A César o que é de César, parte 2

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A continuação da história de Maurice Philippe, um dos maiores injustiçados da história da F1.

Relembre a primeira parte desta saga.

Com o 49 já no fim de seus dias, Chapman entrega a Philippe outro de seus famosos dossiês, com a encomenda de desenhar um novo modelo para 1970. Para então, Chapman havia tentado contratar a Gilbert McIntosh, antigo colaborador da Lotus, para que ocupasse o lugar de Philippe, mas Gilbert, bom conhecedor de Chapman, não aceita o convite. Talvez, sabendo isso e magoado em seu orgulho, Philippe se dedicaria de cheio à tarefa e o resultado seria o maravilhoso Lotus 72. O melhor dos modelos anteriores se combinava no 72, como um simples e ligeiro chassi como o do 49, a forma em cunha do 56 ou uns aerofólios como os do 63, além de algumas novidades como os freios embarcados.

Os primeiros testes não foram bem e o velho 49 começou a temporada de 1970 (Rindt vence em Mônaco com o 49). Mas, com novos ajustes na suspensão, o carro vai para a Holanda, onde Rindt venceria com facilidade, o que repetiria nas 3 seguintes provas e, com uma confortável vantagem na classificação, viria o GP da Itália. O resto da história já é bem conhecida. O modelo 72 seria o último da longa e frutífera colaboração entre Chapman e Philippe.

Resulta curiosa a perfeita simbiose produzida entre ambos os personagens durante tanto tempo, considerando a enorme diferença de caráter de um e do outro. Maurice era uma pessoa discreta e um verdadeiro cavalheiro que passou sempre despercebido e longe da farândola midiática. Maurice era um homem muito meticuloso e os relatórios que apresentava a Chapman, sempre escritos de forma impecável e minuciosa, estavam muito bem fundamentados e argumentados tecnicamente. Quando, desconforme com alguma instrução ou segerência de Chapman, Maurice a rebatia de maneira firme e direta, mas também muito polida. Segundo nosso querido Ricardo Divila, “Maurice era um engenheiro com E maiúscula, e seus desenhos, primorosos e bem detalhados, constituíam em si mesmo autenticas obras de arte”.

Por sua parte, Chapman era o oposto de Maurice. Chapman era uma fonte de ideias, mas muito impaciente e, assim, precisava de engenheiros que as tornassem realidade. Como o próprio Chapman admitiu: “Eu não me dedico demasiado a nada!“. Contudo, Chapman tinha a extraordinária capacidade de recrutar gente muito competente e qualificada para que fizessem o trabalho que ele não podia ou não gostava. Sendo uma pessoa com um enorme carisma e poder de liderança, Chapman, imediatamente, se convertia no centro de atenções ali aonde fosse, característica que ele sempre soube explorar muito bem, em detrimento de seus colaboradores.

Segundo Mike Lawrence, reputado jornalista e historiador da formula um, Chapman era um pilantra que, com pasmosa frialdade, não tinha nenhum inconveniente em plagiar as ideias de seus competidores, nem escrúpulos em assumir méritos que correspondiam a seus engenheiros.

Porém, a simbiose acabou logo depois do GP da Itália. Com a morte de Rindt, o ambiente na Lotus se enrareceu e vários membros abandonam a equipe para ir trabalhar nos EUA na escuderia de Parnelli Jones (Derek Mower, John Baldwin, Dick Scammel e Sid Carr), onde também estava Mario Andretti, cujas primeiras incursões na Fórmula 1 foram com a Lotus. Alguns meses depois, na primavera de 1971, Maurice Philippe também aceita uma oferta da Parnelli. Assim, a dupla criadora das mais emuladas inovações da era dourada da formula um, iniciavam caminhos separados.

A Parnelli, que até então, comprava seus carros, decide construí-los e encomenda a Philippe que lhes desenhe um carro para ganhar o campeonato de 1972. Livre das imposições de Chapman, Maurice desenha o inovador VPJ com o que Joe Leonard cumpriria plenamente as expectativas, ganhando o campeonato com 3 vitórias nas 9 corridas disputadas e terminando entre os cinco primeiros em outras 5. Enquanto isso, na formula um, um tal de Emerson Fittipaldi se consagrava campeão com o Lotus 72, fazendo que Philippe fosse o primeiro e único engenheiro cujos carros venciam os dois mais importantes campeonatos de velocidade da época… na mesma temporada.

Para 1973, viria o VPJ2 com mais inovações aerodinâmicas como a tomada de ar do motor prolongando-se até o aerofólio traseiro, algo que apareceria muitos anos depois na Fórmula 1, vindo a ser conhecido como “aleta de tubarão”. Embora fosse um bom carro (venceu duas das três primeiras corridas) os carros da Eagle e da McLaren logo resultaram muito superiores ao resto. No fim do ano, a Parnelli decide deixar de fabricar seus carros, mas Andretti convence a Parnelli Jones de que se aventure na formula um e Maurice desenha o VPJ4, que estrearia no GP do Canada de 1974. Para então, a Lotus passava sérias dificuldades pois seus modelos para 1974 haviam resultado um fracasso. Peter Wright conta que, quando Chapman viu aquele Parnelli, ficou tão impressionado pelo bom trabalho e atenção aos detalhes que diria com certa inveja que “aquele era o carro que eles deviam ter construído!“.

Infelizmente, os patrocinadores não tinham interesse na F-1 e, sem verba para melhorar o carro durante 1975, Maurice abandonaria a equipe no fim do ano para se dedicar a ser consultor independente (neste período foi quando Maurice trabalhou com os Fittipaldi) mas, em 1978, Ken Tyrrell lhe convence para ir para a sua equipe. Entrementes, a Lotus continuava sofrendo até que Chapman, já desesperado, aceita a sugerência de Tony Rudd para desenvolver a ideia do carro asa (Rudd já havia trabalhado nessa ideia em seus tempos na BRM ) e lhe entrega um de seus famosos dossiês com varias propostas e indicações do trabalho a ser feito.

Ralph Bellamy, com a ajuda de Martin Ogilvie, Peter Wright e o próprio Rudd, se ocupam da tarefa. Porém, Chapman e sua obsessão pelo protagonismo, quando a equipe já se preparava para ir disputar o primeiro GP da temporada na Argentina, diz a Bellamy que este não podia ir, pois sua presença era necessária na fabrica dos carros esportivos da marca. Chapman já havia feito o mesmo com Len Terry anos antes (em ambos os casos apenas se tratava de um elaborado subterfúgio para mantê-los bem longe). Assim, com a vitória de Mario Andretti e o deslumbrante Lotus 78, Chapman ficou com toda a glória para si. Bellamy abandonaria a equipe no fim da temporada.

Porém, essa seria a última satisfação de Chapman, que continuava sendo o mesmo pilantra de sempre. Assim, no fim da temporada de 1979, Martini cancela seu patrocínio devido à sacanagem que Chapman lhes aprontou para favorecer a Essex. Pouco depois, o turvo assunto da DeLorean sairia à luz e, segundo Fred Bushell, contador da Lotus na época e que passou 3 anos na cadeia por este caso, a morte de Chapman em dezembro de 1982, o salvou de uma inevitável e longa condena por fraude e desfalco de cerca de 10 milhões de libras. Chapman contava com 54 anos de idade.

Entrementes, Maurice, continuava seu trabalho na Tyrrel e, em 1980, introduz na formula 1 a eletrônica embarcada e a coleta de dados mediante sensores, algo imediatamente copiado por todas as demais equipes e que logo se converteria em imprescindível. Apesar dos já escassos recursos da Tyrrell, os seus carros conseguiriam as últimas vitórias do motor Cosworth na formula um, numa época em que os poderosos turbo já dominavam. Maurice deixaria a Tyrrell em 1988 já afetado por uma incipiente depressão que, finalmente e em fase mais aguda, o induziria ao suicídio em junho de 1989. Philippe contava com 57 anos de idade.

Assim, e de maneira prematura, a Fórmula 1 perdia os dois homens cujo trabalho conjunto, possivelmente, mais havia influenciado a evolução da categoria. Maurice, com seu trabalho e dedicação na sombra, e Chapman com sua visão e intuição, conseguiram um enorme sucesso juntos. Mas, enquanto o discreto Maurice passava, praticamente, despercebido, o exuberante Chapman desfrutava da fama que tanto ansiava. Porém, como o mérito é mais importante do que a fama, creio que já era hora de dar a Cesar, ou melhor, dar a Maurice o que era de Maurice.

Manuel Blanco
Manuel Blanco
Desenhista/Projetista, acompanha a formula 1 desde os tempos de Fittipaldi É um saudoso da categoria em seus anos 70 e 80. Atualmente mora em Valência (ESP)

11 Comments

  1. Manuel, sempre iluminando detalhes importantes e pouco conhecido da história, através de parábolas que, mais do que cultura, demonstram sabedoria.
    Sempre sinto vontade de agradecer quando termino de ler um de seus textos.

  2. Rafael Carvalho disse:

    Esse Parneli VPJ2 ja tinha os dutos de ar que direcionava o ar para parte traseira do carro!

  3. Carlos Chiesa disse:

    Excelente, Manuel. Conseguiu mostrar um momento vital da F1, com dois de seus principais protagonistas. Desde aquela época achava que Maurice merecia muito mais reconhecimento.

  4. Mário Salustiano disse:

    Manuel

    sensacional, parabens por ter sido bem direto na descrição da forma como Chapman agiu com muitos de seus colaboradores e de ter trazido a tona os feitos de Maurice, essa é uma boa forma de reconhecer o verdadeiro pai das inovações

    abraços

    Mário

  5. Ronaldo disse:

    Genial, como sempre. Mas, também como sempre, levantou outros assuntos que mereciam ser explanados, como o episódio da Essex e da DeLorean.

  6. Walter disse:

    Manuel.
    Brilhante!

  7. Fernando Marques disse:

    manuel,

    Quem sabe, sabe!!!
    Quem não sabe como eu, aprende.

    Show de bola!!!

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  8. Lucas Giavoni disse:

    Querido Manuel,

    Sempre digo que a verdadeira comunicação só acontece quando o que recebemos nos transforma. E esse texto é transformador.

    Parabéns novamente, amigo. Excelente.

    Lucas Giavoni

  9. Mauro Santana disse:

    Fantástico Manuel!!!

    A cada dia aprendemos mais e mais com o Gepeto.

    Parabéns!

    Abraço

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

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