Cadeia de eventos

Clima de amistoso
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Vencer não é tudo
22/11/2019

Tivemos nesta edição 2019 do GP Brasil um final movimentadíssimo, a ponto da corrida ter sido relativamente “morna” até o estouro do motor da Mercedes de Valtteri Bottas, a 20 voltas da bandeirada. E foi justamente a partir deste evento que vários outros, que deram a tônica do final da corrida, aconteceram.

O Safety Car entrou, houve movimentações importantes nos pits, incluindo a troca de pneus preponderante para a vitória de Verstappen. O período afetou carros que haviam tomado volta e todos foram autorizados pela direção de prova a descontar a volta, incluindo Pierre Gasly e Carlos Sainz Jr., que acabariam no pódio.

Também houve o fratricídio da Ferrari e a manobra desastrada (com o devido pedido de desculpas) de Lewis Hamilton em Alexander Albon, que com isso perdeu a chance do primeiro pódio.

Na bandeirada, a última emoção com Albon a cruzar na frente de Hamilton por meio carro.

Sim, não há discussão sobre o final ter sido emocionante e cheio de variáveis. Mas quero chamar a atenção para o começo dessa cadeia de eventos – o abandono de Bottas. Não havia necessidade alguma para a entrada de Safety Car. Um SC virtual já daria conta do recado, uma vez que a Mercedes estourada foi removida facilmente entre uma das aberturas de segurança do guard rail.

Temo que a Liberty tenha adorado os efeitos dessa entrada do SC e que isso passe a ser regra. Sim, adoramos os acontecimentos, mas não podemos baixar a guarda para mais artificialismos.

Atenção aos amigos leitores. Estou prestes a concordar com as palavras de… Galvão Bueno. Sim, isso é possível. Pois o narrador foi extremamente lúcido em criticar pesadamente da direção de prova, que deixou para resolver o incidente entre Hamilton e Albon para depois do pódio.

Ele está coberto de razão. Isso acabou privando Sainz de curtir seu primeiro pódio na categoria. Ao menos conseguiu comemorar a seu modo….

Mas a corrida não foi feita apenas das 20 últimas voltas. A Mercedes tentou um undercut na primeira rodada de pits, fazendo Hamilton parar mais cedo, mesmo com pneus nitidamente mais conservados em relação a Max. A tática deu certo, Lewis saiu na frente. Só esqueceram de combinar isso com Verstappen.

A manobra de ultrapassagem em Hamilton foi assustadora por dois motivos: pelo nível de determinação de Max, e de como a manobra soou absolutamente natural. Enxergo que Hamilton mais uma vez sentiu seu território ameaçado pelo holandês, tal como aconteceu na Hungria, em que eles tiveram desempenhos tão espetaculares que o terceiro colocado, Sebastian Vettel, chegou um minuto inteiro atrás.

Chama atenção como, independentemente de cadeias de eventos, dificilmente a vitória sairia das mãos de Verstappen. Parece que estamos diante daqueles casamentos perfeitos entre piloto e circuito, tal como Spa antiga e Jim Clark, Jacarepaguá e Alain Prost, Monte Carlo e Ayrton Senna.

Está cada vez mais difícil defender Vettel. Ele tinha todo o direito de tentar revidar a ultrapassagem que havia acabado de tomar de Charles Leclerc. Mas no contato que tiveram em plena Reta Oposta ficou claro que o movimento do alemão foi preponderante.

Por que este segundo semestre está com corridas tão interessantes?

Porque o primeiro semestre teve domínio absoluto da Mercedes, a bater recordes de eficiência. Mercedes, Ferrari e Red Bull passaram a oscilar performance de acordo com cada circuito. Para deixar as coisas ainda mais divertidas, os times estão apresentando desempenhos distintos entre qualificação e corrida – o que é pra lá de desejável.

Fica bastante claro que a Mercedes está toda concentrada no carro do próximo ano, pois ninguém perderia o domínio estabelecido no começo do ano sem motivo plausível. A ausência de Toto Wolff no Brasil é uma pista de que há um cuidado especial no nascimento do próximo carro.

O atual momento da F1 lembra vagamente a temporada de 2004, em que a Ferrari dominou de maneira absoluta em seu início e depois foi paulatinamente alcançada pelos rivais – McLaren, BAR, Renault e Williams. Aquele foi um fim de ciclo de domínio da Ferrari, até então o maior da história da F1 e superado apenas pela atual hegemonia da Mercedes, que já vem desde 2014.

Existe, porém, uma diferença fundamental entre os períodos. De 2004 para 2005 tivemos uma atualização importante no regulamento quanto a aerodinâmica e o banimento da troca de pneus durante as corridas, eliminando a vantagem que a Ferrari tinha em sua estreita relação com a Bridgestone.

Já para 2020 não teremos mudanças relevantes para o regulamento. Isso, ao menos para mim, descarta as possibilidades de fim de hegemonia da Mercedes para o ano que vem. Eles tendem a começar fortes – o que seria uma repetição da atual temporada.

Precisamos falar sobre Lewis Hamilton.

Agora hexacampeão, mais uma vez surge a discussão de qual seria seu lugar na história, diante de um cartel que se aproxima cada vez mais dos principais recordes numéricos estabelecidos por Michael Schumacher: número de títulos (7) e de vitórias (91) – lembrando que o recorde global de poles (87) já é de Lewis, detentor de seis títulos e 83 vitórias.

Mais uma vez bato na tecla de que é preciso deixar o piloto pendurar o capacete para, livre do calor do momento, estabelecer a grandeza e a importância daquela pessoa para a história da categoria. Já existe inclusive a discussão se Hamilton já é ou não maior que Schumacher. Apesar de ser um excelente tema de discussão, com muita lenha pra queimar, penso que ainda não é possível fazer uma análise mais aprofundada a respeito.

Ainda falta estamos para assistir Hamilton descer a montanha. Ainda não sabemos como isso se dará. O que é possível perceber é que ele está extremamente incomodado com a velocidade e com a popularidade de Max Verstappen, piloto que realmente chegou para abalar as estruturas da categoria. Todo mundo sabe que estamos diante de um futuro campeão. Leclerc parece fazer da mesma estirpe.

O que posso dizer é que tanto Schumacher quanto Hamilton são duas aberrações estatísticas – e não, isso não é uma crítica, apenas uma constatação. Eles foram os maiores beneficiários dos maiores períodos de hegemonia já vividos na F1 – o da Ferrari na virada do século e da Mercedes atual, que é maior ainda. E me fazem chegar à constatação de que uma análise de importância e grandeza dos pilotos definitivamente não pode ser ancorada em números. São fatores relevantes numa análise, mas não são preponderantes.

Fangio ainda é maior que todo mundo. E não é pelos números, é por sua aura.

O fim de semana, ao menos para mim, também foi para assistir o tão aguardado Ford v Ferrari. O filme basicamente retrata como a Ford, até então a indústria de carros mais careta da face da Terra, virou o jogo e construiu um dos mais icônicos carros de todos os tempos, o GT40 – com o objetivo claro e direto de derrotar a Ferrari em Le Mans.

O filme é ótimo. E digo com toda a consciência de que sou um chato detalhista. O título do filme até engana um pouco, pois toda a sequência é ancorada nas figuras de Carroll Shelby, interpretado por Matt Damon, e Ken Miles, interpretado por um ótimo Christian Bale, que emagreceu 25 quilos para ficar no mesmo shape do temperamental piloto britânico.

Há muita química entre os personagens, cenas divertidas, com cenas de emoção na medida certa. As cenas de ação nas pistas são muito, muito bem feitas. Não passou nenhuma pra dizer “uh, essa cena ficou ruim”.

Ford v Ferrari se junta a Grand Prix, Le Mans e Rush como os grandes filmes do esporte a motor. E o que essas quatro obras têm em comum? Nas quatro, a Ferrari é derrotada. (Se alguém considerar isso um spoiler leva peteleco na orelha, tá?)

Mas o que essa “coincidência” entre os quatro significa? Alguns mais apressados dirão que é uma mostra que a Ferrari não é tão vencedora quanto faz parecer. Nada disso. Os filmes mostram com clareza que a maior honra do esporte a motor é justamente derrotar a Ferrari, porque ela é a maior de todas.

Também compartilho desse sentimento: não existe maior honra do que superar a Ferrari. Carrego comigo esse sentimento aparentemente contraditório, pois quero ver a Ferrari bem, mas aplaudo quem consegue vencê-la.

Abração!

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

4 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Grande Lucas!

    Faço minhas as suas palavras sobre tudo que muito bem descreveu neste belíssimo texto.

    E este Filme já é um clássico, assisti segunda feira no cinema, e provavelmente irei mais uma vez.

    hehehe

    Grande abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  2. Fernando Marques disse:

    Em vez de 2016
    leia 2019

    Me desculpem

    Fernando Marques

  3. Fernando Marques disse:

    Lucas,

    o GP do Brasil deste ano, mesmo tendo um “clima amistoso” e tendo esta “cadeia de eventos tão bem retratada por voce, foi a melhor corrida do ano com toda certeza. Quem disse isso foi o Luciano Burti e temos que concordar. A corrida foi tão boa que até o Galvão Bueno não falou besteira …


    O M. Verstappen pode até ser o queridinho da Formula 1 atualmente, mas ninguém guiou tão bem em 2016 como L. Hamilton. Sim ele tem uma Mercedes na mão, mas isso não tira este mérito dele.


    Ferrari é sempre Ferrari. Seja na vitória seja na derrota. E louvemos a Ferrari pela bela reação que teve nesta segunda parte da temporada. Ela deu vida ao campeonato.


    Números são números mas nem sempre traduzem a verdade. Afinal quem foi o melhor piloto que a Formula 1 já viu? Mas em termos de pilotagem eu não tenho dúvidas que L. Hamilton é melhor que o Schumacher nos seus bons tempos.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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