de Collins que, espontaneamente optou por ceder seu carro ao argentino, mesmo tendo chances matemáticas de se tornar campeão da temporada.

Às vezes, só um carro de outro planeta não é o bastante para se tornar campeão.

Abraços

Eduardo Correa

Eduardo Correa
Eduardo Correa
Jornalista, autor do livro "Fórmula 1, Pela Glória e Pela Pátria", acompanha a categoria desde 1968

4 Comments

  1. Sandro disse:

    Mercedes W196 (W de “wagen” = carro)… um carro fenomenal e moderno para a época! E com El Chueco faturando o titulo em 54/55!
    Surreal o acidente da Lancia D50 de Ascari em Montecarlo. Liderava a corrida. Ele morreria num teste particular em Monza tres dias depois! O local ganhou o nome de Variante Ascari.
    Peter Collins: “Fangio merecia ganhar. E eu terei chances de ser campeão futuramente”. Infelizmente Collins morreu…

  2. Bruno Wenson disse:

    Desculpem. Na nona linha cometi um erro: Leiam ” Piquet teve o mesmo carro que Mansell em 86, 87.

    Grato.

  3. Bruno Wenson disse:

    É verdade. Vejamos exemplos modernos, que fazem brasileiros pensarem (se quiserem). Patrese teve o mesmo carro que Mansell. O que patrese ganhou?… Berger teve o mesmo carro que Senna em 90, 91. O que Berger ganhou?…Frentzen teve o mesmo carro que Villeneuve em 97. O que ele ganhou? Coulthard teveo mesmo carro que Hakkinen. O que Coulthard ganhou?… Fisichella e Trulli tiveram o mesmo carro que Alonso. O que eles ganharam? Kovalainen teve o mesmo carro que Hamilton, Webber, o mesmo carro que Vettel. O que eles ganharam?…
    Por fim, o mais doloroso para muitos: Barrichello teve o mesmo carro que Schumacher (E isso ele sempre falou, inclusive no Fantástico em rede nacional). O que Barrichello ganhou?…
    Agora, leia mais um pouco e compare: Piquet teve o mesmo carro que Piquet em 86, 87. Prost teve o mesmo carro que Lauda em 84, e o mesmo carro que Senna em 88, 89. Alonso teve o mesmo carro que Hamilton em 07. Villeneuve teve o mesmo carro que Hill em 96. E os combates e disputas foram parelhos entre esses grandes pilotos.
    Assim, não basta ter um carro fantástico. É preciso ser um piloto fantástico também. Como disse Piquet uma vez: “Fazer uma volta rápida é facil. Dificil é fazer 70 voltas rápidas”.
    É aí que os gênios se separam dos normais.

    Valeu, pessoal.

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