Charlatanismo

Texas Ranger
14/11/2013
Biscoito Fino
20/11/2013

Que tal um olhar sobre o passado para melhor compreender o presente?

Se tivesse que escrever essa análise antes de ver o GP dos Estados Unidos, ou antes mesmo de terem se iniciado as atividades no Texas, então teria arriscado dizer que Sebastian Vettel fez mais uma pole position, seguido pelo companheiro Mark Webber e pela Lotus de Grosjean e a Mercedes de Lewis Hamilton. Mais tarde, na largada, o tetracampeão mundial conseguiu sustentar a liderança, abrindo uma margem segura nas primeiras voltas. Webber mais uma vez largou mal, perdendo duas posições, e recuperando uma ao longo da prova. No fim, Vettel venceu mais uma prova, Grosjean novamente foi ao pódio, Hamilton mais uma vez ficou limitado pelo consumo de pneus da Mercedes, Alonso arrastou a Ferrari a um lugar no top cinco, e Nico Hülkenberg foi novamente um fator de separação na corrida, posicionando-se entre os primeiros no início da competição e depois demonstrando mais uma vez formar com a Sauber um conjunto difícil de ser ultrapassado.

Como vemos, fazer previsões a respeito deste fim de temporada na F1 não requer nenhuma habilidade premonitória nem tampouco qualquer conhecimento esotérico. Se alguém quiser provar que consegue ler o futuro afirmando que Vettel vai vencer a próxima corrida, não se deixe enganar. Provavelmente é charlatanismo.

E é nesse ponto que estatísticas e senso comum costumam se separar em correntes mais ou menos fanáticas, que raramente evoluem de forma dialética, mas quase sempre afastam as discussões do campo da tolerância e da ponderação. A partir do momento em que um piloto começa a vencer todas as provas, ele coloca diante de cada espectador a questão sobre como lidar com isso. Afinal, ele merece o sucesso? Ele é um sortudo que apenas cumpre a obrigação de vencer tendo o melhor carro? É favorecido pela equipe? É uma fraude criada pelos meios de comunicação? Cada um vai responder a seu próprio modo, claro. E minha opinião – tantas vezes manifestada, de que Vettel é sim um piloto brilhante – não é melhor do que a de ninguém. Não discutamos, portanto, algo tão subjetivo.

Fato, nisso tudo, é que a repetição de vitórias dentro de uma mesma fórmula (por mais competente que esta seja) acaba muitas vezes por banalizar o próprio valor de cada conquista individual, ao esbarrar nessa estranha tendência humana de compensação. Se tem algo que anos de experiência escrevendo sobre esportistas me ensinou é que, na imensa maioria das vezes, pessoas irão buscar qualidades em pessoas menos qualificadas, e defeitos em pessoas acima da média. Diga a alguém que determinado filme é horrível, e ela quase sempre irá buscar pontos positivos para te apresentar; diga que ele é ótimo, e quase certamente ouvirá ressalvas duas horas depois.

Por tudo isso, Vettel é quem mais tem a ganhar com a mudança nas regras para o ano que vem. Nesta fase de sua carreira, a motivação que lhe resta está em colecionar números, ampliar recordes, deixar seu nome na história. Coisa que tem feito com irretocável competência. No futuro, claro, ele terá a chance de provar seu valor e seu tamanho histórico em meio a contextos menos favoráveis, indo além de vitórias brilhantes e isoladas como Monza 2008.

Essa previsão também é puro charlatanismo.

Oito vitórias seguidas, a partir do momento em que os pneus foram reforçados e passaram a suportar o estresse imposto pela eficiência aerodinâmica da Red Bull. Uma sequência com apenas um precedente na história, dentro de um contexto completamente diferente. E como a descrição do GP norte americano já foi feita em sua essência nas sete provas anteriores, e o GPtotal é um local de análise e preservação histórica, cabe relembrar rapidamente um pouco deste que é o recorde mais antigo da F1.

Disputados em carros de F2, os campeonatos de 1952 e 53 foram inteiramente dominados por Alberto Ascari e pela Ferrari. Importante destacar que Fangio esteve fora no primeiro desses anos, recuperando-se do terrível acidente sofrido em Monza antes do início da temporada, mas isso não chega a mudar o fato de que o piloto e o carro italianos formavam, naquele momento, o conjunto mais forte do automobilismo mundial.

Outro ponto a se destacar é a grande diferença na confiabilidade mecânica existente entre os dias atuais e a década de 50. Afinal, se hoje apenas o carro de Mark Webber teima em ficar pelo caminho, sessenta anos atrás isso era tão comum que o regulamento previa a pontuação em sistema de melhores resultados, e os pilotos ainda podiam trocar de carro durante as provas, dividindo a pontuação com os companheiros de equipe. Um recurso que, vale dizer, não foi utilizado por Ascari para esticar seu recorde de nove vitórias consecutivas entre os GPs da Bélgica de 1952 e 53.

Tudo começou num dia 22 de junho, com um hat-trick de respeito na antiga e perfeita pista de Spa-Francorchamps. Pole com 3s de vantagem sobre Farina, vitória com quase dois minutos de frente e melhor volta da corrida. E o domínio só não foi completo, porque na 1ª volta Jean Behra conseguiu a proeza de liderar com seu Gordini, antes de cair para 3º e se acidentar na 14ª volta.

De Spa para Rouen, onde nova pole (1,4s de vantagem) abriu o início para um Grand Slam. Vitória de ponta a ponta (com mais de uma volta de vantagem), e melhor volta da corrida.  Dia 19 de julho foi a vez do circo desembarcar em Silverstone, onde a pole ficou com Farina, marcando um tempo que Ascari iria igualar em seguida. E na corrida nenhuma novidade: Ascari liderou todas as 85 voltas e assinalou a melhor delas no processo.

A próxima parada seria no Inferno Verde de Nürburgring, onde Ascari obteve nova pole, 2,9s mais rápido que a Ferrari de Farina. Era o início de mais um Grand Slam, liderando todas as 18 voltas, por mais que desta vez a vantagem final, na casa dos 14 segundos, não tenha sido assim tão grande. O campeonato seguiu com a etapa holandesa em Zandvoort, onde – novidade! – Ascari obteve outro Grand Salm. Pole com 2,1s de vantagem sobre Farina, liderança segura em todas as 90 voltas, vitória com 40s de vantagem e ainda o melhor giro da corrida.

Cinco vitórias seguidas, e agora era a vez de Monza vibrar com o orgulho Rosso. Nos treinos, nova pole de Ascari, desta vez 1s à frente de Villoresi. Na corrida, a tradicional guerra de vácuo e o talento de Froilán González renderam 36 voltas na liderança ao Cabezón, antes que Ascari escapasse mais uma vez, para vencer com 1 minuto de vantagem. Era o fim daquela temporada, mas não do domínio importo por Ascari e seu cavalinho.

No dia 18 de janeiro, no calor da Argentina, Alberto aplicou um ducha fria a todos que imaginavam um ano com cores diferentes. Novo Grand Slam, agora diante de Fangio e sua Maserati (o argentino, de volta às pistas, conseguiu superar todas as Ferraris menos uma – a de Ascari – nos treinos para seu GP caseiro).

Já eram sete vitórias seguidas a essa altura, e então veio Indianápolis. A prova havia sido disputada por Ascari e sua Ferrari no ano anterior (quando abandonaram com uma roda quebrada, por não suportar as forças impostas pela inclinação das curvas!), mas a excursão não seria repetida em 1953. E, como ninguém do Velho Continente atravessou o oceano, aceita-se de forma universal que a continuidade dos triunfos não foi, de fato, interrompida. Ainda assim, Indy 1953 tem sido, durante todos esses anos, o único asterisco a respeito dessa história.

O próximo GP aconteceria apenas no dia 7 de junho, novamente em Zandvoort. E de novo Ascari assegurou a pole, desta vez com um tempo 1,6s mais rápido que a Maserati de Fangio. A vitória mais uma vez veio de ponta a ponta, mas para quebrar a rotina a melhor volta ficou com Luigi Villoresi.

O último capítulo dessa história foi na mesma Spa, onde tudo começou. O dia era 21 de junho, exatamente um ano antes da hegemonia ter começado. Nos treinos Fangio fez uma das grandes voltas da história, assegurando a pole com 2s de vantagem sobre Ascari, ao volante de um carro sensivelmente inferior. Na corrida as Maseratis pularam na frente com González e Fangio, mas o primeiro teria problemas no acelerador e o segundo no motor. A vitória mais uma vez ficaria com Ascari, embora nessa altura já com a ajuda da sorte (e da confiabilidade da Ferrari).

Apenas no dia 5 de julho, mais de um ano depois do início da maior sequência de vitórias já vista no campeonato mundial, a Fórmula 1 voltaria a ter um vencedor diferente: Mike Hawthorn bateu Fangio “por uma cabeça”, na histórica batalha de vácuo de Reims.

E aí, será que as peculiaridades de Interlagos, a exemplo do que fez Reims seis décadas atrás, colocam fim à série de triunfos de Vettel?

Uma ótima semana a todos.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

8 Comments

  1. wladimir duarte sales disse:

    “no combate Alberto não era tão forte. Mas quando estava na frente seu estilo era tão puro que ninguém podia alcançá-lo.”

  2. Fernando Marques disse:

    Também vou contribuir com minha dose de charlatanismo
    Em Interlagos o Vettel vence com certeza, marcando a melhor volta da corrida numa das ultimas 3 voltas.
    A novidade será no podium. Massa chegará em 2º lugar na frente do Alonso novamente em quinto

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  3. Arlindo Silva disse:

    Não é o DRS, não é o KERS. O fator randômico das corridas são os pneus da Pirelli.

    Alguém reparou que nessa prova, onde praticamente todos fizeram uma única parada as ultrapassagens, mesmo utilizando-se o KERS e o DRS foram bastante complicadas?

  4. Mário Salustiano disse:

    Márcio

    vou contribuir com minha dose de charlatanismo, com o recorde já quebrado por Vettel, caso Weber não quebre e nem largue pessimamente, assistiremos Vettel entregar a vitória para ele aqui em interlagos, repetindo 2011 ,deixando nosso amigo canguru encerrar sua carreira com uma misera vitória esse ano.
    Agora vou torcer para Grojean, em Austin ele encarnou o espirito de Steve Macqueen e fez uma demonstração e tanto, virei fã de carteirinha do frances e desde já torço para ele ganhar um título nos próximos anos.

    abraços

    Mário

    • Verdade, Mário.
      Dizem nos corredores da MotoGP que mais vale um piloto rápido que caia, do que um piloto lento que não caia. Isso porque o rápido um dia aprende a não cair, mas o lento jamais aprende a ser rápido.
      Com Grosjean foi esse caso. Em suas passagens pela GP2 bastava buscar os setores roxos no live timing para saber em qual posição ele estava andando. Sempre foi rapidíssimo, embora muito selvagem. Agora, encontrando o caminho equilíbrio, tem tudo para se tornar um dos maiores rivais de Vettel, Alonso, Hamilton, Kimi e cia nos próximos anos.
      E sim, a homenagem ao Macqueen foi digna de louvor. Só não falei sobre ela no texto porque o assunto já havia sido abordado no facebook, e porque o texto estava ficando grande demais. Mas valeu a lembrança. Abs!

  5. Mauro Santana disse:

    Marcio

    Interlagos é mesmo diferente, mas acredito que hoje ninguém consegue acompanhar Vettel em condições normais.

    Nos resta assistir e ver qual história será contada em Interlagos 2013.

    Agora um comentário a respeito da RG:

    Os caras estão investindo pesado em propagandas para a corrida deste ano aqui no Brasil, e pelo jeito, deve ter muitos ingressos ainda à venda.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

Deixe um comentário para Arlindo Silva Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *