Carta (e resposta) a Bernie

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Acredite se quiser: em 2004, troquei correspondência com Bernie Ecclestone...

Em 29/11/2004, em meio a uma daquelas crises da F1, publiquei aqui neste espaço carta aberta a Bernie Ecclestone. Foi o seguinte o texto da carta:

Caro Sr Ecclestone

Respeitosamente dirijo-me aos Sr., ainda que ache pouco provável que venha a ler estas palavras. Mesmo assim, lhe peço: atenda ao apelo de milhões de fãs da Fórmula 1 em todo o mundo e ceda, salvando a categoria mais importante do automobilismo, a única que tem legitimidade para eleger um campeão mundial.

É preciso ceder, sr. Bernie, não há alternativa. Os principais construtores – Ferrari, McLaren/Mercedes, Renault e BMW, ainda que não necessariamente a Williams – exigem uma nova divisão do formidável bolo de dinheiro, coisa de US$ 2 bilhões, que o sr. arrecada todo o ano, ficando com US$ 1,5 bilhão e dividindo o saldo pelas dez equipes.

O sr. ganhou, merecidamente, bilhões de dólares nas últimas décadas, tornando-se um dos homens mais ricos do mundo, ao liderar a transformação de uma categoria semi-amadora em atração global só comparável à Copa do Mundo e às Olimpíadas. Fez isso em grande parte por méritos próprios, com a sua determinação, dinamismo e visão de negócios equivalente ao dos maiores tycoons da humanidade.

Mas o sr. parece ter ficado cego com o próprio sucesso e refém de uma ambição que não tem fim. É verdade que se não fosse o sr., não haveria tanto dinheiro assim e foi por isso que construtores e equipes concordaram em ceder-lhe tanto. Afinal, o risco e o trabalho eram todos seus.

Os tempos são outros, porém, e o sr. não pode considerar injusto a proposição dos construtores e equipes. Eles têm de se virar apenas com o dinheiro dos seus patrocinadores, um dinheiro cada vez mais escasso e difícil, enquanto têm de investir quantias cada vez maiores em desenvolvimento, tecnologia, equipes, marketing etc.

Sei que é difícil para qualquer pessoa ter tanto dinheiro e abrir mão de parte dele. Sei que não é próprio da natureza humana este tipo de generosidade. Mas veja o preço que terá de pagar caso não ceda. Com o fim do Pacto da Concórdia, em 2007, Ferrari, McLaren, Renault, uma equipe equipada com motores BMW (talvez a própria Williams se bem que nunca se sabe o que vai sair daquelas cabeças teimosas) e provavelmente Honda e Toyota vão organizar o próprio campeonato.

É verdade que, pelo menos nos primeiros anos, este novo campeonato não poderá se utilizar das pistas da Fórmula 1 atual, todas elas amarradas por contratos de longo prazo com o sr. Também não poderá usar a marca Fórmula 1, que o sr. comprou por cem anos da Fia por uma ninharia. Mas os construtores irão em frente porque têm muito dinheiro para investir e levarão consigo a Ferrari, a equipe que é sinônimo do melhor automobilismo de competição.

E ao sr., caso não ceda, restará organizar uma Fórmula 1 emasculada, apenas com equipes pequenas e sem expressão, correndo em autódromos gigantescos como o da China e Bahrein muito provavelmente com arquibancadas vazias, como as que costumamos ver nas corridas de IRL e Champcar.

Vale a pena, sr. Bernie?

Certamente não vale, tanto mais para um homem como o sr., que ama as corridas e que, em Monza 70, teve a coragem de ir até o local do acidente mortal do seu protegido Jochen Rindt, voltando de lá a passos firmes, o capacete do austríaco sob o braço, para dar a notícia à viúva.

Por isso, atenda ao nosso apelo: ceda. Com seu talento e inteligência será possível buscar uma saída honrosa, deixando o seu nome ainda mais lustroso para as gerações futuras.

Ainda há tempo. O homem que fez em grande parte a Fórmula 1 moderna não pode ser o mesmo que a levará ao túmulo.

Atenciosamente

E.C.

Em 13/12/2004, chegou a seguinte resposta. Nunca pude apurar se verídica ou não:

Caro jornalista

Não seja tolo!

Você pede o impossível. Quer que eu abra mão de tudo o que conquistei e entregue a F1 embalada em papel de presente para as montadoras que, em termos históricos, acabam de chegar? E você tem a coragem de me pedir isso logo depois do papelão da Ford, que virou as costas para a categoria sem qualquer aviso prévio, só porque vem acumulando prejuízos?

Pois vá sonhando – você e as montadoras. Não vou abrir mão de nada, não vou ceder nada, não vou dar nada a ninguém.

Você pode pensar que eu estou sendo ganancioso. Desculpe a franqueza, mas isso é típico de quem fica de fora, olhando pessoas que, como eu, transformam as coisas. Você acha mesmo que fiz tudo isso só pela grana? Acha que já não tenho o suficiente para eu, minhas filhas, netos, bisnetos e tataranetos? Acha que me abalo até cantos remotos do planeta como este horrível Interlagos só porque quero subir naquela ridícula lista dos mais ricos do mundo?

Será possível que você e os que me criticam não são capazes de ver que, no exato momento em que virar as costas, tudo o que a Fórmula 1 conquistou vai começar a ruir? Você não entende que só eu sou capaz de manter esta operação incrivelmente complexa funcionando bem e no horário? Que há literalmente milhares de detalhes a serem resolvidos, das acomodações dos convidados aos painéis de publicidade, dos controles de segurança às instalações para a imprensa (aliás, nunca lhe ocorreu reclamar do conforto que oferecemos para você e seus colegas trabalharem, não?).

Você reclama que faturo US$ 2 bilhões e fico com US$ 1,5 bilhão, deixando o resto para as equipes. Pois você sabe quanto elas ganhavam antes de eu organizar a Fórmula 1? Uns trocados dos donos dos autódromos. Estes US$ 2 bilhões não existiam antes que eu começasse a trabalhar neles. Se existem hoje foi porque eu corri atrás de cada dólar. Ensinei aos donos de autódromo o lugar deles, arranquei centavo por centavos das redes de TV, dos patrocinadores, dos fornecedores e dos licenciados que vendem estes cacarecos com marcas das equipes. E agora você quer que eu abra mão deste dinheiro e o entregue para as equipes?

Logo elas, que nunca tiveram que esquentar a cabeça porque sempre tiveram a minha cabeça para esquentar, inclusive quando o dinheiro acabava no meio da temporada e vinham chorar no meu ombro. Você tem ideia de quantas equipes ajudei? E não venha me dizer que elas estão gastando demais. Não sou quem as força a torrar milhões e milhões de dólares nos salário dos pilotos e engenheiros. Não sou eu quem as força a construir túneis de vento. Se querem torrar dinheiro como se ele desse em árvores, que o consiga por conta própria. Ocorre a você gastar R$ 1 milhão por mês no GPTotal e depois apelar para seu vizinho, querendo que ele pague as suas contas? Pois é exatamente isso que as montadoras estão querendo.

Mas deixe-as pensarem que estou encurralado. De noite, dou risada e lembro daquele pessoalzinho ridículo da Cart que, há uns dez anos, achou que podia comigo. Olha só ao que eles estão reduzidos hoje.

Fique você sabendo que tenho nas mãos os contratos com todas as grandes redes de TV e todos os autódromos mais importantes do mundo. As montadoras querem organizar um campeonato de Fórmula 1? Pois quero ver eles terem de se arranjar com o autódromo de Jacarepaguá ou, aqui na Inglaterra, com Donington, porque Interlagos e Silverstone, assim como Mônaco, Bahrein, Malásia etc. etc. estão na minha mão, com contratos bem amarrados por muitos anos ainda.

E quero ver quem vai transmitir as corridas porque as grandes emissoras do mundo, todas elas, também têm contrato assinado comigo.

Enquanto isso, o que as montadoras têm? Três equipes – Ferrari, McLaren e Renault –, um motor – o BMW (porque a Williams nunca disse que estava alinhada com as montadoras) – e um contrato com uma empresa que disse ser capaz de organizar o campeonato para eles ainda que nunca tenha feito nada parecido. Pois eu também sou capaz de construir um foguete e ir até a Lua.

E mais: estes bancos otários que hoje têm 75% da minha empresa podem sonhar que vão tomar a administração da Fórmula 1 das minhas mãos. Eles sabem que meu contrato com a Fia, que me deu a organização do campeonato por 100 anos, contém uma cláusula pela qual ela pode rompê-lo a qualquer momento caso o controle da minha empresa mude de mãos.

Os bancos, as montadoras, as equipes e você e seus amigos jornalistas pensam que são espertos. Pobres tolos! Acho que foi um compatriota seu quem disse: “vocês vão ter de me engolir”.

Pois é…

B.E

Eduardo Correa
Eduardo Correa
Jornalista, autor do livro "Fórmula 1, Pela Glória e Pela Pátria", acompanha a categoria desde 1968

2 Comments

  1. Paulo disse:

    Prezados amigos do GPTotal

    Solidarizo-me ao apelo aflito do Edu, na qualidade de amante da Fórmula 1 que também sou (apesar dos pesares e de todos os tempos) e que, penso eu, tem por objetivo principal alcançar a condição necessária para a perpetuação da categoria. Independentemente de opiniões e qual seja a mais certa, o que deve valer mesmo é PERPETUAR A FÓRMULA 1!

    Naturalmente, um “esvaziamento” em grande escala e de grandes marcas me parece que possa, sim, por em risco toda uma história escrita com suor, lágrimas e muito sangue, que é o caso da Fórmula 1.

    Por outro lado, não posso deixar de considerar as razões que o Sr. Bernie expôs, em sua provável carta-resposta. Claro que os motivos variegados expostos (de ambas as partes, Edu x Bernie) não são absolutos, porém reais e dignos de consideração, cada um deles e em cada detalhe explanado.

    Mesmo considerando o risco de “esvaziamento“ da categoria, me pareceu que os motivos do Sr. Bernie fossem muito tangíveis, pois embora importante a participação das Montadoras, a F1 tem em suas próprias origens, a ausência (pelo menos oficial) das referidas Montadoras.

    Verdadeiramente podemos concluir sim, que a Fórmula 1 atual é o que é graças ao trabalho do Sr. Bernie, o que não o isenta de ter cometido erros, excessos e outras mazelas pertinentes à grandiosidade de seu empreendimento e das questões intrínsecas à natureza humana.

    Passados praticamente 10 anos da troca de cartas em questão, o “senhor da razão “, o tempo, parece ter homologado a decisão do Sr. Bernie como correta. Afinal, as Montadoras se fazem presentes e em maior número. Afinal, ter a Fórmula 1 escrita em sua história, é um legado que qualquer marca deseja.

    Para os que não lembram ou que acompanham ao nosso querido GPTotal há pouco tempo, tomo a liberdade de lembrar e / ou informar que esta minha opinião é tão antiga quanto às cartas em questão, posto que, tomei a liberdade de opinar a respeito desse tema no GPTo, sob o título de “Automobilismo de Competição X Montadoras“ e ao que lembre, datada 2005.

    Forte abraço à Família GPTotal!

    Paulo C. Winckler

  2. Mauro Santana disse:

    rsrsrs é o que nos resta, RIRRRRRRRRRRRRR

    rsrsrs

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

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