Gigante incompatível

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A história da Toyota na Fórmula 1 - um casamento que teria tudo pra dar certo, mas não deu.

Hoje a Toyota possui uma sólida equipe no Mundial de Endurance (WEC). O modelo TS 040 Hybrid é o melhor carro da temporada – superior aos seus rivais igualmente híbridos, Audi R18 e Porsche 919. Por pouco não venceram Le Mans, mas devem faturar o campeonato, que inclui as 6 Horas de São Paulo, disputada em Interlagos.

Estes dias vitoriosos da Toyota nunca aconteceram na Fórmula 1. E assim que a marca anunciou o fim das atividades na categoria no fim de 2009*, escrevi um texto para desvendar os motivos que levaram esta gigante japonesa a não triunfar na F1 como sempre fez no mundo automotivo.

É fato que a crise econômica tenha sido fator crucial para a retirada da Toyota da F1. Afinal, a empresa perdeu uma invencibilidade de 71 anos seguidos de lucratividade, encerrando o balanço anual no vermelho. Não poderia haver motivo melhor para que o alto escalão literalmente tirasse o time de campo.

Mas é necessário colocar na equação que o comovente anúncio do fim pelos diretores, em 4 de novembro, só aconteceu porque o time não mostrou resultados compatíveis com a liderança que a Toyota possui no mercado mundial de veículos.

Fica apenas o questionamento: caso conseguisse Kimi Räikkönen e/ou Robert Kubica como pilotos – ou pelo menos um deles –, a Toyota permaneceria na F1 em 2010? Ou foi apenas um desvio de atenção para a mídia enquanto o fim da equipe era planejado a portas fechadas?

A história da Toyota F1 nos remete a criação do departamento de competição de rally Toyota Team Europe em meados dos anos 70. Em um primeiro momento, a equipe instalou-se em Londres, mas no fim daquela década, se mudou para Colônia, Alemanha, como forma de melhorar a logística de transporte para as competições que disputavam por toda a Europa.

O departamento de rally logo daria espaço para os novos planos: vencer Le Mans com o GT-One, belíssimo carro que, apesar de excelente, que não triunfou nos anos em que tentou, 98 e 99. Em seguida, o prédio em Colônia foi ampliado e profundamente modernizado para desenvolver, a partir de 2000, o projeto F1.

E eis que surge a ironia. Se para a pequena equipe de rally, sair da Inglaterra foi melhor para a logística, o mesmo não se pode dizer sobre uma grande equipe na F1. Estar longe da Inglaterra – coração da categoria, da grande maioria dos recursos humanos (o bom e velho know-how) e das matérias-primas – foi um problema, um tanto parecido com o que padece até hoje a Sauber, que tem como endereço Hinwill, Suíça.

Complicações geográficas à parte, um dos principais motivos para o malogro da marca na F1 em oito temporadas é o fator filosófico. Esta é uma variável das que menos se comenta – ao mesmo tempo em que é uma das mais importantes, pois fez essa gigante chamada Toyota tornar-se incompatível com a F1.

Podemos, desde já, ter certeza que a receita de sucesso para fazer da Toyota líder de vendas no mercado automotivo com seus consagrados e confiáveis veículos não é a mesma para criar um modelo de competição que consiga vitórias e títulos.

Isso é bastante fácil de ser entendido quando pegamos como exemplo uma linha filosófica genuinamente contrária, como a de Colin Chapman. O fundador e projetista da Lotus era o tipo de gênio que ficava horas e horas pensando maneiras de conseguir alguma novidade para seus modelos de corrida. Até aí, nenhuma novidade, pois isso é premissa básica na competição. Colin, no entanto, sempre queria uma vantagem brutal, uma inovação revolucionária o bastante para simplesmente humilhar a concorrência.

Não faltam exemplos de criações que fizeram da Lotus um time multicampeão: chassi monocoque, aplicação de aerofólios, chassi em formato cunha, radiadores laterais, freios embutidos, aplicação do efeito-solo, saias laterais de controle de fluxo etc. Todas essas ideias, sem exceção, resultaram em títulos para a Lotus.

Sim, Colin deu muitos tiros n’água, como as tentativas de aplicação de turbinas, tração nas 4 rodas ou saias de comprimento total. Mas ele não tinha medo de arriscar, pois sempre considerou valer a pena.

Esse tipo de apreço por soluções revolucionárias, que também são da linha do grande Gordon Murray, jamais fez parte da rotina da Toyota F1. Eles sempre seguiram à risca o conceito do passo a passo, com evoluções programadas e planejadas – a filosofia oriental Kaizen, palavra japonesa que pode ser traduzida como “melhoria contínua e gradual”, uma espécie de “hoje melhor do que ontem, amanhã melhor do que hoje”.

O Kaizen, de fato, pode perfeitamente ser aplicado a um produto como um Corolla, pois isso transforma o próprio projeto do carro em um referencial fixo – e que é passível de melhoramentos com os avanços em pesquisa e desenvolvimento, o famoso R&D (research and development). A qualidade do carro torna-se tão boa que acaba por ser bem aceito pelo mercado. E melhor, num método que combate drasticamente desperdícios de qualquer natureza.

Mas, ao mesmo tempo, este método cria dificuldades de ser aplicado no esporte a motor, pois seu referencial não é mais seu próprio carro, mas sim os carros que a concorrência projeta – ou seja, o alvo agora é móvel. Usando a própria terminologia de explicação do Kaisen, “o hoje pode ser pior que o ontem”, já que o concorrente pode ter projetado um carro melhor, de modo mais rápido ou mais criativo.

Na prática, o Kaisen transformou a Toyota F1 em uma estrutura engessada, pouco flexível, que sempre precisou ‘correr atrás’ – e isso nos dois sentidos do termo. Ficou sempre difícil reverter os prejuízos pelo simples pavor de arriscar ou desperdiçar seja lá o que for.

Se os projetos iniciais nasciam de modo um tanto “básico” para serem melhorados paulatinamente, não havia tempo – ou mesmo possibilidade técnica de projeto – para subir todos os degraus até deixar o carro competitivo.

Ao refrescarmos a memória, vamos lembrar que a Toyota era sempre a primeira a revelar seu novo carro a cada temporada. Eles inclusive se deram ao luxo de construir um protótipo em 2001 (TF101) apenas para testes e criar, com os dados recolhidos durante um ano inteiro, um novo modelo (TF102) para a estreia em 2002.

Sempre que a Toyota apresentava um modelo novo, era difícil perceber o que havia mudado entre uma geração e outra – mudanças tão sutis que quase não dava pra sacar que era o carro novo. Por três anos seguidos (2004-06), eles fizeram revisões no carro durante a temporada, as variantes “B”. O TF106B, por exemplo, substituiu a versão inicial já na 8ª prova da temporada.

A própria Toyota percebeu o quanto era difícil trabalhar com uma base que precisava ser aperfeiçoada – principalmente, claro, quando era mal nascida. Talvez o melhor exemplar disso foi o carro de 2007, tão imprestável que, para 2008, a equipe quebrou as próprias regras e começou o novo projeto do zero.

E claro, tal fiasco resultou em guilhotina para o projetista Mike Gascoyne, que havia sido contratado no fim de 2004 a peso de ouro para substituir o veterano Gustav Brunner. Mike, que fez fama na Jordan e na Renault, posteriormente seria chutado também por Force India e da atual Caterham.

Ao fundamental problema filosófico, podemos adicionar alguns agravantes. (Não todos, porque não sou gestor de crises – e porque o que era pra ser uma coluna acabaria virando um catálogo telefônico).

Já que os carros da Toyota precisavam melhorar aos poucos, outro problema do Kaizen foi o grande incentivo do que é possível classificar como “febre dos apêndices”.

Esta doença fez com que os carros da F1 ganhassem, ano após ano (e posteriormente GP após GP), mais e mais asas, asinhas, aletas, difusores, lemes, barbatanas, profundores e afins, tudo para otimizar a aerodinâmica. A Toyota sempre foi uma das que mais lançou moda nesse aspecto – e pior, sem tirar qualquer vantagem disso.

A maioria dos novos apêndices que eles apresentavam como melhoria, a custa de intermináveis horas em túneis de vento, era logo assimilada por outras equipes, que também faziam seus upgrades e anulavam qualquer vantagem possível.

O principal efeito colateral dessa desenfreada e cara febre foi a cruel impossibilidade aerodinâmica dos carros andarem próximos uns dos outros. Ao somarmos a isso os pneus sulcados e os reabastecimentos, tínhamos um cenário perfeito para que fosse impossível ultrapassar na pista – problema tão grande que o regulamento 2009 programou um extenso pacote de restrições às aletas e a volta dos slicks.

O último dos agravantes chama-se Max Mosey. Ah, sim senhor, Mosley de novo. Os leitores do GPTotal têm todo o direito de achar que eu sou um tipo de agente da “Santa Inquisição do Ofício Automobilístico”, sempre a achar motivos para condenar o ex-presidente da FIA por alguma heresia e atirá-lo na fogueira sempre que havia uma crise na F1. E desta vez foi ligar o cara com a saída da Toyota…

Bem, a verdade é que Mosley sempre ofereceu subsídios de sobra para ser criticado e, por que não, ridicularizado pelo seu papel frente a FIA em uma década e meia de gestão que não deixará saudades.

Bem, uma vez que tenhamos relevado o fato que a Toyota é adepta do conceito de melhoria gradual, como aplicar o Kaizen de modo satisfatório em uma F1 de mudanças tão abruptas de regulamento da desastrosa gestão Mosley?

OK, a Toyota saiu porque quis sair – mas todas as atitudes absurdas de Mosley, como a de quase rachar a F1, só agravaram a situação. Mosley saiu, em seu lugar está Jean Todt. Mas pode colocar a saída da Toyota na conta dele também.

Um mínimo de estabilidade na F1 e a Toyota talvez pudesse ter mais chances de desenvolver seus carros através do Kaizen. Ao invés disso, a equipe sai com um cartel de apenas 3 poles e 13 pódios em 140 provas.

Incompatível para um gigante.

*Coluna publicada originalmente em 16/11/2009

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

6 Comments

  1. Lucas disse:

    Todo castigo pra Mosley é pouco.

    • Lucas Giavoni disse:

      Sem dúvida! Foram 15 nos de vergonha na gestão esportiva na F1. E dado o passado do dirigente anterior, o famigerado Balestre, tínhamos com ambos 100% de amostragem de NAZISTAS no comando do esporte que tanto estimamos…

      Abração!

      Lucas Giavoni

  2. Fernando Marques disse:

    A unica boa lembrança que tenho da Toyota na F.1 foi o 6º lugar alcançado pelo Cristiano da Matta em Monaco se não me engano em 2006 que me rendeu como premio um livro Anuário da F.1 de 2005 presenteado pelo GP Total por ter acertado quem chegaria em 6º lugar no GP de Monaco citado.
    Fora isso a trajetória da Toyota na F1 sempre foi marcada pelos grandes volumes de dinheiro que a fabrica injetava na equipe ( se bobear até maior que a da Ferrari de Schumacher) e de não obter resultados expressivos em razão disso …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  3. Sandro disse:

    E a rival Honda, pelo menos, teve uma inacreditavel vitoria com Button em Hungaroring 06!

    • Lucas Giavoni disse:

      Sim, Sando, a Honda ainda deu sorte. Trulli poderia ter vencido a corrida interrompida de Sepang 2009, e era pole da famosa corrida da vergonha em Indianápolis 2005.

      Entretanto, a Honda, apesar de também investir pesadamente também mostrou falhas administrativas graves. Tomar pau da satélite Super Aguri foi bastante vexatório. E esses problemas só seriam curados, vejam só, quando a equipe entregou as chaves para Ross Brawn…

      Abração!

      Lucas Giavoni

      • Ronaldo disse:

        Aproveitando o gancho, existe alguma evidência de como poderia ter sido o desempenho do TF 110? Poderia ter sido outra Brawn se alguém tivesse arrematado o projeto?

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