Cisne Negro

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Na última quinta-feira* assisti ao espetacular “Cisne Negro”, um dos indicados ao Oscar de Melhor Filme e que rendeu – muito merecidamente – o badalado prêmio de melhor atriz a Natalie Portman. Trata-se de uma obra realista, marca registrada do diretor Darren Arronofsky (“Pi”, “Réquiem por um sonho”, “Noé”). Esse realismo é ainda mais perturbador justamente por confundir-se com o fantasioso, na película retratado pelas confusões mentais da personagem principal, a bailarina Nina.

Uma jovem que tem um objetivo muito claro: tornar-se a protagonista de nada menos que “O Lago dos Cisnes”. Seu treinamento é bastante intenso: ela sofre vários cortes em diversas partes do corpo, tem as unhas arrebentadas, estiramentos, deslocamentos. Sua técnica é provavelmente a mais perfeita de todas: “se eu procurasse alguém para interpretar somente o cisne branco, sem a menor dúvida seria você [Nina]”, revela o personagem que dirige o ballet, interpretado por Vincent Cassel.

No entanto, há um problema: ela teria de interpretar o cisne branco e o negro. Para a caracterização deste último, diz o diretor, “só a técnica não é o suficiente”. Era preciso viver o personagem.

Mas qual seria o propósito de falar sobre esse filme num site de automobilismo? Nina me trouxe à mente Ayrton Senna, que na próxima segunda-feira completaria 51 anos.

Coincidência? Pesquisei no Google Imagens alguma foto da famosa marca Senna e seu slogan “Driven to Perfection”. Ao digitar as três palavras em inglês, naturalmente surgiram diversas fotos de Ayrton, de seus carros e do “S” em vermelho. Mas também apareceram vários cartazes do filme e fotos de Natalie Portman na obra: “Nina (Portman) is driven to perfection so much that she actually loses her mind”, diz um blog. “[the movie] shows Portman as an obsessive ballet dancer driven to perfection at all costs”, avalia outro.

Talvez seja possível traçar um paralelo entre os dois personagens lançando um olhar sobre a forma como foram criados. Um dos principais conflitos de Nina se dá com sua mãe: ela, uma ex-bailarina frustrada, tenta projetar na filha todas as virtudes, humanas e profissionais, sem possuí-las. O relacionamento das duas soa ambíguo ao espectador: a mãe quer mesmo o sucesso da filha?

Senna não teve o mesmo tipo de cobrança, obviamente, mas um trecho do livro “Ayrton – O Herói Revelado” é bastante elucidativo: “O Ayrton (…) perdeu algumas coisas pela obrigação de ser. O fato de o pai dele ter ficado rico saindo do nada (…) fez com que ele desejasse percorrer uma trajetória própria, sem nada do Milton”, revelou Lilian, ex-mulher do piloto.

Segundo o diretor de Cisne Negro“o filme é uma metáfora para o processo destrutivo da arte”. Pensando dessa maneira, é possível encontrar outro paralelo com Senna, analisando sua dedicação quase integral ao esporte e sua busca incessante por ser o melhor. Há incontáveis depoimentos de engenheiros, chefes de equipe e outros pilotos sobre essa obsessão.

Mas foi o colega Márcio Madeira quem melhor definiu a questão: “Não dá pra dizer que ele tirava prazer das corridas, e sim da pilotagem em si, livre de pressões. Na pista, Senna era um homem se sacrificando, um obcecado se submetendo a inimagináveis pressões internas, cobrando de si mesmo uma perfeição que não existe em nossa natureza”.

Em outras palavras, Senna não estava atrás dos limites da velocidade e de suas próprias capacidades, como que a testá-las. O que ele queria, mesmo, era encontrar o ponto em que pudesse se tornar insuperável.

Talvez isso tenha acontecido uma vez: no GP de Mônaco de 1988. Não apenas nas míticas seis voltas dos treinos, em que Senna colocou 1,5s sobre Alain Prost e afirmou ter tido experiências metafísicas, mas durante a própria corrida: Senna tinha uma vantagem quase impossível, e só a fazia aumentar. “Ele não queria vencer, ele queria me humilhar”, diria o francês ao relembrar aquele dia – aliás, Prost também aparece em Cisne Negro: ele está no papel de Lily (Mila Kunis).

(Assista à corrida completa)

Porém, o final daquele GP – bem como o do filme –  nos indica outra coisa: nenhum ser humano (seja piloto, bailarina ou o que for) pode flertar com a possibilidade de ser perfeito sem passar impune.

Quando falamos do período pré-F1, o primeiro nome que surge é o de Tazio Nuvolari. Mas outro italiano, que disputou Grand Prix naquele período e que foi o principal rival de Nuvolari, merece louvores semelhantes: Achille Varzi.

Varzi tem em sua sepultura a seguinte inscrição:

Talvez estivesses destinado a morrer, Achille, porque na tua forma de conduzir havia algo desse gênio que é um dos maiores mistérios da natureza, e a natureza esforça-se por destruir aqueles que chegam demasiado perto dela. Beethoven foi golpeado com a surdez quando pareceu estar para transcender poderes do homem na expressão musical. Galileo ficou cego quando tentou sondar o infinito e as suas leis. As mãos de Leonardo da Vinci foram aleijadas quando estava a ponto de chegar mais próximo da perfeição do que qualquer outro homem antes dele. Também tu, Achille, foste destruído quando pensaste ultrapassar o conhecimento que o homem tem das fronteiras da velocidade.

Penso que esse depoimento serviria para Ayrton Senna. E para Nina.

*Coluna publicada originalmente em 18 de março de 2011.

Marcel Pilatti
Marcel Pilatti
Chegou a cursar jornalismo, mas é formado em Letras. Sua primeira lembrança na F1 é o GP do Japão de 1990.

1 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Marcio,

    a personalidade do Senna, para mim, foi tudo isso que você disse acima … fico imaginando qundo ele perdia …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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