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Desde meados dos anos 60, a Ferrari mantém e preserva com esmero ao menos um exemplar de cada modelo de F1 produzido. Todos, entre maravilhas e fiascos, são exibidos com orgulho no museu de Maranello, Itália, um destino de viagem que ainda hei de visitar em minha vida.

Entretanto, na vasta coleção está faltando um carro. Carro este que é um dos mais famosos, desejados, e que é amplamente difundido em forma de miniaturas em diversas escalas – muitas vezes com grau de fidelidade impressionante. Trata-se da Ferrari 126C2, de 1982. A Ferrari, pasmem, não tem uma dessas em casa.

Conversando há algum tempo com alguns amigos via Facebook, sobretudo com o enciclopédico Arlindo Silva, me propus a pesquisar: qual teria sido o destino de todos os chassis 126C2 para que NENHUM sobrasse em Maranello? Todos os exemplares teriam sido perdidos? Se sobrou algum, teriam todos sido canibalizados para a temporada 1983?

Antes da pesquisa em si, vale recapitularmos brevemente a história desse carro.

Apresentação da C2, ainda com asa dianteira antiga; o primeiro chassi (#055) foi perdido em testes.

A Ferrari teve uma temporada de fiasco em 1980 com seu cansado motor flat-12, acelerando seu programa de motor turbo, uma unidade 1.5L V6 a 120º. Em 1981, com o modelo 126CK, essa usina provou ser bastante potente, e o time teve duas vitórias – Mônaco e Espanha. Mas o chassi, além de totalmente defasado em relação às construções refinadas dos times ingleses, tinha a leveza de um cofre bancário. As duas vitórias devem ser creditadas muito mais ao talento insano de Gilles Villeneuve do que à eficiência do carro em si.

Ainda em meados de 1981, para suplantar essa deficiência no departamento de chassi, Enzo Ferrari contratou Harvey Postlethwaite, que estava na equipe Fittipaldi, e que já havia projetado a Hesketh da primeira vitória de James Hunt e a Wolf do vice-campeonato de Jody Scheckter. A ele foi dado carta branca para trabalhar com o veterano projetista Mauro Forghieri num chassi mais “inglês” para o time.

Gilles no Brasil com o #057 – o chassi era dividido em metades coladas industrialmente

Segundo o escritor Alan Henry, no livro Ferrari: The Grand Prix Cars (que ganhei de presente do querido Mário Salustiano), Harvey desejava construir um chassi em fibra de carbono, material que já provara seu valor com a revolucionária McLaren MP4-1 de John Barnard. Mas apesar de achar que tinha conhecimento suficiente para isso, Harvey percebeu que a Ferrari não tinha estrutura pronta para fazê-lo.

Com alguma semelhança visual ao Fittipaldi F8, o projetista optou, então, por fazer um chassi em alumínio aeronáutico em estrutura honeycomb (hexagonal), com apenas alguns reforços em fibra de carbono. Os componentes não eram unidos com os corriqueiros rebites: eram, sim, literalmente colados em processo industrial, como as asas do famoso avião Caravelle. Os materiais eram fornecidos pela Hexcel, empresa norte-americana especializada em componentes aeronáuticos, através de sua unidade em Welkenraedt, Bélgica.

O novo chassi 126C2, mais leve, esguio e eficiente, foi um projeto que, junto ao motor que ganhava cada vez mais confiabilidade, colocou a Ferrari novamente em posição de disputar o título – com o triste e injusto desfecho que já conhecemos.

Pironi (#056) e Villeneuve (#058) duelam em San Marino – Gilles morreu nesse carro

Sites como o Racing Sports Cars e o Ferrari Database me ajudaram a encontrar os números de série dos chassis produzidos – internet, sua linda! No caso da C2, os números vão de #055 a #063 – nove, portanto, construídos. Apenas os dois últimos (#062 e #063) foram convertidos em modelos C2B, usados nas primeiras corridas de 1983. Eles ainda construiriam com mais dois chassis C2B (#064 e #065) até que finalmente estreassem na metade da temporada o chassi C3, finalmente em fibra de carbono, com numeração a partir de #066.

A estes dois sites de dados, juntei mais informações de alguns fóruns europeus de discussão automobilística, o livro de Henry e um dossiê muito detalhado da temporada 1982 da Ferrari na Motorsport Magazine de dezembro de 1982, disponível digitalizada.

Cruzando todas as informações, montei a seguinte tabela:

Após o acidente fatal de Villeneuve, em maio, a Ferrari realizou análises no chassi destruído. Fez testes estáticos de deformação para medição de resistência em um chassi C2 totalmente novo sem numeração, e num chassi CK do ano anterior. Alan Henry conta em seu livro que Postlethwaite (que jamais havia tido um acidente fatal com seus carros) teria ficado satisfeito com o resultado dos testes.

Mas aqui chegamos a uma grande divergência. O dossiê da Motorsport Magazine, ao contrário de Henry, afirma convictamente que os resultados estavam além da crença da engenharia. O chassi seria, portanto, mais frágil do que imaginavam, sobretudo para impactos verticais – o que foi corroborado pelo quase-fatal acidente de Pironi em Hockenheim. Particularmente creio mais nesta segunda alternativa, porque após a tragédia de Zolder, os chassis ganharam um grande reforço em fibra de carbono em todo o entorno do cockpit, facilmente identificável em fotografias.

Pironi com o #060, que quase o matou em Hockenheim; o acidente foi no dia seguinte a esta foto

Também foi possível saber que os chassis #057, #059 e #061 estavam na fábrica ao fim de 1982, e os mais novos, #062 e #063, foram os únicos convertidos em C2B e usados em corrida em 1983. Foram usados apenas nas duas primeiras corridas, porque os chassis mais novos (#064 e #065), apresentados para a terceira etapa, tinham uma diferença fundamental: neles havia um bocal para reabastecimento rápido durante as corridas, técnica inventada pela Brabham e que as equipes rivais tinham que combater.

Um dos chassis – provavelmente o #057 – foi perdido justamente em testes de fábrica para produzir um sistema eficiente de reabastecimento em alta pressão. E o #059 teria, segundo o próprio Forghieri, sido sacrificado em testes de componentes justamente para a temporada 1983. Temos que lembrar que a F1 mudava radicalmente as regras, banindo o carro-asa. As equipes tinham apenas três meses para produzir carros competitivos – então o canibalismo de componentes foi dramaticamente acelerado.

Mario Andretti no #061 – reparem no reforço em fibra de carbono em volta do cockpit

E em meio a essa efervescência, o chassi #061 sobrevive. Sim, há uma Ferrari 126C2 sobrevivente. Mas ela está bastante modificada. Suas saias, originalmente pretas, estão pintadas em vermelho. O cone do bico não bate com a configuração de 1982 e as asas dianteira e traseira (incluindo o suporte central) também não são originais. Até mesmo o número #27 presente no carro está totalmente fora de proporção e esquadro. O que teria acontecido a este carro?

Quem me respondeu foi Uwe Meissner, da assessoria de uma preparadora alemã de carros chamada Modena-Motorsport, especializada em Ferraris. É esta preparadora que faz a manutenção do modelo sobrevivente. Segundo Uwe, o #061 é realmente o único sobrevivente e teve teve três donos, sendo o atual proprietário Jacky Setton, supostamente o maior colecionador de Ferraris do mundo. O carro teria sido vendido exatamente nas condições atuais depois de testes de componentes em Fiorano, o que explica a “perda” da originalidade.

Em Monza, Patrick Tambay no #062, um dos convertidos em C2B

Fiquei, claro, sem ter respondida a pergunta principal. Ora, se havia um chassi sobrevivente, por que foi vendido? Por que a Ferrari se desfez de um carro que não possui em seu acervo?

O grande fotógrafo Paul-Henri Cahier me ajudou a procurar a melhor resposta. Ele ficou sabendo da minha busca arqueológica aos C2, no que eu mencionei que nem a própria Ferrari tem um exemplar do carro. Ele simplesmente respondeu:

– O velho homem era estranho. Lembre-se da Sharknose.

PHC referia-se a uma história obscura do passado de Enzo Ferrari. Ao fim de 1962, o Comendador teria mandado seus mecânicos destruírem todos os exemplares remanescentes da Ferrari 156 Sharknose – o que explica a extinção do carro, que só existe em forma de réplica.

O sobrevivente #061 nos dias de hoje, modificado pela própria Ferrari

A Sharknose havia dominado a temporada de 1961 e feito Phil Hill campeão. Mas havia sido o mesmo modelo pivô da maior tragédia da F1: o GP da Itália de 1961, em que Wolfgang Von Trips, que corria para ser campeão, perdeu o controle do carro e voou em direção à torcida, matando a si próprio e outros 13 espectadores. Como se não bastasse, ao fim de 1962 houve uma forte crise dentro da Ferrari, em que vários engenheiros e o próprio Phil Hill se demitiram.

Diante de um fato como este, fica fácil entender a amargura do Comendador diante do 126C2, um carro que matou Villeneuve, a quem nutria admiração, e que destruiu a carreira de Pironi, que ficou a míseros 5 pontos de ser campeão. O chassi remanescente não havia sido pilotado por nenhum dos dois. Já estava todo modificado, não representava nada, só trazia más lembranças.

A Ferrari perdida, no fim das contas, era apenas um grande vazio no coração do Comendador.

Abração!

Lucas Giavoni

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

12 Comments

  1. Rafael Carvalho disse:

    Esse reforço de fibra de carbono resolvia alguma coisa?

    • Lucas Giavoni disse:

      Rafael,

      Posteriormente li num “spotter guide” para montadores de miniaturas do C2 que não foi feito só o colar de carbono em volta do cockpit, como também outros reforços em outros pontos dos chassis. Havia uma folha extra de alumínio em volta da ancoragem da suspensão dianteira e uma camada de kevlar interna, nos dois pontos de fixação dos cintos de segurança (que se soltaram com o banco no acidente fatal de Villeneuve). Tais reforços já teriam sido utilizados em Mônaco, prova seguinte à Bélgica, por Pironi.

      Deste modo, o francês se acidentou em Hockenheim num chassi já reforçado, o que seria a confirmação de que não adiantaram de nada para impactos onde o carro decolava.

      Abração!

      Lucas Giavoni

  2. Manuel disse:

    Caro Lucas,
    Essa Ferrari pode estar “perdida”, mas seu talento se encontra em todos e cada um de seus textos !

    grande abraço, Manuel

  3. wladimir duarte sales disse:

    Lucas, é notável sua capacidade de se superar e descobrir novos dados sobre temas polêmicos como esse! Lembremos também o campeonato seguinte (1983) quando na primeira metade Patrick Tambay (que em 78 na McLaren com o M26 tomou coro de Piquet que fazia seus primeiros testes com um M23 alugado pela equipe independente BS Fabrications) tinha mais pontos que René Arnoux e foi alçado a candidato ao título. Só que Arnoux reagiu mas perdeu para Piquet e Prost, apesar de ter sido sua melhor temporada pela Ferrari, e terminou nove pontos a frente de Tambay. É lamentável que o último sopro de competitividade do piloto que protagonizou, juntamente com Gilles Villeneuve, o mais empolgante duelo roda a roda da história da F1 tenha sido perdido em 1984. E Arnoux teve um fim de carreira melancólico guiando a Ligier cujos carros pareciam só funcionar com Jacques Laffitte ao volante!! Tanto que após a aposentadoria forçada deste a equipe nunca mais foi a mesma e sua última vitória (Mônaco/96 com Olivier Panis) foi meio acidental. Acho que Arnoux , à parte o final de carreira, é um caso de campeão sem título; assim como Pironi, Gilles Villeneuve, Ronnie Peterson, Peter Revson, Clay Regazzoni, Lorenzo Bandini, Wolfgang Von Trips, Bruce McLaren (cujo nome venceu muitas corridas e campeonatos através dos carros) e tantos outros. As fatalidades envolvendo o modelo o tornaram, acredito eu, um capítulo a ser esquecido na Ferrari. O que considero injustiça com os pilotos que o conduziram e com o projetista Harvey Postlethwaithe que foi um dos grandes da F1. Apesar de ter perdido a última chance de reerguer James Hunt na Wolf Racing. Feliz ano novo a todos do Gepeto e a todos os leitores. Deixo uma sugestão para um tema em 2015: uma análise mais aprofundada do caso Patrese X James Hunt e todos os outros pilotos, relacionado ao acidente em Monza/1978 que resultou na perda trágica de Ronnie Peterson. Obrigado e, novamente, Feliz ano novo!!!!

  4. Robinson disse:

    Lucas,
    No meu caso específico os elogios são baseados no entendimento que você consegue colocar em prática aquilo que para mim sempre foi um sonho, mas nunca concretizado, ou seja, quando observamos muito bem algo que almejamos temos a tendência natural de vangloriar!

    Parabéns. Os elogios são sinceros e seu trabalho exemplar.

    Um excelente 2015.

  5. Lucas Giavoni disse:

    Caros amigos,

    Agradeço muito a todos os elogios, fico até um pouco constrangido.

    Este foi um trabalho muito prazeroso, porque foi um texto em que aprendi muito, e pude compartilhar minhas descobertas.

    Boas festas a todos! Abração!

    Lucas Giavoni

  6. Robinson disse:

    Lucas,
    Excelente trabalho. Mas interessante do que o árduo trabalho desenvolvido e entender tanto do ramos a ponto de saber reconhecer meios tão restrito de captura de informações.
    A mim esta é a ferrari mais bela dos anos 80, pena ter sido configurada como uma cadeira elétrica.
    Aproveito também para agradecer mais um ano de convívio automobilístico, podendo sempre coletar tantas informações preciosas a respeito do evento que norteia meu dia a dia, a Fórmula 1.
    Parabéns, neste texto você elevou muito meu nível de referência relativo a buscas de elementos da categoria.

    Um feliz 2015 a todos amigos do GEPETO!!!

  7. Ronaldo disse:

    Grande serviço de arqueologia. Parabéns pelo tezto, encerrando com chave de ouro um ano em que o GpTo nos bridou com grandes colunas numa termporada um tanto, digamos, diferente no automobilismo. Sem emoções fortes, embora com muitas surpresas.
    Que 2015 seja de competições mais acirradas, ultrapassagens arrojadas, corridas na chuva e mais relatos brilhantes do esporte que amamos aqui nesse espaço, sempre acolhedor com os leitores, que passam a participantes, como em nenhum outro veículo de comunicação.
    Boas festas a todos, leitores e colunistas!

  8. Mauro Santana disse:

    Belíssimo texto Lucas, belíssimo!!

    Eu sempre admirei este modelo, mesmo que tenha sido mais trágico do que vitorioso, sempre foi uma bela Ferrari.

    E poder mergulhar na história deste bólido, ter acesso as informações chassi à chassi que foram utilizados, foi demais!!!

    E o mais legal é que conforme eu ia lendo, na hora lembrei da Sharknose, e que no final você cruza de maneira brilhante as informações destes dois bólidos.

    Tanto a Sharknose, como a 126C2 eu ainda vou ter na minha coleção de 1/18, pois a Sharknose já existe nesta escala pelos fabricantes Exoto e CMC, mas a 126C2 ainda não, mesmo que no site da Exoto apareça este modelo em “wish list”, eu nunca vi este modelo a venda nesta escala.

    Mas, quando eu colecionava em 1/43, tive o privilégio de ter tido a 126C2 do Gilles e do Pironi, e mesmo tão pequeno, já era um carro lindo, imaginem só um em escala 1/1!?

    Desejo a todos um Feliz Natal e um Feliz 2015, e que estejamos firmes e fortes durante muitos e muitos anos pela frente, podendo falar desta nossa Amada F1.

    Grande abraço!!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  9. Rubergil Jr disse:

    Belíssimo texto! Esse carro remete à todas os sentimentos da Ferrari e da Formula 1 em si: beleza, agressividade, rapidez, brutalidade. Um carro apaixonante e odioso. De extremos, enfim. Como a Formula 1 e a vida.

    É icônico que este carro tenha sido o carro que matou Gilles, pois o próprio piloto era feito de extremos assim. Um piloto “anormal” para um carro “anormal”.

    Impossível deixar de lembrar das voltas insanas sob chuva que Pironi estava fazendo em Hockenheim (que lugar terrível pra se andar na chuva!) antes do terrível acidente, apenas para testar os pneus de chuva novos da Goodyear (ele estava virando 2,5 segundos mais rápido que o Tambay) e para mostrar ao mundo que ele tinha três onde nós mortais tínhamos duas. E sem ver um metro à frente ao sair da traseira do Derek Daly, por causa do lancinante spray que os carros-asa faziam sob chuva, encheu a traseira do Renault de Prost e decolou.

    Prost dizia que sempre que corria na chuva, ao olhar no espelho ele via aquele mortal carro vermelho se aproximando e decolando. Impossível mensurar o trauma. À vista disto é perfeitamente compreensível os abandonos de Prost em ING-88 e AUS-89, tanto como Lauda no JAP-76. E ainda mais heroico lembrar corridas dele como BEL-89, onde lutou com Mansell para manter o segundo lugar.

    Sem desdenhar das atuações de Tambay e Andretti ao resto de 1982, acredito que essas voltas destemidas (e até tolas) do Pironi em Hockenheim formam o último momento “glorioso” da 126C2. O seu canto do galo, por assim dizer. Um lindo carro que merecia ser campeão. Como uma rosa com espinhos mortais em seu caule.

  10. Fernando Marques disse:

    Lucas,

    bela pesquisa, e bela historia.
    A Ferrari é um mito, disso ninguém duvida.
    Fico imaginando a coleção de Ferraris deste desconhecido (ao menos para mim) chamado Jacky Settonste.

    No mais desejo um feliz natal e prospero 2015 a todos que participam do GP Total.

    um abraço a todos

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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