A sede de vencer e a carta

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A história do austríaco Jochen Rindt, único campeão póstumo da história da F1.

Hoje vamos relembrar uma história sobre a paixão pela velocidade e amor ao automobilismo de um campeão que não soube que conquistou um título mundial.

Vamos recordar um pouco sobre Jochen Rindt e sua passagem pelo mundo da velocidade. Uma história de velocidade, agressividade e uma vontade insaciável de vencer diante do perigo que espreitava a vida de um piloto de competição nos idos dos anos 60 e 70.

Órfão quando criança, seus pais foram mortos pelos bombardeios em 1943 durante a Segunda Guerra Mundial, um ano após o seu nascimento em Mainz na Alemanha. Rindt acabaria sendo criado por seus avós em Graz, Áustria.

Durante sua juventude, Rindt exibiu uma paixão por velocidade e a vontade visceral de competir.

Ele sofreu alguns acidentes e por duas vezes quebrou suas pernas em corridas de esqui. Não foi surpresa quando, ao começar a se interessar pelo esporte a motor, em ciclomotores e bicicletas motorizadas, ele apresentar a tendência a bater ou ganhar. Acabou criando em seus primeiros anos a fama de piloto forte, mas destemido.

“Nós alemães tememos a Deus e nada mais”, comentou Rindt, lembrando uma frase atribuída ao general alemão Otto von Bismarck. Curiosamente, ele resolveu adotar a cidadania austríaca apesar de ter nascido na Alemanha.

Quando ele alcançou a idade suficiente para dirigir nas estradas, adquiriu um Volkswagen e passou a rodar pelas ruas, obviamente tendo problemas com a lei. Sua personalidade já mostrava um jovem rebelde que resultou na expulsão de várias escolas particulares.

“Eu sempre estava com problemas na escola, e uma vez eu quase atropelei um dos professores na minha moto”, disse uma vez.

Foi numa dessas expulsões que ele foi para a Inglaterra para estudar, e num país onde fervilhava uma indústria de automobilismo de competição, ele acabou fisgado pelo vírus da velocidade.

Tendo retornado à sua casa na Áustria, ele decidiu que um retorno para a Inglaterra seria uma questão de tempo e, claro de convencimento dos avós. É bom lembrar que, financeiramente, Jochen havia herdado um bom patrimônio dos pais e não teve problemas em ter dinheiro suficiente para financiar seu retorno.

Este retorno à Inglaterra se materializaria em 1964, quando estabelece residência e compra um Brabham de Fórmula 2 por 4.000 Libras. Em apenas sua segunda corrida de F2, no circuito de Crystal Palace, Rindt supera pilotos do calibre de Graham Hill, Jim Clark e Jackie Stewart. A imprensa estava em polvorosa, como ele mesmo declarou tempos depois:

“A maioria dos jornais britânicos nunca tinha ouvido falar de mim, e na manhã seguinte um deles disse que eu era um jovem australiano; Eles parecem pensar que todos os pilotos de corrida vêm da Austrália ou Nova Zelândia”. Naqueles tempos, quem conseguia muito sucesso sendo de fora da Europa vinha desses dois países, o que explica esse pensamento por parte da imprensa.

Rindt logo tornou-se o homem a bater na Fórmula 2. Nessa categoria, ele se transformou num piloto feroz e muito competitivo.

Sua mudança para a fórmula 1 veio quando ele assinou um contrato de três anos com a equipe de Cooper em 1965. Infelizmente, um passo que se mostrou equivocado, dado a situação não competitiva que a equipe mostrou nos anos seguintes. Mas tendo continuado a competir na Fórmula 2, sua fama de piloto rápido e destemido continuou intacta, apesar dos resultados inexpressivos na Fórmula 1.

Vale lembrar que em 1965 junto com o americano Masten Gregory, Rindt venceu a corrida das 24 horas de Le Mans em uma Ferrari 250 LM, numa situação bastante improvável. O carro pertencia à Nart, a escuderia norte-americana da Ferrari, dirigida por Luigi Chinetti. Era uma operação bastante caótica, e o carro de Jochen e Masten teve que usar pneus Goodyear… de chuva! Curiosamente, os pilotos adoraram essa configuração!

Na corrida, eles enfrentaram problemas mecânicos na fase inicial da prova. Com o carro encostado nos boxes, Jochen já estava indo embora pra casa, quando Masten fez a seguinte proposta: que esperassem o carro ser consertado, e acelerassem loucamente, como se não houvesse amanhã.  Fizeram então uma fantástica corrida de recuperação, e contando com a quebra das Ferraris de fábrica e os novos, porém frágeis Ford GT 40, conseguiram uma vitória improvável.

Mais dois anos com Cooper e um com uma Brabham não competitiva não mostravam a dimensão do quão competitivo Rindt era como piloto, que, mesmo assim, conseguia tirar desempenhos acima das possibilidades de seus carros.

Numa entrevista, lhe foi perguntado sobre como ele estabelecia seus limites: “Limites? Eu nunca piloto dentro deles?” – foi a sua resposta.

A fama de destemido era cada dia mais crescente, tanto entre os demais pilotos, como por parte da imprensa.

Colin Chapman foi o homem que proporcionou a Rindt sua primeira grande oportunidade na Fórmula 1. Ele assinou para correr na escuderia inglesa em 1969. Rindt, na cabeça de Colin Chapman, seria um substituto a altura para o lendário Jim Clark, que havia morrido no ano anterior, em 1968. Interessante salientar que Rindt foi o primeiro não britânico contratado pela Lotus.

A temporada de 1969 começa no GP África do Sul, prova que Rindt abandona. Na corrida seguinte, na Espanha, em 4 de maio, ele sofre um terrível acidente após seu carro perder o aerofólio traseiro.

Na fase de recuperação ele escreve uma carta para Colin Chapman:

Caro Colin,

Acabei de chegar de Genebra e terei amanhã uma segunda opinião sobre o estado de minha cabeça. Pessoalmente me sinto muito fraco e doente, ainda tenho que permanecer deitado a maior parte do dia. Após ver um novo médico e ouvir sua opinião, nós tomaremos a decisão sobre a participação em Mônaco e Indy.

Tenho essa foto que explica incrivelmente muito bem o acidente. Eu não sabia que isso poderia voar tão alto. Robin Herd aparentemente viu a asa sair, mas não pôde ver o acidente uma vez que aconteceu na curva.

Agora toda a situação, Colin. Eu tenho corrido na F1 por cinco anos e cometi um só erro (eu acertei Chris Amon em Clermont-Ferrand) e tive um acidente em Zandvoort devido à falha no seletor de marcha, de outro modo eu procurei sempre estar livre de problemas. Esta situação mudou rapidamente desde que eu me juntei à sua equipe. Foram as corridas em Levin, Eifelrace, os triângulos de F2 e agora Barcelona.

Honestamente, seus carros são tão rápidos que nós poderíamos ainda ser competitivos com algumas libras extras usadas para fortalecer as partes mais fracas. Acima de tudo, eu penso que você deveria gastar algum tempo checando o que seus diferentes empregados andam fazendo. Eu asseguro que os triângulos do carro de F2 pareciam diferentes. Por favor, dê alguma atenção às minhas sugestões, eu só posso pilotar um carro no qual tenha confiança e o ponto de desconfiança está muito próximo.

Com meus cumprimentos,

JochenRindt

Essa carta foi muito emblemática por ter sido escrita por um dos pilotos considerados mais destemidos do grid, bem como pela forma crua e direta de cobrança que Rindt fez e Chapman. Nunca antes um piloto havia criticado de forma tão transparente um carro e seu construtor, pleiteando mais segurança.

Sua relação com Colin acabou sendo muito conturbada a partir desse episódio. Rindt voltou a correr após sua recuperação no GP da Holanda. Sem grandes resultados na sequência, chega acorrida em Monza e então conquista um segundo lugar, seu primeiro pódio pela Lotus.

Todos os grandes desportistas têm um momento decisivo. Para Rindt, foi a vitória em Watkins Glen, sua primeira na categoria. Um piloto de talento finalmente conseguia desencantar e vencer, numa altura em que alguns temiam que esse momento não acontecesse.

Começa a temporada de 1970, a Lotus desenvolvia o modelo 72, que viria a revolucionar a categoria. Nas primeiras provas, porém, opta em continuar com o modelo 49, já que o 72 ainda apresentava alguns problemas, comuns em início de projetos.

A natureza da Fórmula 1, naquela época era muito trágica. Muitos pilotos iniciavam um campeonato, mas uma parcela não terminava. Em 1970, essa sina foi mais longe e as mortes de Bruce McLaren e Piers Courage, num intervalo de 19 dias um do outro, em junho de 1970, tiveram um profundo impacto sobre Rindt. Agora ele tinha uma filha com a esposa Nina, e em conversas começou a cogitar a aposentadoria no final da temporada.

Apesar de tudo o que estava acontecendo ao seu redor, uma coisa permaneceu constante: Rindt não perdeu seu espírito competitivo. Ele venceu quatro corridas consecutivas – o GP da Holanda (prova onde Courage sofreu seu acidente), bem como as corridas da França, Inglaterra e Alemanha. Na corrida da Áustria, em casa, ele abandona.

O GP da Itália estava programado para ser disputado em Monza em 6 de setembro. Na manhã do dia anterior, os carros da Lotus treinam experimentando correr sem os aerofólios, visando ganhar velocidade em reta. Vem então o acidente que acabou vitimando Rindt na curva Parabolica.

Muito já se falava que Rindt queria deixar a Lotus, tão logo conquistasse o tão almejado título. Entre o GP da Espanha de 1969 e o fatídico treino em Monza, foram 16 meses; Rindt correu 19 GPs pela Lotus, venceu 6 corridas e estava com 28 anos.

Posteriormente ele foi declarado campeão mundial póstumo de 1970, até hoje o único caso.

Tendo assumido um risco tão grande para correr num carro competitivo não deixa de ser irônico que ele foi até hoje o único campeão da categoria que afinal não ficou sabendo de sua conquista.

Mas como ele mesmo havia declarado: “Eu corro basicamente porque eu gosto, agora estou ganhando dinheiro com isso, estou muito feliz, mas eu nunca faria isso só pelo dinheiro. Eu corro porque sei que um dia haverei de vencer”.

Ele era um talento natural. Sua paixão por velocidade e para a emoção da competição deu a ele os ingredientes que ele precisava para ser indiscutivelmente um grande talento de sua geração.

“Talvez eu não viva o suficiente para atingir a idade de 40 anos. Mas, até lá, experimentarei mais coisas na vida do que qualquer outra pessoa”.

 

Mário Salustiano
Mário Salustiano
Entusiasta de automobilismo desde 1972, possui especial interesse pelas histórias pessoais e como os pilotos desenvolvem suas carreiras. Gosta de paralelos entre a F1 e o cotidiano.

4 Comments

  1. Walter disse:

    Mário, simplesmente excelente!

  2. Fernando Marques disse:

    Mario,

    show de bola!!!
    Em 1970, com apenas 10 anos de idade foi quando comecei a conhecer a Formula 1 em razão da vitoria de Emerson em Watkins Glen, que garantiu o título ao Rindt. Tudo através da 4 Rodas …
    Os campeões daquela época, face ao que era a Formula 1 em termos de segurança, sem duvidas eram campeões de verdade. J. Rindt não foi diferente … a historia dele deixa isso bem claro.
    Nas fotos acima tem uma foto dele no Lotus 72 na Belgica em 1969. O correto não seria o ano de 1970?

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Mário Salustiano disse:

      Fernando

      você está correto, a foto é de 1970. Cá para nós começamos a acompanhar a Fórmula 1 numa boa época, no meu caso foi a partir de 1972…rsrs

      abraços

  3. Mauro Santana disse:

    Belo texto, amigo Mário!!

    Realmente J. Rindt foi um grande piloto, e também com um grande respeito e cavalheirismo na carta que escreveu a C. Chapman, o que demonstra muito bem como eram a postura da maioria das pessoas nos anos 60.

    Ele teria feito história de qualquer maneira na F1, mas, quis o destino que ele entrasse para a história da categoria máxima como o único até então Campeão Póstumo.

    Interessante também que, em seu segundo ano vivendo na Inglaterra, consegue uma vitória na mítica prova de 24 horas de Le Mans.

    Lembrei de um texto muito legal escrito pelo Edu em 2007 a respeito desta prova, e tomo a liberdade de deixar o link abaixo.

    http://gptotal.com.br/2005/Colunas/Eduardo/20070615.asp

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

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