A primeira vez do Ricardão

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Tudo sobre o (sempre) agitado GP do Canadá, prova que foi a melhor da temporada até o momento.

Seria fácil enxergar uma coincidência no fato de tantos pilotos no nível mais alto do esporte a motor conquistarem suas primeiras vitórias ao fim de corridas caóticas. Uma análise mais abrangente, no entanto, poderá sugerir uma relação de causalidade de natureza oposta: provas caóticas geralmente embaralham as cartas, abrindo oportunidades para que talentos menos cotados ou não totalmente amadurecidos possam surpreender.

Recorrendo apenas à já cansada memória, podemos lembrar de alguns casos mais ou menos recentes em que isso aconteceu. Emerson, em Watkins Glen 1970 aproveitou-se de diversos abandonos e atrasos para conquistar uma vitória precoce, dois anos antes de ter musculatura para vencer sob condições normais. Na Espanha, em 1975, Jochen Mass conquistou sua única vitória numa prova marcada pela tragédia, em que vários conjuntos favoritos enfrentaram problemas. Alain Prost, correndo em casa em 1981, contou com a interrupção da corrida e com uma enorme farsa nos bastidores para superar Piquet e conquistar a primeira de suas 51 vitórias. Riccardo Patrese venceu sua primeira corrida após inúmeros conjuntos abandonarem à sua frente na última volta. Ayrton Senna “perdeu a virgindade” sob dilúvio em Portugal, como também teria sido o caso se vencesse em Mônaco um ano antes. Também em 85, Mansell venceu a primeira após uma vendetta de Rosberg, que tratou de tirar Senna da liderança deliberadamente quando era retardatário. Sandro Nannini conquistou seu único triunfo numa prova marcada pela primeira batida intencional envolvendo Prost e Senna, na qual foi o segundo a receber a bandeirada. Em Spa, 1992, Schumacher aproveitou-se da chuva para dar início ao seu recorde absoluto de vitórias. Quatro temporadas mais tarde, Olivier Panis subiu ao degrau mais alto pela única vez na carreira, ao término de uma das corridas mais atípicas dos anos 90. O bicampeão Mika Häkkinen anotou seu primeiro triunfo sob circunstâncias nebulosas, no que até hoje é apontado como um acordo envolvendo Williams e McLaren. Rubinho Barrichello nem se fale, venceu com chuva fraca e invasão de pista após largar na 18ª posição em Hockenheim. Jenson Button entrou para o time dos vencedores ao fim de uma corrida maluca na Hungria em 2006, ao passo que Vettel contou com a chuva em Monza 2008 para levar a Toro Rosso à única vitória de sua história. E, claro, Montreal contribuiu para muitos desses episódios também.

O próprio Gilles conquistou o primeiro de seus seis triunfos por lá, mas a prova não foi tão caótica assim. O mesmo, no entanto, não se pode falar de Boutsen em 1989; Alesi em 1995; Hamilton em 2007; Kubica 2008 e, agora, Dani Ricciardo em 2014.

Alguns eventos esportivos, quando olhados em perspectiva, dão a nítida impressão de terem sido armados, tal a precisão com que elementos cruciais do roteiro se encaixam para construir um final de tensão. No Canadá, em 2014, não foi diferente.

A rigor, quando os dois carros da Mercedes se tocaram levemente na curva Senna, e logo em seguida o inquebrantável Max Chilton derrapou sua invencível Marussia rumo ao pobre companheiro de equipe, a mensagem já estava na parede: essa seria mais uma daquelas edições do GP Canadense.

Sete voltas sob a batuta do safety car certamente foram decisivas para o desfecho da corrida, tanto pela quantidade de combustível e pela vida útil dos freios que permitiam economizar, quanto pelo aquecimento extra que inevitavelmente impuseram aos sistemas de recuperação de energia. Afinal, considerando o estado em que a maior parte dos conjuntos se encontrava quando cruzou a linha de chegada, fica difícil imaginar quantos carros teriam suportado outras sete voltas em ritmo de corrida.

Da mesma forma, foi decisiva a surpreendente capacidade das Force India para fazer durar os pneus contra todos os prognósticos, elevando Sergio Pérez e Nico Hülkenberg à condição de zagueiros entre as Mercedes e os conjuntos que, em teoria, deveriam ser os perseguidores mais próximos das flechas prateadas. Em Montreal isso significava falar em Red Bull e Williams.

Nada disso, no entanto, teria afetado de forma significativa o andamento da corrida, caso os bólidos indianos não fossem verdadeiros dragsters travestidos de Fórmula 1: inalcançáveis nas zonas de aceleração, e lentos ao longo das curvas. Atrasando os conjuntos que vinham atrás, Pérez e Hülkenberg não apenas mantinham-se à frente do comboio, como tornavam inválido o recurso da asa móvel, uma vez que todos no pelotão atrás deles as abriam, anulando qualquer vantagem relativa.

Em termos simples, eles não eram ultrapassados nem deixavam ninguém ultrapassar ninguém.

Por tudo isso, a forte perseguição imposta por Hamilton a Rosberg, tão logo o inglês se livrou da Red Bull de Sebastian Vettel ainda na nona volta, foi tão importante para a construção do resultado quanto o desempenho excepcional dos carros da Mercedes. Afinal, não fosse pela competição entre os dois pilotos que brigam pelo título, dificilmente eles teriam forçado o ritmo a ponto de voltarem à frente de Pérez após a primeira troca de pneus. O tempo ganho com esse detalhe logo se revelaria crucial para Nico Rosberg.

Pouco antes da metade da corrida, tudo parecia pronto para uma reedição da batalha de 1988, quando Senna alcançou e superou Prost, muito à frente dos demais times. Lewis, de fato, chegou a ameaçar, levando Rosberg a uma fritada vigorosa de pneus e a um polêmico avanço pela área de escape na chicane final – através do qual o alemão ganhou seis décimos de segundo e saiu da zona de acionamento do DRS. A disputa esquentava, e um segundo toque entre os companheiros de equipe não poderia ser totalmente descartado.

Aí, então, o destino resolveu mudar completamente os rumos da disputa.

Hamilton é o primeiro a passar um rádio para a equipe acusando grande perda de potência. Seus sistemas de recuperação de energia haviam deixado de funcionar, e por isso mesmo iriam começar a sobrecarregar os freios. O que parecia um novo golpe de sorte por parte de Rosberg, no entanto, logo se revelaria um drama compartilhado, uma vez que o líder desenvolveria o mesmo problema poucas curvas mais tarde. Incrível.

De um instante para o outro, dois rivais fratricidas disputando egoisticamente todas as vitórias e voltas na liderança tornaram-se companheiros numa fuga desesperada. A esta altura Pérez e Hülkenberg já haviam feito suas únicas trocas de pneus, ao passo que seus perseguidores haviam antecipado o terceiro jogo de pneus na esperança de conseguirem na estratégia o que não conseguiam na pista. Obtiveram sucesso parcial, superando o alemão mas não o mexicano.

Massa, a essa altura, aparecia em terceiro, descontando ferozmente a diferença em relação aos líderes, e ainda ouvindo da equipe que deveria tentar levar os pneus até o fim. Desde a Alemanha em 2010, nenhum momento credenciou-o tão consistentemente a lutar por uma vitória na F1. Hipótese que ganhou ainda mais corpo quando Felipe tornou-se o primeiro piloto de outra equipe a liderar uma prova em 2014, após nova rodada de pit stops envolvendo os pilotos da Mercedes. Felipe, no entanto, também teria de parar mais uma vez.

Com uma troca melhor, Hamilton voltou à pista na liderança e a história parecia estar se repetindo. Mal os carros chegaram ao grampo, no entanto, ficou claro que o campeão de 2008 não tinha mais freios à sua disposição. A perda do aparato de recuperação de energia e o tempo andando atrás do companheiro haviam tornado seu carro simplesmente inguiável, e abandonar era a única opção.

A essa altura Rosberg seguia se arrastando, mas quando os replays começaram a mostrar incursões semelhantes pela grama, e os gráficos apontaram perdas de tempo da ordem de quatro segundos por volta, seu destino parecia igualmente traçado. Na volta 50 o trem puxado por Sergio Pérez finalmente o alcançou, e tudo parecia questão de tempo. Com um déficit de velocidade final superior a 30km/h não havia como se manter à frente… Ou será que havia?

Aqui é preciso dar os méritos a Rosberg. O filho do grande Keke honrou o sobrenome e se adaptou a problemas sérios de pilotagem, tirando tudo do Mercedes em curvas, cuidando do que restava de seus freios, e rezando nas retas. A extrema velocidade em reta do Force India não bastava para recuperar o atraso acumulado nas curvas, tanto mais quando o mexicano tinha a preocupação de fazer durar pneus já consideravelmente gastos. O impossível parecia pronto a se realizar, e Hamilton começava a ver seu pior pesadelo tomando forma.

Pérez, nessa fase, era perseguido por Ricciardo – que havia superado Vettel numa estratégia de corrida mais eficaz (!) –, pelo próprio Vettel e por Felipe Massa, piloto mais rápido da pista após livrar-se do bloqueio de Hülkenberg. Novamente, no entanto, o trem mantinha-se estável graças ao uso indiscriminado do DRS, e à altíssima velocidade final do mexicano. Parecia coisa escrita para uma vitória épica da Mercedes e de Nico.

Mas… A três voltas do fim é Pérez quem começa a sofrer com seus freios. O mexicano perde a posição para Ricciardo, e agora Rosberg não teria mais como construir vantagem nas curvas. Vettel leva uma volta a mais para conseguir a mesma manobra, ao passo que Massa encontra sua oportunidade na abertura do último giro, mas termina chocando-se violentamente contra a barreira de proteção após um toque com o carro indiano.

No primeiro momento a impressão é de que o brasileiro teria culpa, reforçada por uma falha no sinal da câmera onboard justamente no momento da freada. Mais tarde, no entanto, a câmera do helicóptero não deixaria dúvidas: culpa de Pérez que, a exemplo de Chilton, tem punição a cumprir no GP da Áustria. Para Felipe, apesar da atuação digna e aguerrida, resta a realidade de ter 18 pontos na conta, ante 40 do companheiro de equipe.

Instantes antes da batida que encerraria a disputa, Daniel Ricciardo conseguia superar a Mercedes de Rosberg para assumir a liderança e conquistar a primeira vitória de uma carreira cada vez mais promissora.

Vettel escapou por muito pouco de ser atingido pelos bólidos desgovernados de Felipe Massa e Sergio Pérez, mas não teve a mesma sorte na hora de driblar a nova onda de críticas em relação a seu desempenho.

É fato que Ricciardo tem feito um trabalho excelente na Red Bull, e que a vitória fez justiça a essa realidade. No entanto, nenhuma comparação entre os pilotos será completamente justa até que ambos possam fazer uma sequência de corridas livres de problemas, da mesma forma como a pontuação da Williams não reflete o desempenho de seus pilotos.

Teremos tempo para comparar Vettel e Ricciardo no futuro, de forma mais adequada e precisa. Por tudo que já fez na carreira, o tetracampeão merece crédito numa fase difícil.

E para encerrar, lembro uma milestone importante deste GP do Canadá.

Antes dele, a última vitória de um motor Renault turbo na F-1 havia sido obtida por Ayrton Senna, no simbólico GP dos Estados Unidos de 1986. Curiosamente, em meio a uma Copa do Mundo.

Uma ótima semana a todos.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

6 Comments

  1. Rodolfo César disse:

    Canadá foi palco também da primeira e única vitória de Robert Kubica na F1 em 2008, um ano após ter sofrido na mesma pista um acidente que se tivesse acontecido anos antes, com certeza não sobreviveria. No mínimo uma vitória emblemática, quase que uma redenção.

  2. Lucas disse:

    em 1992 não foi só a chuva (que na prática só afetou negativamente mesmo o Senna, que fez uma decisão estratégica desastrosa e foi parar lá atrás), mas também um pit stop beirando o patético de Brundle (que após passar a tarde inteira encarando a caixa de câmbio do Schumacher, passou o alemão quando este errou e saiu da pista) e falhas mecânicas nas duas Williams (que fariam dobradinha fácil com Senna fora da disputa), e só aí a vitória caiu no colo do Schumacher.

    • Com certeza, Lucas, faltaram muitos exemplos e detalhes.
      Depois que publiquei o texto, por exemplo, lembrei do caso de Peter Revson, que venceu a 1ª de suas corridas na carnificina de Silverstone em 1973.

      Os amigos, aliás, estão convidados a lembrar de outros episódios.

      Abraços

  3. Sandro disse:

    Vettel: “Come back, Webber! Come Back!” (hehehe!)

  4. Mauro Santana disse:

    Belo Texto Marcio!

    Corridaça, e parabéns ao Ricardo.

    Muito esta se falando que o Perez errou, mas na minha opinião, ambos erraram, e aí, deu aquela panca de respeito.

    E o Vettel hein.

    Será que ele já esta com saudades do outro canguru?

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

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