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Niki Lauda, Gerhard Berger e Helmut Marko em 2015

Leia a Parte 1

Leia a Parte 2

Retomamos nossa história no fim de 1984. Assunto do GP da Itália de 1984, Jo Gartner e Gerhard Berger entravam numa batalha direta por uma vaga na Arrows em 1985, com as bênçãos da BMW, fornecedora de motores da equipe. Apesar de contemporâneos, eles nunca haviam competido entre si e suas trajetórias até chegarem a esse confronto haviam sido bem distintas.

Então acontece este que é um dos capítulos mais horripilantes da biografia de Gerhard Berger: seu pavoroso acidente rodoviário, uma semana depois do encerramento da temporada, na qual o grande Niki Lauda sagrou-se campeão pela terceira e última vez.

Berger estava na Áustria e dirigia de casa para seu escritório, num trajeto tão curto que nem se deu ao trabalho de colocar cinto de segurança. No entanto, em uma curva, foi empurrado por trás por outro motorista e sua BMW rolou ladeira abaixo, numa grande sucessão de capotagens hollywoodianas. Ele foi literalmente ejetado do carro pelo vidro traseiro (!) e arremessado ao chão com duas fraturas vertebrais de pescoço, entre outras lesões.

Berger teve uma carreira meteórica até fazer sua estreia na ATS em 1984

Diante do maior infortúnio de toda a sua vida, Berger voltou a ter a sorte lhe sorrindo – sucessivamente.

Os primeiros a chegarem ao local do acidente foram dois médicos que voltavam de uma conferência em Munique. Eles constataram de imediato as fraturas, fizeram a devida imobilização do pescoço do piloto e evitaram que paramédicos o removessem via ambulância, o que poderia provocar lesão na medula espinhal pelos solavancos na rodovia. Em vez disso, chamaram um helicóptero especializado para o translado hospitalar.

A sorte de Berger continuou, pois a lesão que poderia deixá-lo tetraplégico foi evitada. A ele foram dadas duas opções: passar seis meses com o pescoço imobilizado – o que encerraria suas chances para 1985 e de talvez continuar na F1 – ou ser submetido a uma arriscada cirurgia de reparo nas vértebras, envolvendo parafusos, que encurtaria em muito o tempo de recuperação – e que se desse errado sepultaria de vez sua carreira. Ele optou pela cirurgia, num procedimento que acabou, ufa, sendo um sucesso.

E para selar a maré de coisas boas, Arrows e BMW acabaram confirmando Berger para 1985, convencidas pelo empresário do piloto de que ele estaria em plenas condições físicas já para os testes de pré-temporada. Seu empresário era… Helmut Marko, cuja intervenção acabou sendo decisiva.

…e a vaga da Arrows em 1985 vai para….

Berger faria um 1985 de muito aprendizado, subindo para uma equipe ainda melhor ligada à BMW no ano seguinte, a recém-batizada Benetton. Seus dias como top driver haviam chegado – e de maneira bem rápida, em forma de uma aclamada vitória no GP do México de 1986.

A sorte continuou acompanhando o Berger até mesmo em seu pior acidente na F1 quando, em 1989, ele se chocou violentamente com a famigerada Tamburello de Imola. Sua bela Ferrari 28 virou uma bola de fogo e não foram poucos os que viam aquilo como uma repetição do que havia acontecido com Lauda 13 anos antes: um austríaco ardendo em chamas dentro de uma Ferrari acidentada. Só que os tempos eram outros, o fogo foi debelado em rápidos 16 segundos, sem as severas sequelas que acompanhariam Lauda pelo resto da vida.

Aquele acidente, porém, mudou o modo de pensar de Berger, segundo ele mesmo. Até então adepto inveterado do pourraloquismo, nunca em sua vida havia considerado os riscos inerentes ao esporte. Não havia passado em sua cabeça que sistemas falham ou quebram, pneus furam etc. Aquela paulada na Tamburello adicionou algo para se pensar. Talvez ali, naquela curva, tenha desaparecido sua velocidade visceral.

Berger em 1989, ano em que teve seu sério acidente em Imola pela Ferrari

Ainda assim, o enorme talento natural de Berger reservou várias temporadas seguidas em times de ponta e, afinal, uma carreira bem-sucedida com 10 vitórias no currículo, até a aposentadoria em 1997, pela mesma Benetton de sua primeira vitória. Ele mesmo admite que seu jeitão não o levaria a ser campeão se comparado à abordagem ultraprofissional de um Ayrton Senna, piloto com preparo mental superior, muito mais atento a todos os detalhes e que acabou fazendo com que Berger caísse na real quanto suas chances.

Berger ainda voltaria à F1 como consultor da BMW, primeiramente na Williams e depois na Sauber, para logo depois virar dono de equipe ao comprar um pedaço da Toro Rosso. Experimentaria o sabor especial de ver seu time vencendo, quando o prodígio Sebastian Vettel, outro apadrinhado do Dr. Marko, triunfou no chuvoso GP da Itália de 2008. Após vender sua parte da Toro, virou dirigente da DTM, onde atua até hoje.

Berger teve uma carreira com 10 vitórias, encerrada em 1997 pela Benetton

Segundo a esposa de Gartner, Doris Slezak, em depoimento para o Motorsport Magazine, ele ouviu as notícias de que tinha perdido a vaga na Arrows para 1985 pelo rádio e ficou bastante abalado. Teria sumido por quase um dia todo e há quem afirme que Jo teria ido afogar as mágoas em algum bar próximo, certamente acompanhado de algum líquido etílico. Se a F1 lhe fechava as portas, havia outras para serem abertas. O mundo da Endurance estava cheio de times para correr com o fantástico Porsche 956/962.

Ele tratou de mostrar suas credenciais, primeiramente pela equipe de John Fitzpatrick, com quem fez bom 4º lugar nas 24 horas de Le Mans de 1985. O ano seguinte começou bem: com um 962 pintado nas cores da Coca-Cola, venceu as 12 horas de Sebring com o novo patrão Bob Akin e o experiente Hans Stuck. Além de corridas pela Bob Akin, Gartner também foi recrutado pela Kremer Racing, com quem emplacou um terceiro lugar nos 1000 Km de Silverstone.

Gartner e o Porsche 962 Coca-Cola com o qual venceu Sebring 1986

Seus desempenhos já estavam chamando atenção da Porsche, que além de todos os seus clientes, tinha a equipe Rothmans de fábrica. Uma vaga para 1987 no time principal começava a se tornar realidade quando Gartner chegou para disputar a edição 1986 de Le Mans.

Com o Porsche negro da Kremer, não passou da 15ª posição do grid, ainda descontente com os acertos do carro. Mas durante a corrida começou a fazer progresso, chegando ao sétimo lugar antes de ter alguns atrasos mecânicos.

Pouco depois das três horas da madrugada local, seu Porsche não passou pela linha de chegada. No retão Mulsanne, já em trecho de velocidade máxima, algo deve ter falhado – talvez pneu ou suspensão. O fato é que o carro se desgovernou, voou por cima dos rails, indo de encontro a um poste telegráfico, no pior e mais brutal cenário possível. O impacto desintegrou o carro e matou Gartner instantaneamente, enquanto bombeiros tinham algum trabalho para debelar as chamas da sucata irreconhecível que havia restado. Ele tinha 32 anos de idade.

Le Mans 1986, Kremer Porsche 962: o último carro de Gartner

Não seria Gartner a voltar a vencer Le Mans para a Áustria, como havia acontecido em 1971. Um patrício só voltaria a triunfar em La Sarthe em 1996, com um Porsche WSC de carroceria aberta. Seu nome é Alexander Wurz, que se tornava, aos 22, o mais jovem vencedor da prova, recorde ainda vigente. Seu empresário era… Helmut Marko.

Depois de Berger, também não houve mais vitórias da Áustria na F1. O principal candidato a esse feito provavelmente seria Karl Wendlinger, outro piloto de Marko.  Ele, que era considerado “melhor que Michael Schumacher” no início de carreira, nunca mais foi o mesmo depois de seu acidente nos treinos do GP de Mônaco de 1994 pela Sauber. Seu infortúnio ocorreu apenas duas semanas do fatídico GP de San Marino, que ceifou a vida de Ayrton Senna e de outro austríaco, Roland Ratzenberger, piloto de endurance que perseguia o sonho de estar na F1.

A carreira de Gartner não passou batida, ao menos para mim. Sempre gostei muito do carro que ele usou para chegar na heróica 5ª posição em Monza 84. Um carro bruto, mas de linhas e layout atraentes, do período que mais gosto na F1, a Era Turbo. Tanta admiração resultou na produção artesanal de uma miniatura única no mundo, uma Osella-Alfa Romeo FA1F em escala 1/20, na configuração do GP da Itália, feita pelo talentosíssimo João Hipólito Xavier.

Conheci (virtualmente) o João no fim de 2014. Soube que ele era o artista por trás de um carrinho customizado que eu queria comprar. A compra acabou não sendo concretizada, mas minha admiração por ele acabou se tornando uma amizade.

Única no mundo: miniatura 1/20 da Osella de Gartner do GP de Monza de 1984

Acabamos formando uma dupla inusitada. Eu o ajudo, sempre que possível, em pesquisas de carros, pilotos, capacetes e todo tipo de detalhe que pode ser produzido ou customizado, como macacões, logotipos, umbrellas, monitores de cronometragem, câmeras onboard, asas diferenciadas ou o que mais for necessário. O papel do João? Fazer acontecer. E faz. Não há como não admirar seu trabalho, cada vez mais rico em detalhes e técnicas.

E há um bocado de técnica na minha miniatura, que foi baseada em uma McLaren de brinquedo. Ele refez todo o shape do carro, adicionou telas nos radiadores de óleo laterais e refez todas as asas, além de encomendar pneus e rodas produzidas em impressora 3D.

Produzida pelo talentoso João Hipólito Xavier, a miniatura tem detalhes incríveis

Os decalques foram produzidos com impressão especial em jato de cera – tem decalque nas rodas e até no radiador. Roll-bar e espelhos, delicadíssimos, foram produzidos à mão, assim como o pára-brisa, que não é colado, mas fixado com pinos de aço. Há também outros refinamentos de cair o queixo, como viseira móvel parafusada diretamente no capacete, cintos de segurança em tecido e até as cordas de suporte das asas traseiras. A cereja do bolo? Uma umbrella idêntica à usada na época pela Osella.

Desnecessário dizer o quanto eu tenho xodó por esse carro. O mais legal foi poder mostrá-lo em grupos do Facebook e que as fotos tenham chegado até um dos mais próximos amigos de Gartner, Stuart Dent, uma testemunha de todo o esforço do piloto em seguir com sua carreira. “Lovely model”, disse ele. Como discordar?

Marko foi o homem a enxergar o talento precoce de Max Verstappen

Ao escrever tanto sobre os Austríacos, percebi que há gente sempre competente e com grandes dramas para serem superados. Só que uns têm sorte, outros não. Por algum motivo, todos estão ligados a Helmut Marko, que teve o azar da pedra, mas a sorte de ter sobrevivido para ser, goste-se dele ou não, um artífice importante no esporte a motor como dono de times de base, empresário e dirigente.

Como consultor principal da Red Bull e diretor do programa de jovens talentos, não custa lembrar: Helmut Marko, dentre tantos austríacos, é o único que segue na F1.

Ele só tem um olho. Mas parece ver mais que todos os outros.

Abração!

Lucas Giavoni

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

2 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Fantástico Lucas, você descreveu com maestria a história desta turma austríaca da pesada.

    Tive o privilégio de ver ao vivo a construção da sua Osella e também quando ela já estava pronta antes do JHX lhe enviar a mini, e realmente, a mini é linda demais, única no mundo, e você e ele fazem uma dupla incrível para o mundo do colecionismo.

    Parabéns meu amigo, mais uma vez, você fez história aqui no Gepeto!

    Grande abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

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