Alguns GPs são especiais, ora por trazerem uma decisão de título dramática, ora por proporcionarem uma performance “extraterrestre”, ou uma mistura das duas coisas. Quanto mais a gente puder encontrar e ter corridas como essas em nossos acervos, melhor. Mas há alguns GPs que são históricos ou marcantes para nós por diferentes razões. Muitos leitores e colunistas (não é, Márcio?) certamente têm uma vastíssima videoteca, e minhas referências poderão ser bastante rasas.
Em minha casa, sempre tivemos uma fita “para gravar” no videocassete, ora porque, durante a prova, se anunciasse algum momento histórico (Japão 1990, Canadá 1991, Alemanha 2000, França 2002, Japão 2003) ao final, ou porque desde antes já houvesse planejado assistir depois (Austrália-90, Brasil 1991, Inglaterra 2003, Nurburgring-2007).
Certamente eu queria ter as fitas de corridas como Nurburgring 1957 ou Japão 1989, por exemplo, mas o GP que eu queria ter visto mesmo, na íntegra, em todos os lances, é o GP do México de 1964. Pra mim, o ‘maior GP de todos os tempos’.
Neste ano, no dia 25 de outubro, se completarão 50 anos daquela corrida que marcou o único título de John Surtees, na Fórmula 1: “Big John”, como é(ra) conhecido, já havia sido multicampeão nas motos (conquistou quatro campeonatos nas 500cc, e foi tricampeão nas 350!) sendo, até hoje e para sempre, o único homem sobre a face da terra a ser campeão mundial de Fórmula 1 e da “MotoGP” – um feito ainda maior que a tríplice coroa do mítico Graham Hill, um dos protagonistas dessa história.
Antes de relembrarmos a corrida, vale destacar que o GP do México também é histórico por dois motivos: primeiro (no GP anterior, nos EUA, isso também aconteceu), por ter sido uma das duas corridas em que houve uma Ferrari azul (e branca): por questões judiciais na Itália, a Scuderia correu com o nome de “North American Racing Team”.
Outro fato histórico é que Surtees se tornaria o primeiro de dois pilotos (o outro foi Ayrton Senna, em 1988) a ser campeão mesmo tendo somado menos pontos no total, mas ficando à frente na contagem dos pontos válidos, descontando os ditos descartes.
Vamos à corrida, então.
Os prognósticos à conquista de Surtees eram contrários: o inglês precisaria, necessariamente, vencer e torcer para que Graham Hill fosse no máximo terceiro. Outra chance seria ele chegar em segundo com Hill não subindo ao pódio. Para Hill, a vitória daria o título independente de qualquer outra combinação. Ele podia levar o caneco também sendo segundo ou terceiro, desde que Surtees não vencesse.
Além de Hill e Surtees, havia Jim Clark na disputa: apesar de ostentar o número 1 no seu carro, o escocês voador corria como azarão: Clark precisava vencer e torcer para que Hill não chegasse ao pódio e Surtees fosse no máximo terceiro. Em suma, tinha-se uma decisão aos moldes clássicos de Adelaide 1986, Interlagos 2007 ou Abu Dhabi 2010.
Nos treinos, Clark conquista a pole, sua quinta no ano (num universo de 10 GPs), por quase 0.9 segundo, e via suas esperanças de bicampeonato crescerem mais ainda uma vez que Surtees (quarto) e Hill (sexto) ficaram fora do top 3. Jim é um piloto descendente, e só o que se poderia imaginar era que ele sumisse à frente e ditasse o ritmo da corrida. Restava a Graham Hill e John Surtees partir para uma estratégia agressiva, almejando os pontos que dariam o caneco.
Nenhuma largada poderia ser melhor para Clark: ele parte bem, como esperado, e ainda vê Graham Hill cair de sexto para décimo, porque os elásticos dos seus “óculos” arrebentaram (eita!); Surtees, que partia em quarto, teve problemas no motor, e caiu para décimo-terceiro. Agora, além do elemento tríplice disputa, tínhamos dois pilotos tendo de realizar corridas de recuperação, numa decisão aos moldes Japão 1988 e Brasil 2012. Perfeito para o espectador!
A recuperação de Graham Hill foi impressionante: já na volta 12 ele era terceiro, angariando o pontinho que precisava para conquistar seu segundo título. Surtees também fazia sua parte: chegou a sexto na volta 12, e alguns giros depois era quinto. Enquanto isso, o escocês voador seguia seu voo solitário – ele registrou a melhor volta da prova –, impondo seu domínio e aguardando que o imponderável atingisse seus adversários.
Na metade da prova, acontece um lance épico, alvo de discussões até hoje, e talvez uma manobra ainda mais difícil de engolir que os choques de Senna e Prost ou as colisões de Schumacher.
Estávamos na volta 31, quando ocorre um acidente entre Graham Hill (3º colocado e virtual campeão) e Lorenzo Bandini, o 4º colocado, companheiro de equipe de Surtees, que vinha em quinto. A mecânica da batida – confiram as imagens na galeria – não comprova a intenção de Bandini, mas indubitavelmente parece uma manobra extremamente precipitada, coisa de principiante. E ele era um piloto de qualidade.
Tanto Hill quanto Bandini conseguiram voltar à pista, mas o britânico não teve a mesma sorte do italiano: enquanto Hill retomava com problemas no exaustor – e precisou de um pitstop emergencial que o jogou para a 13ª posição –, Bandini seguiu sem maiores complicações, agora na quarta colocação, uma vez que Surtees ascendeu ao terceiro posto com o choque dos adversários.
Dessa maneira, o título era de Jim Clark. Surtees, terceiro, é ultrapassado (devolveu a posição?) por Bandini na volta 34, e assim seguiu a vida até a 63ª e antepenúltima volta: Clark em primeiro, seguido por Dan Gurney, Lorenzo Bandini e John Surtees. Graham Hill capengava lá no fundo, não indo além de décimo.
(breve pausa: dois anos antes, no GP da África do Sul, último da temporada de 1962, Jim Clark liderava a corrida tranquilamente e ia garantindo seu primeiro mundial quando começou a sofrer vazamento de óleo a menos de 20 voltas do fim: perdeu a prova e o campeonato para… Graham Hill).
Volta 64: o motor Climax, que sete voltas antes começava a ter problemas com vazamento de óleo, abre o bico. Clark estava um minuto e meio à frente de Surtees, que agora era terceiro, atrás de Bandini e do eventual vencedor da prova, Dan Gurney.
Então, o óbvio acontece: Lorenzo Bandini devolve a gentileza de 30 giros antes e inverte as posições com John Surtees, que chegando em segundo somava seis pontos e contabilizava 40 (todos válidos), um a mais que Graham Hill (que totalizara 41, mas tinha de descartar um quinto lugar).
Como se vê, decisões em batidas não são coisa “de hoje”, e o ‘modus operandi’ da Ferrari também é antigo: coincidência ou não, a equipe atravessaria uma das piores fases de sua história, só voltando a vencer o mundial em 1975.
Surtees campeão mundial, Hill vice, Clark e mais uma decepção, Bandini e o emprego garantido. Mas esse não era o capítulo final da temporada. No natal daquele ano, Graham Hill enviou uma encomenda a Lorenzo Bandini: um conjunto de discos com um curso intitulado “Aprenda a Dirigir seu Carro em Dez Lições”.
O humor britânico em sua versão mais genial: e essa sim, uma vingança com classe.
Abraços a todos!
4 Comments
Nada a acrescentar, muito bom o texto!
best results (melhores resultados) foi “traduzido” ou “interpretado” para “descarte dos piores resultados”… 😛
“Lorenzo, John is faster than you. Understood?” 😛
Surtes campeão mundial com duas e quatro rodas!
Belo Texto Marcel!
E sem duvida, foi uma corridaça!
Segue abaixo um vídeo de como era a pista do Hermanos Rodrigues no México nos anos 60.
Bem interessante se comparada ao traçado que a F1 utilizou de 86 a 92.
http://www.youtube.com/watch?v=aLzTkuV-B6I
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR
Belo texto, desconhecia os detalhes dessa disputa.
Seria muito bom ter um acervo de corridas antigas gravadas. Ou pelo menos disponíveis no youtube.
Hill mandou bem no revide! o cara era realmente um gentleman.
Abraços