A geração que não viu

O combate contra Prost
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O perfil descendente
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1º de Maio de 1994 deixou uma geração em silêncio profundo. Eram jovens e crianças que se preparavam para a rotina de corridas nas manhãs de domingo.

por Flaviz Guerra

Em 1994, uma geração inteira de crianças e jovens começava o ritual dominical de acordar e assistir alguma prova da Fórmula 1 em seus circuitos clássicos da Europa. Levados por seus pais, tios e parentes, a criançada sentava a frente da televisão para ver o sucessor de Pace, Fittipaldi e Piquet. Estávamos embalados pelo sucesso internacional. Todos os 8 títulos mundiais brasileiros já estavam “em casa”.

Ayrton Senna trazia consigo os anos de sucesso mais recente em 1988, 1990 e 1991 que mantinham a chama do Brasil como um “celeiro de craques” do automobilismo.

O Brasil finalmente não era só futebol. Depois de uma temporada cinematográfica em 1993, não havia espaço para pessimismo, e 1994 seria o nosso ano do Tetra: no futebol e no automobilismo.

Parece um clichê batido e surrado. E sim, é: as manhãs de domingo de Fórmula 1 nunca mais foram as mesmas. Além do piloto, havia a costrução de um ídolo. Não só pela Globo e seu jornalista/amigo/apoiador Galvão Bueno, mas também cuidadosamente criada por pelo próprio piloto.

Senna assumidamente carregava o peso de trabalhar a nação para manter viva a imagem dos imbatíveis pilotos brasileiros. Carregou consigo pela primeira vez a bandeirinha do Brasil por uma volta da vitória em uma assumida resposta a derrota da seleção brasileira para a francesa.

As crianças sentadas na sala ouviam os relatos desse dia. Ouviam relatos de outras façanhas como as de Emerson e Piquet, mas conforme cresciam só havia o domingo de Senna. E por isso elas acordavam.

As manhãs de domingo prometiam a presença de algo encantador sobre os olhos juvenis. Concentração. Arrojo. O risco calculado de um piloto vencendo os limites da racionalidade em uma pista de corrida. Fora dela, a imagem de um jovem bem-sucedido. Uma bela namorada, carros, passeios de lacha e jet-ski, uma fala serena e espiritualizada. Não culpe seus pais, mas eles te apresentavam um modelo de “bom moço” que, sim, deveria ser espelho para toda uma geração.

Essa geração, do dia para a noite, perdeu a sua referência.

A faixa de adultos hoje entre 30 e 35 anos busca nas lembranças dos pais e nas inúmeras gravações as memórias épicas desses dias. É cruel. Cruel como um jogador de futebol sendo vendido para uma torcida com um DVD dos melhores lances de sua carreira filtrado pelo seu empresário. Essa geração não acompanhou os dramas e batalhas do dia-a-dia de Senna. Não viu as corridas ruins, as brigas de bastidores, a política por trás de suas ações.

Não entenda errado: tudo isso tornaria o piloto ainda maior. É um lamento: uma geração hoje acostumada com tanta informação na palma da mão estar limitada ao pouco que foi gravado e que Bernie Ecclestone não retira da internet.

Não é estranho, portanto, olhar os números da audiência da Fórmula 1 em 2013 e reparar na divisão de faixas etárias que encontramos. Simplesmente quase 61% da audiência da Formula 1 no Brasil está na faixa que começa aos 35 anos de idade. Outros 18% estão entre 25-34.

Começando pelos mais novos dessas duas faixas: um cidadão que em 2013 tinha 25 anos, provavelmente nasceu em 1988 e “perdeu” as recordações dos três títulos de Ayrton. Mesmo que alguém o tenha colocado sentadinho na frente da TV para ver as corridas, é praticamente impossível ele ter lembrança disso. Com muita sorte e bastante esforço de memória, pode ter lembranças, ainda que desconexas, daquela que foi a temporada mais espetacular de Senna, o ano de 1993, descrita com precisão por Marcel Pilatti como um roteiro de filme, onde a vitória final foi o que menos importou.

Um pouco mais pra frente, a turma dos seus 34-35 anos: esses sim possuem alguma lembrança mais concreta e sólida ao menos do que foi 91 e certamente do que foram os anos de 1993 e 1994 para o automobilismo. E ainda assim, fãs da Formula 1 até hoje, passaram 20 anos buscando as imagens dessas lembranças em qualquer fonte possível.

Os números, crus, nos entregam esses fatos. Inconscientemente isso mudou algumas percepções em relação ao automobilismo. Desde que, por exemplo, eu tomei conhecimento do vazio que é ter visto corridas épicas só por VT, nunca mais perdi uma decisão de F1. Não é concebível permitir, mais uma vez, ter a história contada e não vista.

Para essa geração que começava a crescer pronta para dominar seu cotidiano dominical com as manhãs de Formula 1, sobrou apenas o silêncio do primeiro dia de Maio.

Um silencio seco. Um nó. Uma batida que já trazia a frustração de mais uma corrida sem pontos. A primeira reação era de decepção. Aquela temporada era pra ser a maior “barbada” da F1. Nós tinhamos Ayton Senna na pista. Ayrton Senna tinha a poderosa Williams Renault.

Alguns momentos se passaram e nada do piloto sair do seu carro. A decepção virou preocupação. A preocupação virou a tristeza que calou um país. Durante o dia, esperávamos notícias. Ela veio da forma que mais temíamos. Lembro muito bem que essa espera fiz sozinho: meu pai – até hoje – não gosta desse assunto e desse dia.

Os reflexos mais imediatos daquela data vieram logo no dia seguinte. Na escola, todos no patio. Fomos ouvir o hino em homenagem ao campeão. Alguns garotos e eu lembraram também de Roland Ratzenberger. Mais uma vez o silêncio respeitoso de uma garotada que já sofria com o buraco deixado.

Pela primeira vez na vida, logo em 1995, eu iria ver Fórmula 1 em Interlagos. Já havia visto corridas menores e regionais sempre levado pelo pai. Éramos pura empolgação e chegamos em um Interlagos desolador. A gente sempre ouvia falar das logas filas da madrugada, o setor G lotado, a correria para chegar cedo no melhor lugar possível. Entramos em um autódromo vazio. Em dado momento da corrida estávamos deitados na arquibancada, como em um confortável sofá, e lá bateu a certeza que o vazio era permanente e irrecuperável.

Desde aquele mês de maio em 1994, uma geração inteira passou a conhecer mais da Fórmula 1 pelo o que ela foi do que pelo o que ela poderia ser ou é. Com pais que presenciaram a carreira de Ayrton Senna ao vivo ou com pais mais jovens que já acessaram os canais que resgatam essas lembranças, até hoje crianças buscam a F1 e as imagens inspiracionais de Senna.

Há os que gostam e há os que desprezam, mas é um fenômeno: Senna até hoje é referência de um automobilismo brasileiro cativante e de uma pessoa que inspira vidas.

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Leia também:
“O combate contra Prost”, de Eduardo Correa
“O perfil descendente”, de Márcio Madeira
“Because it’s there!”, de Manuel Blanco
“The turning point”, de Marcel Pilatti
“Enigma e chuva”, de Carlos Chiesa
“A maturidade de Senna”, de Lucas Giavoni
“Senna e a bandeira”, de Alessandra Alves

Especial Ayrton Senna
Especial Ayrton Senna
Por ocasião dos 20 anos da morte de Ayrton Senna, os colunistas do GPTotal dedicam uma série de textos ao tricampeão.

9 Comments

  1. Jay Cutler disse:

    Comoção semelhante, talvez, só quando o homem do baú morrer.

  2. Mário Salustiano disse:

    Flaviz e amigos

    Começando pelo Edu na primeira coluna essa semana essa continuação me surpreende positivamente, parabens!!!

    Lendo os comentários acima é possível perceber o quanto aquele primeiro de maio teve um impacto na vida de quem vivenciou aqueles dias.

    Em 94 eu já chegava como torcedor a minha 23° temporada que acompanhava e pensei bastante em parar por ali nas duas semanas seguintes a Imola, quando Mônaco veio eu confesso que não consegui deixar de assistir e entendi que não parar de acompanhar a Fórmula 1 seria a minha forma de homenagear Senna e seu legado, eu também acho que depois dele a Fórmula 1 não foi mais a mesma, no entanto coisas boas aconteceram e em parte muitas delas ocorreram por conta daquele dia em Imola e sinceramente a paixão que tenho envolve muitos fatores e Senna é um deles, não vou deixar esse legado apagar.

    abraços

    Mário

  3. wladimir duarte sales disse:

    Boa tarde a todos!
    Caro Fernando Marques,
    Mesmo sem a multidão do cortejo de Senna, as homenagens a Garrincha e Elis Regina também tiveram repercussão nacional, e Garrincha teve ainda o filme “Estrela Solitária” baseado no livro do mesmo nome do autor Rui Castro. Acredito que Pelé perdeu muito do carisma que tinha graças às homenagens que recebeu e às propagandas que atuou nos anos 80 (vitasay, perdigão e outros produtos), em parte graças a várias declarações infelizes que tem feito nos últimos cinco anos quanto ao nosso ex-presidente muitos vão dizer que já vai tarde depois de ter criado o monstro chamado PT que hoje leva o país ao caos. Só tenho que lamentar que as perdas de Luiz Pereira Bueno, Nilton Santos e Luciano do Valle (que enquanto cobria a F1 narrou brilhantemente as façanhas de Gilles Villeneuve, que beiravam o insano!) tiveram tão pouca repercussão. Temo que até Roberto Carlos, Zagallo, Emerson Fittipaldi e outros acabem passando quase em branco se essa lógica perdurar.

    • Mauro Santana disse:

      Um bom exemplo disso foi quando o Barão Fittipaldi nos deixou, pois tirando as mídias especializadas, quase não se viu nada a respeito.

    • Fernando Marques disse:

      Caro Wladimir,

      a comoção entorno da morte do Senna foi a maior que já vi desde que me entendo por gente … literalmente o Brasil parou para acompanhar o funeral e cortejo de despedida …
      foi algo impressionante pois durante 2 ou 3 dias todas as Tv’s cobriram 24 horas todo o evento …
      até os Piquetistas ficaram dolorosamente tristes assim como eu …

      Fernando Marques

  4. Rafael Carvalho disse:

    Como sempre, Flaviz escrevendo excelentes textos!
    Bom, eu tenho 28 anos e se me perguntarem se me lembro de algo do ano de estreia de Ayrton Senna e dos 3 anos de Lotus eu vou estar mentindo! O que sei dos 4 primeiros anos de Senna na F1 é o que vejo nas mídias. Pra ter uma noção, quando eu tinha 4 e 5 anos de idade eu imaginava que Ayrton havia feito a sua estreia na F1 pela Mclaren! Confesso que comecei a acompanhar a F1 foi por causa dele Ayrton Senna da Silva o esportista! Acho que muito dos moleques da minha época assistiam a F1 por que algo nele chamava a atenção! Com o passar do tempo eu fui aprendendo a gostar mais da F1, mas por causa dele! Ficava puto da vida quando Senna não conseguia vencer uma corrida, para mim ele tinha que vencer todas as corridas porque ele era o Senna (super herói) e o resto era o resto! Era fascinante vê lo como ele domava aqueles carros, o arrojo, a insistência e gana de sempre estar na frente, talvez era isso que chamava atenção. Na época dos três títulos mundias, minha avó morava no bairro de Jardim São Paulo (zona norte da capital sp) e muitas vezes eu atormentava ela pedindo pra que fossemos a pé até Santana para vê lo chegar de helicóptero no centro empresarial Vari na Rua Olavo Egidio e repetir varias vezes para minha avó é o Senna, é o Senna é o Senna! A cada vitória dele eu comemorava como se fosse um gol do São Paulo, alias ele só tinha um defeito: ser corintiano infelizmente! Senna pra mim era como se fosse um parente, sempre que lembro dele eu me emociono porque a saudade é muito grande! Para se ter uma noção do que foi a morte dele, em 1994 meu pai estava preso no 16º DP da Vila Clementino em SP e ele relatou que os re-educandos também sentiram muito morte de Ayrton! Surpreendente não é mesmo??? No dia seguinte do ocorrido em Imola, na sala de aula tinha um jornal na parede com uma foto com as cores do macacão da Williams escrito ADEUS! Como homenagem, a professora pediu para que os alunos fizessem um desenho e o meu desenho foi eleito o melhor da sala, tirei nota “P”! Eu fiz uma pista com vario carros com suas respectivas cores e ele (claro sempre ele) cruzando a linha de chegada em 1º lugar. Um detalhe que nesse desenho em vez de eu colocar as cores da Williams eu pintei com as cores da Mclaren! Confesso que depois da morte dele eu deixei acompanhar a F1 por 6 longos anos! As vezes ou raramente eu tentava acompanhar a F1, mas já não tinha a mesma empolgação nos tempo de Senna! Só voltei a assistir a F1 porque Rubens Barrichello assinou com a Ferrari e automaticamente milhões de brasileiros (no qual eu também me incluo) esperava ver Rubens campeão! Hoje que fique bem claro, assisto a F1 porque gosto de automobilismo mas nenhum piloto da atualidade que foram campeões na F1 chega aos pés de Ayrton Senna da Silva!
    Esse é um pouco do meu sentimento e acho que dos milhões de pessoas que gostavam dele!

  5. Fernando Marques disse:

    Flavis,

    gostei da sua coluna mas faço aqui algumas ressalvas:

    1) Esta questão que essa geração, do dia para noite, perdeu a sua referência. com o trágico acidente do Senna se deve muito também ao fato que as esperanças depositadas em Rubens Barrichello e depois Felipe Massa não tenham se concretizadas. Bateu apenas na trave.

    2) O Senna fez nascer uma geração que só gostava de acompanhá-lo na Formula 1. Esta “geração de torcedores” de certa forma morreram com o Senna. No fundo não eram e jamais foram amantes do automobilismo. Foram apenas amantes do Senna.

    3) A comoção nacional com a morte do Senna creio que jamais foi vista e dificilmente será novamente vista aqui no Brasil. Foi um acontecimento inédito até pela forma como ocorreu. Sinceramente nem Pelé, nem Lula consegue esta façanha.

    4) O legado do Senna merece ser sempre lembrado. Não pode ser esquecido. Mas isso deve-se valer para todos os nossos ídolos, sejam esportivos ou não. Esta geração inteira que passou a conhecer a Formula 1 pelo que ela foi, pode ser decorrência da infelicidade do Brasil não conseguir fazer mais um novo campeão na Formula 1 desde então. Parece até um trauma incurável.

    5) Pior seria se não tivéssemos mais um brasileiro nas pistas. Creio que até a Formula 1 entende isso.

    Fernando MArques
    Niterói rj

    • Walter disse:

      Fernando Marques: A sua segunda ressalva diz tudo o que Ayrton Senna efetivamente representa para o automobilismo.

  6. Mauro Santana disse:

    Belo texto Flaviz!

    Após 1º de maio de 94, praticamente só quem gosta da F1 é que continuou assistindo, os demais, por ali nunca mais acompanharam.

    Eu tenho um sobrinho de 15 anos, e quando passou o primeiro capítulo do especial Ayrton Senna do Esporte Espetacular, estávamos assistindo juntos, e quando terminou, ele se virou pra mim e disparou:

    – Tio, como foi o dia em que o Senna morreu?

    E minha resposta foi:

    – Triste demais, algo que eu nunca gostaria de ter vivido.

    Na hora, ele entendeu e sentiu que, depois de quase 20 anos, a tristeza e o buraco que ficou aberto para nós brasileiros nunca se fechou, e nunca irá se fechar.

    Porem, vendo por outro lado, após a morte de Senna, aqui no Brasil, o automobilismo parece ter ficado sem rumo, pois um bom exemplo disso é não termos mais categorias escola de Fórmulas, e futuras promessas terem que se contentar em correr de carros de turismo.

    Aquele primeiro de maio foi um divisor de muitas, mas muitas águas…

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

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