Atração fatal

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Três personagens protagonistas da paixão pelo perigo e pelos desafios.

Em 1998, no mar tirreno, não muito longe da cidade de Marselha, um pescador encontra os restos de um avião que resultou ser o de Antoine de Saint-Exupéry, escritor mundialmente famoso por suas novelas, principalmente a titulada “O Pequeno Príncipe”. Porém, além de escritor, Antoine, que desde muito jovem se sentiu atraído pela aventura e os aviões, também havia chegado a ser um verdadeiro pioneiro da aviação.

Em 1935, de Saint-Exupéry, tentaria um voo sem escalas entre Paris e Saigon mas seu avião cairia no deserto do Egito. Antoine e seu mecânico, sem embargo, conseguiriam sobreviver ao impacto e a vários dias perdidos no deserto (aquele episódio terminaría sendo a inspiração para a sua supracitada novela mais famosa). Em 1938, noutro desafio aéreo, Antoine se acidenta na Guatemala, sofrendo graves feridas das que é tratado por longo tempo num hospital em Nova York, mas que lhe deixariam como sequela dificuldades de movimento e locomoção.

Apesar de suas limitações físicas, em 1943 e já contando 43 anos de idade (oito mais do que o limite estabelecido para os pilotos da época), Antoine, a fim de combater os nazis, solicitou insistentemente ser admitido na força aérea destinada no norte da africa, coisa que conseguiria (ainda que precisava de ajuda para se colocar o macacão de piloto) sendo assinado a missões de reconhecimento no mediterrâneo, desde bases nas ilhas da Sardenha e Córsega.

Porém, no dia 31 de julho de 1944, durante umas dessas perigosas missões, o Lockheed P-38 de Antoine desapareceu sem deixar vestígios. Antoine, que tinha abandonado seu plácido e seguro retiro nos EUA, havia dito que: “É na impulsiva necessidade de aventura, vitória e ação criativa que o homem encontra o desfrute supremo“.

Em 1973, durante a oitava volta do GP da Holanda, aconteceria um dos mais dramáticos acidentes da formula um. Roger Williamson, após ganhar 5 posições nas 6 voltas anteriores, chega na curva à direita que antecede o conhecido como “túnel dos pedestres”, lugar onde havia perdido a vida Piers Courage em 1970. Ali, Roger perde o controle do carro e este bate com violência nos guard rails e capota, incendiando-se quase de imediato (As marcas deixadas no asfalto, sugerem que Williamson sofreu o furo de um pneu).

David Purley, que vinha logo atrás, para e corre até o March 731 de Williamson esperando ajudar o companheiro que estava praticamente ileso, mas preso no cockpit e perante a passividade dos fiscais. O próprio Purley sofrería queimaduras em sua desesperada tentativa de virar o bólido para liberar Roger. Contudo, o fogo crescia e crescia até engolir o carro completamente e dissipar qualquer esperança de salvar Williamson.

httpv://youtu.be/K1F28gUTnig

Purley, que até então era um piloto quase desconhecido, passaria a ser um dos mais populares, e sua corajosa ação lhe foi premiada com a concessão da “George Cross medal for bravery”, a mais alta distinção civil no Reino Unido. Pouco depois, quando perguntado ao respeito do acontecido na Holanda , Purley diria: “Em Adem, se você via um tanque em chamas, você tentava ajudar seus ocupantes, exatamente como fiz em Zandvoort. Era só uma questão de alguém necessitado de ajuda!“.

Aqui, Purley se referia à sua participação na guerra do Yemen de meados dos anos 60, onde ele mesmo sobreviveu ao ataque sofrido pelo veiculo blindado que o transportava e que foi destruído.

Entrementes, nesse mesmo ano de 1973, um jovem francês iniciava sua carreira no automobilismo. Se tratava de Didier Pironi, que antao participaría por primeira vez no “Challenge Europeen de formule Renault ” , subindo ao pódio em 3 ocasioes para vencer o campeonato no ano seguinte e repetir em 1976, após haver sido terceiro em 1975.

Em 1977, Didier, participaria em varias categorias (Le Mans, formula Atlantic, Fórmula 3 e Fórmula 2), destacando na formula 2, onde acabaria na terceira posição final do campeonato. Assim, sua consistência nao passou despercebida para a ELF, a companhia que havia apoiado Pironi desde seu inicio no automobilismo e também patrocinadora da equipe Tyrrell, o que le abriu as portas da equipe do velho Ken.

Por sua parte, para David Purley toda aquela popularidade não lhe serviu para dispor de um bom carro e sem perspectivas de achar um melhor que o pobre March, decide abandonar a formula um para participar na formula 2 e se concentrar na formula 5000, sendo campeão desta última em 1976.

Em 1977, com patrocínio da LEC, a empresa familiar dedicada à fabricação de refrigeradores, Purley volta à formula 1 com seu próprio carro, o LEC CRP1, em cuja estréia na corrida dos campeões, David consegue um meritório 6º lugar. Na Bélgica, Perley deixaria constância de sua qualidade quando conseguiu resistir à aproximação de Niki Lauda e sua poderosa Ferrari, o que permitiria a vitória final de Gunnar Nilsson.

Purley contaria depois da corrida que o austríaco havia ido falar com ele para se queixar dizendo que a resistência oferecida pelo britânico lhe havia custado uma derrapagem e a vitória: “Lauda me disse que eu estava no seu caminho e que coelhos como eu deveríamos deixar passar a ases como ele“. David, simplesmente, respondeu: “Se um as numa Ferrari nao pode nem ultrapassar um coelho num LEC… para mim nao é um as!

Porém, o sonho de Purley e a LEC terminaria durante os treinamentos para o British GP em Silverstone, quando impossibilitado de controlar o carro devido ao bloqueio do acelerador de seu LEC, Purley se arrebenta contra as proteções na curva Becketts com tal violência que tudo fazia temer o pior. No entanto o robusto e pesado chassi do LEC que, possivelmente, vinha prejudicando o rendimento do carro no campeonato, lhe salvaria a vida.

Contudo, o impacto havia sido brutal e os ossos fraturados ou fissurados do pobre Purley se contam por dezenas, sendo especialmente graves as lesões em seus pés, pernas e cadeira. David passaria mais de seis meses no hospital, se submeteria a inúmeras operações cirúrgicas e a uma longa e penosa recuperação durante os meses seguintes. Enquanto isso, Pironi já na Tyrrell, consegue 7 pontos no campeonato e vai se habituando à categoria.

Tambem participaria nas 24 horas de Le Mans com um Renault Alpine, vencendo a prova junto a Jean Pierre Josseau. A Tyrrell, para entao, já havia iniciado seu declive e para a temporada de 1979 perde o patrocínio da ELF. Ainda assim, Pironi dobraria os pontos conseguidos em 1978 ( com dois podios ), igualando os pontos do experiente Jean Pierre Jarier, seu companheiro.

No fim dessa temporada de 1979, Purley regressa à competição com seu LEC para disputar as últimas 4 provas do campeonato Aurora de formula 1. Na corrida de 27 de agosto em Brands Hatch, abandona. No dia anterior, o 26 de agosto, Pironi também abandona em Zandvoort.

No dia 9 de setembro, Pironi termina 10º em Monza assim como Purley em Truxton e, nas duas últimas provas do campeonato, Pironi é 5º no Canada e 3º nos EUA. Por sua vez, Purley conseguia um excelênte 4º en Snetterton e seria 9º em Silvertone. O bom rendimento de Pironi lhe serve para entrar na Ligier em 1980, mas Purley deve abandonar o automobilismo vitima das graves sequelas de seu acidente, e que tornavam muito dolorosa a pilotagem de um carro de competição, para se ocupar dos negócios da empresa familiar.

Porém, Purley logo sente a falta de emoções em sua vida e pouco depois compra uma avioneta biplano “Pitts Special” para acrobacias aéreas e se dedica à sua paixão de juventude: a aviação. Purley havia sido o piloto mais jovem do Reino Unido, ao conseguir sua licença de voo com apenas 16 anos de idade, e participou na guerra do Yemen como paraquedista das tropas de elite do exercito britânico.

Com aquela avioneta, Purley passa a ser participante habitual de torneios e exibições acrobáticas, e não era raro vê-lo deleitar a gente de sua cidadezinha natal – Bognor-Regis – com suas piruetas junto ao mar. Quando perguntado por sua decisão de abandonar seu tranqüilo e seguro retiro, Purley respondeu: “Quando você conhece a emoçao do perigo, é impossível viver sem ela!”.

Entre pirueta e pirueta de Purley, Pironi segue sua progressão na formula um com a Ligier, conseguindo sua primeira vitória, dois pódios e duas voltas rápidas e terminando o campeonato em 5º posição, justo atrás de seu companheiro Jacques Lafitte. O excelente rendimento de Didier não passa despercebido para o velho comendattore Ferrari e Pironi é convidado a ocupar o lugar que deixava Scheckter, convite que o francês logo aceita.

No entanto, 1981 seria uma má temporada para a Ferrari devido à pouca fiabilidade de seu modelo 126 CK turbo. Villeneuve abandonaria em 8 ocasiões e Pironi em 7. Em 1982, as coisas começam igual na Ferrari mas o trabalho de Harvey Postlethwaite logo dá seus frutos e o novo 126 C2 começa a mostrar o seu potencial no GP de San Marino com uma dobradinha. No Gp da Bélgica, a equipe nao participa devido à morte de Villeneuve nos treinamentos mas, nas seguintes 6 corridas, uma vitória e 4 pódios deixam Pironi na liderança do campeonato com uma sólida vantagem de 9 pontos sobre John Watson, e a clara impressão de que já era o máximo candidato ao título.

O próximo GP seria o da Alemanha, em Hockenhein. Pironi, com a pole já no bolso, continua em pista testando novos compostos da GoodYear para chuva. Nessas condiçoes, os carros asa da época resultavam muito perigosos além de que o efeito asa pulverizava a àgua que passava por baixo deles formando uma fina neblina. Talvez essa neblina foi o que lhe impediu a Pironi, quando ultrapassava Derek Daly, ver que Alain Prost estava um pouco à frente do Britânico.

Assim, Pironi bate em Prost e, segundo diria Alain depois, sai voando e dá duas voltas no ar para, finalmente, se arrebentar violentamente de ponta no chão. O problema daqueles carros, é que a posição do piloto estava muito à frente, e Pironi sofre gravíssimas fraturas em seus pés e pernas.

Nelson Piquet, foi um dos primeiros pilotos que parou lá perto para ajudar mas, ao ver as terríveis feridas de Pironi, não suportou a cena e teve de abandonar o lugar. Pouco antes, durante testes em Paul Ricard, Pironi já havia sofrido um espetacular acidente do qual, milagrosamente, havia saído ileso mas, desta vez, seu destino foi o hospital. Como Purley, Pironi passa longo tempo internado e, também como Purley, deve se submeter a diversas operações e a um longo processo de recuperação.

Durante o afastamento de Pironi, Purley continuava com suas acrobacias e divertindo a gente de Bognor-Regis até, que no dia 2 de julho de 1985, numa dessas exibições, o motor de seu “Pitts Special” sofre uma pane e Purley não consegue recuperar o controle do avião, que vai direto para um mergulho no mar.

Possivelmente, o forte impacto contra a água deixou Purley inconsciente pois, quando foi resgatado do fundo do mar, não apresentava feridas mas tampouco havia signos de que tivesse tentado escapar. David contava apenas com 40 anos de idade. Nessa época, Pironi se dedicava à empresa que havia fundado junto a seu meio irmão José Dolhen (também ex-piloto de formula 1 e de outras categorias) importando e distribuindo em exclusiva na França as lanchas italianas de luxo da marca Abbate e os motores náuticos da Lamborghini.

Porém, como aconteceu com Purley e com Antoine, o escritório não era lugar para Pironi, quem logo vai em busca novas emoções. A paixão de Pironi pelos aviões e a náutica vinha de longe pois, também como foi o caso de Purley, Pironi tinha licença de piloto desde os 16 anos, sendo o mais jovem piloto francês em consegui-la.

No entanto, seu envolvimento no negócio das lanchas lhe leva de volta à náutica e, em 1986, participa no campeonato europeu de off-shore. Em 1987, decide participar no campeonato do mundo da especialidade (popularmente conhecida como a “Fórmula 1 do mar”) e, para tal fim, encomenda uma nave que batiza com o nome “Colibri”. Quando advertido do perigo daquelas corridas, Didier diría: “Prefiro morrer fazendo o que gosto que viver aborrecido até os cem anos!“.

“Colibri” foi desenhada por seu amigo Jean Claude Guenard, um ex-engenheiro da Ligier, e estava completamente construída com fibra de carbono e kevlar, sendo a mais ligeira da categoria e, logicamente, era propulsada por dois poderosos motores V12 Lamborghini. Com sua vitória em Arendal, na Noruega, Pironi, Guenard e seu navegador Bernard Giroux (quem havia vencido o rally Paris-Dakar desse ano junto a Ari Vatannen e, em 1981, com Renée Metge), logo passam a ser os favoritos ao título.

O próprio Enzo Ferrari lhe envia um telegrama para parabenizá-lo pela vitória, o que deixa Didier muito contente. A prova seguinte seria o Neddles Trophy, a ser disputado no dia 23 de agosto nas águas da pequena ilha de Wight, ao sul da Inglaterra.

httpv://youtu.be/PMROrf1Ivog

Desde o principio, Pironi se manteve no grupo da frente e, pouca antes do fim da prova, já estava no encalço do italiano Renato Della Valle, quem liderava. Na última volta, Pironi se dispunha a ultrapassar o italiano e, quando já estavam emparelhados, os dois se aproximan a umas marolas produzidas por um petroleiro que passava por perto. O barco italiano, com alguns solavancos, supera as marolas mas o ligeiro colibri se desequilibra e decola dando uma volta no ar para cair com o convés para baixo.

A cerca de 170 km/h, golpear a àgua foi como golpear um muro de pedra e o impacto resultaria brutal. Ainda assim, o robusto casco resistiu quase sem sofrer danos mas, o problema é que as cabeças dos tripulantes sobressaiam do convés, e a violência do impacto àquela velocidade lhes ceifou a vida instantaneamente. Curiosamente, a pequena ilha de Wight está a apenas 25 km de Bognor-Regis.

Nossos três protagonistas sofreram graves acidentes dos que se salvariam milagrosamente, pois o destino havia sido benevolente com eles ao conceder-lhes outra oportunidade. Contudo, todos acabaram sucumbindo à irresistível chamada da aventura e da emoção do risco e o perigo.

Daquela atração fatal que lhes levou a seguir desafiando esse destino em busca do supremo desfrute ao que se referia Antoine, sem saber que já não haveria mais oportunidades. Como disse o Principezinho de Saint-Exupéry em certa passagem do livro: “Eu sou quem sou e quem devo ser!“.

Assim eram Antoine, David e Didier e, possivelmente, não podiam ser de outra maneira!

Sejam bons e até a próxima.

Manuel Blanco
Manuel Blanco
Desenhista/Projetista, acompanha a formula 1 desde os tempos de Fittipaldi É um saudoso da categoria em seus anos 70 e 80. Atualmente mora em Valência (ESP)

4 Comments

  1. Allan Guimaraes disse:

    Texto bem conduzido. Impossível para e não pensar nos fatos ocorridos e nos personagens envolvidos. Parabéns!

  2. Rubergil Jr disse:

    Bela história! Ótimo texto como sempre, caro Manuel.

    Abraços,

    Rubergil Jr.

  3. Mauro Santana disse:

    Belíssima história Manuel!!!

    Realmente quis o destino que estes três não tivessem uma segunda sorte, mas, eles fizeram o que gostavam até o fim de seus dias.

    Interessante como os pilotos franceses, exceto Arnoux x Prost, se dava bem, pois esta foto do Pironi com o Streiff no Colibri, me lembra também quando li a respeito da morte do Pironi, que depois do acidente fatal, o J. P. Jabouille chegou a pilotar o Colibri, mas, por um curto período.

    Grande texto!

    Abraço, e um excelente final de semana.

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  4. Fernando Marques disse:

    Grande Manuel,

    que bela historia!!!
    Que belo texto!!!

    As cenas de David Purley tentando salvar a vida de Roger Williamson são as mais tocantes e possivelmente a mais triste da historia da Formula 1. São cenas fortes. Doe o coração ver o desespero do Purley com toda aquela situação. Numa Formula 1 onde havia ceticismo em relação a morte, aquela atitude mostrava que alem da coragem, o lado humano também existia.
    Didier Pironi chegou na Formula 1 mostrando talento e era a maior esperança francesa de poder ter um campeão na Formula 1, esperanças estas que eram bem reduzidas desde a morte de F. Cevert. O titulo em 1982 era mais que certo, se não fosse o acidente na Alemanha que aliás que embolou a disputa do campeonato no fim vencido pelo K. Rosberg. Depois do acidente não havia mais um favorito ao titulo. Rosberg ganhou mas muitos outros poderiam ter sido os vencedores.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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