O mais fácil e conveniente

Experiências na Fórmula 1: os carros de 6 rodas
27/10/2014
Agonia
31/10/2014

Uma análise sobre o acidente de Jules Bianchi, cujas investigações mais uma vez apontam para culpa do... piloto.

O Paris Air Show é o mais importante evento aeronáutico do mundo e sua edição de 1973 despertou entre o público em geral e os especialistas em particular uma inusitada expectativa, pois ali se apresentariam o Concorde franco-britânico e o Tupolev TU-144 soviético, os dois primeiros aviões supersônicos de passageiros jamais construídos.

Estava programado que ambos os aparelhos mostrariam suas qualidades no dia 3 de junho, durante o encerramento do show, e cerca de 200 mil pessoas se aglomeravam ansiosas por ver os dois colossos. O Concorde é o primeiro atuar deixando a todos muito impressionados. Pouco depois foi a vez do Tupolev que, pilotado pelo comandante Mikhail Kozlov, após algumas manobras de preparação a baixa altura sobre a pista, inicia a toda potência uma incrível e surpreendente ascensão mais própria de um caça do que de um avião de seu porte, deixando a todos estupefatos.

Porém, já perto das nuvens, o TU 144, após uma repentina manobra, se despenca sem controle e Kozlov, apesar de seus esforços, não consegue salvar o avião, que explode pouco antes de se espatifar na pequena localidade de Gaunssainville, matando a 8 de seus habitantes.

httpv://youtu.be/BBhLZcNKM9M

Segundo os russos, Kozlov se encontrou com um caça Mirage que havia sido enviado para filmar de perto o TU 144 e suas originais aletas dianteiras em funcionamento. Surpreendido, Kozlov teria tentado uma desesperada manobra para evitar a colisão provocando uma perda de sustentação, mas a pouca altura à que se encontrava não lhe permitiu recuperar o controle do aparelho.

Para os franceses, o avião simplesmente não resistiu o esforço ao que havia sido submetido e sucumbiu por algum falho estrutural. Fosse o que fosse, o caso é que pouco depois, Franceses e Soviéticos emitem um comunicado conjunto, coisa raríssima em plena Guerra Fria (!!!), dizendo que as caixas pretas não foram encontradas (???) e atribuindo o acidente a um falho de pilotagem de Kozlov.

Os franceses, não queriam que se soubesse que por ali havia um Mirage com a missão de espiar o Tupolev, e os soviéticos não queriam que uma investigação mais profunda pudesse desvendar alguma possível deficiência técnica. Assim, a solução mais fácil e conveniente para todos foi culpar o piloto.

No passado GP do Japão, fomos testemunhas do grave acidente sofrido pelo piloto Jules Bianchi quem, todavia, se debate entre a vida e a morte. Algo assim parecia próprio de tempos passados e toda uma geração de aficionados surgiu sem conhecer a morte de pilotos na Fórmula 1.

As reações mais viscerais ao acontecido logo saíram à tona e todo tipo de comentários foram lançados, assim como a busca de algum culpável logo se iniciou. Porém, creio que devemos fazer (ou pelo menos tentar fazer) uma distinção entre possíveis culpáveis e prováveis causantes. A presença do trator que retirava o carro de Sutil, acidentado no mesmo lugar na volta anterior, logo foi objeto da ira dos aficionados. Diziam que esse tipo de maquinas não devia ser usado. Que gruas situadas por trás das barreiras é que deviam retirar os carros.

Porém, não recordo umas reações tão virulentas quando, no GP do Canadá do ano passado, o trator que retirava o carro acidentado do mexicano Esteban Gutierrez, durante a manobra, esmagou um pobre fiscal que ajudava na tarefa. A noticia quase passou despercebida e seu nome nem foi divulgado. Apenas uma pequena nota marginal dava conta do acontecido e o desgraçado logo foi esquecido.

Assim, me parece que o problema não é se o trator devia ou não estar lá. O problema é que se Bianchi não tivesse chocado contra o trator ou se, em vez de chocar contra o trator, Bianchi tivesse atropelado algum (ou alguns) dos fiscais, provavelmente causando-lhe a morte, este debate seria totalmente diferente. Também há quem disse que o Safety Car devia ter saído à pista logo após o acidente de Sutil. Porém, devemos recordar que o regulamente é bem claro a este respeito ao dizer que o Safety Car deve sair à pista no caso de que esta esteja, de algum modo, obstruída.

Este… não era o caso. Os fiscais atuaram com bastante diligência e o trator já estava retirando o carro de Sutil quando este recebeu o impacto de Bianchi, apenas uma volta depois do acidente que propiciou sua intervenção. Não fosse a batida de Bianchi, tudo teria sido resolvido em apenas 2 voltas e a competição estaria liberada novamente. Aqueles que insistiam na saída do Safety Car logo após a batida de Sutil, devem recordar que, além de não ser uma exigência do regulamento, sua presença teria mantido a competição em suspenso durante varias voltas até que os retardatários tivessem recuperado suas voltas perdidas… mesmo estando a pista em condições para correr!

Todos já sabem que não gosto nada da forma em que os Safety Car vem sendo enviados à pista, pois adulteram a competição convertendo-a numa ridícula farsa. Ironicamente, apenas um mês antes destes acontecimentos, em minha coluna Brilliant Disguise eu sugeria o uso de algum tipo de dispositivo que acionasse os limitadores de velocidade dos carros nos trechos em que fosse necessária alguma intervenção dos fiscais. Caso isto estivesse vigente, o acidente de Bianchi não se teria produzido.

Além do mais, o Safety Car, também ironicamente, pode resultar não tão seguro como se pretende pois, circular varias voltas atrás dele a baixas velocidades, causa a perda das condições ideais de funcionamento dos pneus e dos freios, o que deixa os pilotos em condições de momentâneo perigo quando a competição é relançada.

A FIA, com sua pompa habitual, logo anunciou que uma investigação seria levada a cabo para apurar todos os detalhes do incidente. Mas, isto me parece até ridículo, pois é como se a um delinquente se lhe pedisse que investigue seu próprio delito e aporte provas que o incriminem! No que a mim respeita o causante do acidente foi Bianchi e sua não observância do preceito das bandeiras amarelas duplas que indicam ao piloto que este deve reduzir a velocidade e preparar-se para uma eventual parada. Porém, não me atrevo a culpá-lo do acontecido.

Não o culpo, porque essa não observância tem se tornado algo muito habitual e a FIA não tem tomado nenhuma providência ao respeito. Nenhum infrator foi castigado. Como disse Napoleão: “A lei deve ser cumprida todos os dias… sempre!”. Assim, cada vez que não se faz cumprir, a lei se debilita. Como exemplo nos serve o passado GP da Alemanha, quando o carro de Sutil bateu no muro à frente do Pit Lane ficando lá na pista nas voltas finais do GP. Então, como diz o regulamento, bandeiras amarelas duplas foram acenadas aos pilotos.

Contudo, nenhum deles cumpriu o preceito da norma e continuaram passando por ali a grande velocidade. Hamilton, até se queixou dizendo que a presença dos fiscais perto da pista era perigoso (à velocidade que ele passava por ali… era mesmo!). Pois bem: nenhum piloto foi sancionado por aquela flagrante violação de uma norma que visa por sua segurança. Por exemplo, aqui mesmo neste incidente de Bianchi, Max Chilton e Marcus Ericsson (e possivelmente outros), que vinham perto do francês, passaram por ali até a mais velocidade que Bianchi e tampouco foram sancionados!

Assim, a contínua decidia e permissividade da FIA me parece que acabou promovendo nos pilotos uma sensação de impunidade e de falsa segurança. Como era de esperar, na conferência de imprensa celebrada uma semana depois em Sochi, nada concreto foi divulgado e, inclusive, Charlie Whiting deixou transparecer que, pelos dados em poder da FIA a velocidade dos pilotos naquele ponto (sem mencionar expressamente a Bianchi) não se ajustava à norma.

A continuação disse que: “Uma das mais importantes coisas a aprender deste caso é que provavelmente seja melhor retirar dos pilotos a decisão de reduzir a velocidade.” Talvez eu esteja enganado, mas me parece que o que ele diz aqui é que: “Como os pilotos não obedecem as bandeiras amarelas… ” (veremos logo o tal limitador ?). Mas não diz que tampouco se lhes tem castigado por não fazê-lo.

O responsável final pela segurança dos pilotos e de todo o pessoal de um GP em geral é a FIA se esta não faz cumprir suas próprias regras, não pode nem deve culpar os pilotos das consequências dessa desobediência, pois os pilotos, sob a pressão e tensão de competir, se podem ganhar alguma décima de segundo aqui ou ali, não há dúvida de que farão o que seja por consegui-la.

Parte do problema radica na ambiguidade da norma, pois nenhum piloto gosta de reduzir sua velocidade pois não sabe quanto os outros irão reduzir a sua, portanto ninguém quer perder tempo respeito a quem lhe precede e muito menos respeito a quem lhe persegue. Este pode ser outro argumento para estabelecer a limitação de velocidade em todos os carros, pois nenhum piloto seria nem prejudicado nem beneficiado e a competição seria preservada.

Como digo, não me cabe dúvida de que o causante do acidente foi Bianchi e seu excesso de velocidade (tanta que o rapaz foi incapaz de controlar o carro!), mas o que me indigna da FIA é que disseram que não emitiram as imagens do acidente por respeito ao piloto e à espera do resultado da investigação (sua própria investigação!) pois não queriam divulgar juízos prematuros.

No entanto, não tiveram nenhum pudor em fazer comentários e filtrar informações efetivamente culpando-o do acidente logo desde o principio (eg. Max Mosley ou algum jornalista afeto à FIA) talvez preparando o terreno para eludir suas próprias responsabilidades.

Se os pilotos não respeitam as bandeiras amarelas impunemente, colocando-se a si mesmos em situações de risco, a decisão é sua. Mas se ao fazer isso colocam os fiscais em cumprimento de seu trabalho também em perigo, então é responsabilidade da FIA cumprir seu dever de velar por eles.

Neste acidente de Bianchi, só um milagre evitou que algum fiscal não fosse atropelado. Será que a tal investigação dirá algo ao respeito? Em definitiva, ainda que Bianchi tenha sido o causante do acidente, não creio que seja o único culpável do acontecido. Porém, temo que a tal investigação, como no caso de Kozlov, acabe estabelecendo o mais fácil e conveniente para todos: que o único culpável foi o piloto.

O mais fácil e conveniente.

Um abraço a todos e até a próxima.

Manuel Blanco
Manuel Blanco
Desenhista/Projetista, acompanha a formula 1 desde os tempos de Fittipaldi É um saudoso da categoria em seus anos 70 e 80. Atualmente mora em Valência (ESP)

15 Comments

  1. Rafael Carvalho disse:

    Ótimo texto Manuel! Não sei se vou falar besteira, mas ao meu ver a FIA e Bernie Eclestone mais uma vez foram negligentes! Me parece que ao ver as condições da pista alguns pilotos pediam ferozmente o encerramento da prova! Acho que se a prova tivesse sido interrompida não teríamos os acidentes do Sutil e muito menos do Bianchi.

    • Manuel disse:

      Oi Rafael,
      Ante tudo, obrigado pelo comentário. Bom, a negligencia vinha de longe ao permitir a violaçao sistematica do preceito das duplas bandeiras amarelas. Essa foi a origem de tudo.
      O encerramento da prova, logicamente que teria evitado os acidentes mas, como passo previo a esse encerramento é que existem as bandeiras amarelas. O que nao existiu foi nem seu cumpimento nem a vontade de impor seu cumprimento.
      Decorrente disso, um rapaz acaba de morrer… mas ninguem vai ser responsavel.

  2. Mais uma vez perfeita a comparação inicial, e muito boa a análise do contexto.
    Abraço, meu amigo.

  3. Mário Salustiano disse:

    Manuel

    expor essa verdade nua e crua foi brilhante de sua parte, acidentes nunca são causados de forma deliberada, infelizmente acontecem , o ponto é que depois as pessoas não olham para o fato em si para buscar na causa e não no efeito uma forma de melhorar ou evitar em situações futuras a repetição.
    Como temos memória seletiva, do fiscal de pista no Canada (que levou a culpa por se abaixar) que ninguém nunca fez qualquer menção, aos mais de 40 mil brasileiros que morrem anualmente em nosso trânsito e esse número ao que parece não choca a opinião pública, tudo se resume a busca do mais fácil e mais conveniente

    abraços

    Mário

    • Manuel disse:

      Oi Mário,

      É que neste ridiculo mundo do “politicamente correto”, do engano e a mentira, a verdade pode resultar até insuportável.
      um abraço.

  4. Mauro Santana disse:

    A bem da verdade é que a muitos anos a F1 esta Perdidinha, e cada vez mais com regras e carros bizarros.

    E é por estes fatos que a cada ano que passa a F1 vem perdendo mais e mais audiência.

    Fato.

  5. Manuel disse:

    Oi Joao,
    Repito que em Suzuka nao se davam as condiçoes exigidas no regulamento para a saida do Safity Car, por tanto as bandeiras amarelas duplas deveriam ter sido suficiente para garantir a segurança de todos se os pilotos tivessem respeitado o preceito que estas estabelecem. Mas o caso é que nao respeitaram tal preceito… como vInham fazendo desde faz muito tempo perante a passividade da FIA.
    O causante material do acidente foi Bianchi, por muito lamentável que seja dizer isso, e o fato de que sua desobediência da norma lhe tenha custado muito caro nao o imuniza à critica. Tambem repito que o culpável disso é a FIA e sua desidia.

  6. Fabiano Bastos das Neves disse:

    Excelente análise Manuel.
    Parabéns!

  7. Fernando Marqyes disse:

    Manuel,

    ao que me parece a direção de prova errou em não antecipar a largada devido ao mau tempo já previsto e partir daí outros sucessivos erros aconteceram … a Formula 1 já cansou de presenciar tais situações e com finais trágicos …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  8. Manuel disse:

    Joao,
    Me alegra que voce esteja de acordo comigo em que a situaçao na Alemanha foi bastante perigosa. Imagino que tambem estará de acordo em que tal perigo se derivou do fato dos pilotos desrespeitarem as bandeiras amarelas e da desidia da FIA nestes casos. Essa é a questao tratada na coluna e nao a do Safety Car que, repito, éra desnecessário em Suzuka. Se uns tivessem cumprido a norma sobre as bandeiras amarelas duplas ( pilotos ) e os outros ( a FIA ) a tivessem feito cumprir… sempre, agora nao lamentariamos o estado de Bianchi.

    Agora, dizer que a FIA nao mandou à pista o Safety Car porque eu ( e outros ) reclamava dele, me parece descabido. A FIA tem um dever a cumprir, diga eu o que diga, mas nao o vinha cumprindo. Face ao acontecido em Suzuka, minha a exigência de que o cumpra e o faça cumprir, ainda é maior pois eles sao os últimos responsáveis pela segurança.

    • Apenas falei que pelas reclamações de muitas pessoas, e incluo aí você, vide sua penúltima coluna, sobre algumas intervenções do safety-car nas corridas nos últimos anos, a FIA deve ter achado por bem, para ‘melhorar o espetáculo’ , não liberar o safety-car na Alemanha e no Japão.
      Nos últimos anos a FIA observa, até com certa razão, o que os fãs da F1 querem para tornar a categoria mais atraente. O DRS foi resultado de um antigo pedido de mais ultrapassagens na F1… dos próprios torcedores da F1! Não apenas você Manuel, mas várias pessoas, algumas de dentro da F1, estavam reclamando das entradas do Safety-car. Seriam elas para maquiar uma corrida sem graça? Como você mesmo falou, Manuel, na sua penúltima coluna: “Com certa malícia, chego até a pensar se o Safety Car, aproveitando o pretexto da segurança, é enviado à pista para contentar aqueles que estão atrás, sabendo que os da frente não se atreverão a reclamar por temor a serem acusados de “insensíveis” e , assim, como uma espécie de botão de “reset”, reiniciar o show com todos os carros reagrupados.”
      Não sei se a FIA lê as colunas do GPTotal. Se não, deveria fazê-lo! Porém, havia dentro da própria F1 uma grita por menos entradas do SC. Deixar as corridas mais soltas. Outro detalhe é que o episódio do Cingapuragate em 2008 ainda está bem recente na mente de todos.
      Como normalmente acontece, a FIA não soube usar o bom senso nesse caso. Vai de um extremo a outro com a mesma velocidade. Ou tudo ou nada. Nesse caso, o nada, a falta do Safety-Car em Suzuka, foi quase fatal.

  9. Mauro Santana disse:

    Belo Texto Manuel, e belíssima analise!!!

    Parabéns!!

    E realmente, ninguém comentou nada a respeito do fiscal que faleceu por ter sido atropelado pelo trator de resgate no GP do Canadá do ano passado.

    E é muito, mais muito provável que a FIA culpe o piloto por este acidente.

    Lastimável.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  10. Manuel,

    Quando vi o acidente de Bianchi, a primeira coisa que me lembrei foi da sua infeliz coluna sobre safety-car…. Você e muita gente reclamava que a entrada do safety-car estaria mudando a dinâmica das corridas e muito provavelmente por isso, quando o carro de Adrian Sutil, salvo engano, ficou atravessado no meio da reta durante o GP da Alemanha, a direção de prova preferiu deixar a corrida rolar, para não ‘atrapalhar’ o andamento da prova, e dessa forma os fiscais de pista alemães tiraram o carro no meio da reta numa posição perigosíssima. E isso, provavelmente, ocorreu em Suzuka também.
    Prefiro uma F1 com safety-cars do que estar lamentando uma pessoa estar lutando pela vida longe de casa e sem perspectivas de ter uma vida como era antes…

  11. Lucas dos Santos disse:

    Perfeito, Manuel!

    De todas as que eu vi até agora, a sua análise sobre o ocorrido é a mais sensata.

    Parabéns pelo texto.

  12. wladimir duarte sales disse:

    Lembremos Kyalamy/1977. Até hoje acho que é o pior acidente da história da categoria junto com o de Franços Cevert em watkins glen/1973! O Shadow de Tom Pryce estraçalhou o corpo do fiscal Jansen Van Vuuren e o extintor de incêndio que este carregava chocou-se violentamente com o capacete de Pryce, esmagando-lhe o crânio! A cena foi tão chocante quanto a batida de Bianchi que só está vivo graças às novas medidas de segurança adotadas desde 1994.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *