Complexo de vira-latas

“Durar não é estar vivo”
01/05/2013
Interlagos, 1972
06/05/2013

O que éramos antes do 01/05/1994? E o que nos tornamos depois dele?

Na qualidade de “testemunha ocular da história”, gostaria de oferecer à fascinante comunidade Gepeta – que colunistas! que público leitor! – uma visão pessoal da inserção brasileira na F1 até aquele trágico 1º de maio dezenove anos atrás. Inevitável falar de futebol, em se tratando de Brasil, não?

Até a Copa de 58 nós brasileiros ainda nos sentíamos à margem do mundo. Não tínhamos nenhuma importância internacional. Há uma foto do então presidente Juscelino Kubistchek em atitude pedinchona diante do Secretário de Estado americano, que ilustra muito bem esse sentimento: “Não importa que fábricas instalem no Brasil, vocês continuarão andando de Ford, Chevrolet…” teria dito o americano.

Pois em volta dessa primeira conquista e do aparecimento do inigualável Pelé, vinham títulos mundiais no basquete, com Vlamir Marques, Amaury e cia., no boxe com o excepcional Eder Jofre,  ouro olímpico no salto triplo com o inesquecível Adhemar Ferreira da Silva, mais a maravilhosa Maria Esther Bueno se tornando a tenista nº1 do mundo. E ainda tinha o aparecimento da Bossa Nova, que começou a encantar o mundo a partir de um famoso concerto no Carnegie Hall, em Nova Iorque.

Some a isso a impressão causada com a inauguração de Brasília, um ícone da modernidade, e você terá toda uma geração de garotos achando que, finalmente, o gigante tinha despertado.

O tão esperado futuro tinha finalmente chegado ao país.

No automobilismo ainda não. Bem garoto ainda vi o Chico Landi competir com o Fangio (já aposentado) em Interlagos, e perder. Segundo meu pai, o brasileiro teve um problema no acelerador e por isso não pode disputar de igual para igual com o colega argentino. Então o Chico era o melhor do Brasil mas talvez não fosse mesmo páreo para o pentacampeão. Complexo de inferioridade em esportes que demandam mais do cérebro do que do físico. Complexo de vira-lata, como disse Nelson Rodrigues.

Ainda na década de 60 tivemos um F3 desenvolvido pelo L. Antonio Greco na legendária equipe Willys, pilotado pelo Tigrão, mas pagando o preço da inexperiência e distância do automobilismo europeu, o mais sofisticado do mundo, não teve vida longa.

Em um certo momento apareceu um nobre italiano, Conte Della Serenissima ou coisa parecida, com uma proposta de montar uma equipe brasileira para correr na Europa. Entre os pilotos estava o Bird Clemente, uma das estrelas mais fulgurantes da Willys, declarando que não via a hora de “misturar o pelo” com os ases europeus. Não aconteceu.

Tivemos o Luisinho Pereira Bueno competindo contra o Luis Di Palma, o brasileiro no Porsche 908 da equipe Hollywood, o argentino a bordo de um extraordinário projeto nacional, o Berta, que incluia um motor V8 construído com o apoio do jornal La Razón.

O argentino lutava de igual para igual!

Além do Fangio ainda tinham um Oreste Berta, construtor de carro e motor de nível internacional!

Aí o Emerson foi para a Europa. Eu lia o Jornal da Tarde, o diário mais inovador da época, e por ele fui acompanhando a trajetória esplendida do Rato. F-Ford, F-3, F-2 praticamente junto com F-1. A vitória nos EUA. A vitória de um brasileiro em um esporte que parecia ser território inglês ou escocês. A primeira desde o longínquo GP de Bari, por conta do Chico Landi.

Emerson foi se consolidando como o grande rival do segundo escocês voador e mais um título veio.

Antes que a gente pudesse desanimar com a demora da equipe Copersucar em entregar um carro vencedor, apareceu o Nelson.

Mas o complexo de inferioridade ainda estava lá, com as piadas que se faziam com o primeiro projeto nacional de Formula 1. Ao invés de incentivar, como os torcedores de futebol fazem com seus times quando estão por baixo, desdém. Caramba, quanto tempo a Williams levou para ter um carro campeão? Alguém acha que os ingleses jogaram ela pra baixo em algum momento?

Pior: de antes da 2a. guerra até fim da década de 50 os ingleses só tiveram a Vanwall como equipe 100% nacional. Uma das razões para Sir Stirling Moss não ter ganho ao menos um título mundial.

E a Copersucar ainda revelou o Ricardo Divila, projetista de carros bem sucedidos nas mais diversas categorias.

Voltando aos pilotos: já tínhamos visto o Moco brilhar, o Wilsinho aparecer bem com uma terceira e obsoleta Brabham… “Por que os brasileiros são tão bons? Deve ser a água que eles bebem.” foi a explicação de Jackie Stewart na época.

O talento precoce de Emerson, seu estilo cerebral, que ia desde a introdução de cobertores para os pneus antes da largada até a sabedoria no aproveitamento dos então frágeis equipamentos, atacando somente na hora certa, dava a impressão de que poderia competir por muitas temporadas ainda e, quem sabe, igualar o número de títulos do Maestro.

A malandragem do Nelson. O mais “brasileiro” de todos, se entendemos que brasileiro tem que ser obrigatoriamente malandro pra se dar bem. Que dupla fez com o Gordon Murray. Eu a coloco no mesmo patamar de Chapman/Clark, Newey/Vettel.

Depois de Emerson e Nelson, fiquei com a impressão de que nenhum outro brasileiro conseguiria fazer mais que eles.

Já 5 títulos? Em tão pouco tempo? Estava bom demais.

Com o Nelson competitivo e com plena chance de buscar mais títulos, aparece o Ayrton. Dava a impressão de que aquele território passara a ser brasileiro. Haveria sempre um brasileiro disputando.

Talvez precisasse apenas ter o primeiro nome terminando em “on”.

Olhe para os lados. Tivemos um campeão mundial antes dos franceses terem o seu. Um não, dois. Tivemos três antes dos alemães (sem contar o pré-guerra). Desde a década de 50 os italianos passam em branco. Países com indústrias automobilísticas pra lá de consolidadas, ícones de desenvolvimento, há séculos na linha de frente intelectual.

Ayrton Senna. Ele terminou de nos curar do complexo de inferioridade e até estimulou o complexo de superioridade em parte da audiência. Como explicar as piadas com Rubinho e Massa? Vai ver se a Itália produziu pilotos do calibre deles nos últimos anos. Vai ver se a França fez a mesma coisa. Ambos foram capazes de dar exibições de primeira classe em vários momentos. Mas qualquer coisa menos do que o Ayrton fazia é igual à mais reles incompetência para essa parte do público.

O que ainda falta falar sobre ele?

Talvez algumas opiniões de não-brasileiros. Entre os não-brasileiros, os que teriam mais motivos para diminuir suas conquistas seriam seus competidores diretos, e a imprensa italiana, uma vez que Senna foi diretamente responsável por boa parte do seu jejum de títulos.

Autosprint, a mais importante publicação especializada da Itália, o classifica como o “mais amado dos campeões.” Não é pouco, principalmente se incluirmos os não-campeões mais idolatrados, como Gilles, Ronnie e Moss.

Martin Brundle, seu rival desde a F-Ford: “Estamos em Silverstone, F3, pista molhada. Primeira fila, eu e ele. Largo bem, em primeiro. Chegamos na Stowe. Opto por uma trajetória-escudo, me defendo, fico por dentro. Ele não vai se arriscar, o lado de fora é o lado sujo. Mas é o lado de dentro que está mais escorregadio e ele me passa. Continua chovendo e vem bandeira vermelha. Aprendi a lição, na próxima largada não vou deixar isso se repetir. Largamos e agora inverto a posição. Ele me passa por dentro! No pódio não resisto e pergunto como ele podia saber que na segunda volta era melhor passar pelo lado que era pior na primeira? “- Instinto. O grip ideal tinha invertido. Instinto.” Compreendi ali que jamais conseguiria ganhar de alguém assim.”

Martin Brundle: “Jamais gostei de Prost. Corri contra Senna a vida inteira e fui companheiro de equipe de Michael na Benetton. Acho que Schumacher está atrás de Senna, e muito. Ayrton era um campeão nato, um emocional. Michael era um puro calculador.”

Angelo Orsi, fotógrafo oficial e amigo, sobre Suzuka 1989 e 1990: “Em 89 ele ficou furioso com o toque na chicane. Jurou que no ano seguinte o botaria para fora na primeira curva. Ayrton fez a pole e assim seria obrigado a largar na parte suja. Fez o diabo para trocar de lado mas ninguém o ouviu. Largam e bum! Depois da corrida ele me disse: “O Francês sabia que se largasse melhor eu o poria para fora na primeira curva. Foi ele quem errou, porque me deixou em condições de exercer o sacrossanto direito de retomar o que era meu.”

Continuo nutrindo o maior desprezo pelo Prost-político, e seu comparsa Ballestre, por terem furtado um título de Ayrton.

Mas eles deviam ter desenvolvido um enorme e incurável complexo de vira-lata diante do descomunal talento do brasileiro.

Carlos Chiesa
Carlos Chiesa
Publicitário, criou campanhas para VW, Ford e Fiat. Ganhou inúmeros prêmios nessa atividade, inclusive 2 Grand Prix. Acompanha F1 desde os primeiros sucessos do Emerson Fittipaldi.

6 Comments

  1. Tassio Bruno disse:

    adorei a frase de ayrton!

  2. A essas frases, acrescento uma que abre a revista-livro especial que a Autosport publicou ano passado em homenagem ao Ayrton.

    “Seria ótimo poder dizer que um piloto como Ayrton surge uma vez na vida (once in a lifetime). Mas a verdade é que provavelmente nunca mais irá surgir um piloto como ele”.

    Belo texto!

  3. Fernando MArques disse:

    Chiesa,

    desde que Emerson trilhou o caminho da vitoria na Europa, o Brasil exportou muita gente boa no automobilismo mundial com muito sucesso … ganhamos varios titulos na Formula 1, Formula Indy, na Formula 3 Inglesa e europeia, Mundial de Marcas, 500 milhas, Formula Opel, categorias italianas, japonesas mas o mais incrível disso tudo foi ver que o automobilismo brasileiro internamente em vez de crescer, decresceu … rsrsrsrs … não tirou proveito disso …
    Será que foi por que ainda não vencemos em Le Mans?
    Ou será que eles acham que a Stock Car e/ou a Formula Truck (nada contra estas categorias da qual curto muito) fabricarão novos campeões mundiais brasileiros?

    Fernando Marques

    Niterói RJ

    • Carlos Chiesa disse:

      Obrigado, Marcel e Márcio. Fernando, o que acontece no Brasil me parece ser semelhante ao que ocorre no automobilismo argentino, que há milênios não envia um único piloto para Europa ou Estados Unidos, até onde sei. Na medida em que temos duas categorias fortes, com grande apoio de TV aberta, portanto popularidade, estabilidade, garantia de retorno sobre investimento para patrocinadores, torna-se menos atraente partir para a Europa, onde a incerteza é grande. Na medida em que essas categorias pagam aos pilotos e oferecem a chance de uma carreira estável, por que trocar isso para tentar uma F-Renault 3.5 ou GP2, com a obrigação de morar em países diferentes, falar idiomas diferentes, se entender com equipes diferentes, circuitos etc., ralando muito para, quem sabe, talvez, eventualmente, ter uma chance de…. pilotar o simulador de uma Marussia? Também é preciso considerar que as chances hoje na F1 estão mais dependentes de nacionalidade e patrocínio do que de talento. Com todo respeito, Maldonado, por exemplo, demorou uma eternidade para ganhar na GP2 (salvo engano) e assim ganhar um certo direito de andar de F1, devidamente garantido pelo falecido Col. Chávez. Davide Valsecchi mostrou talento (ao menos na opinião dos italianos) mas não tem um governo caudilhista por trás, então não tem lugar na F1. Chilton, até onde me lembro teve muito menos destaque, tem lugar. Razia não. Então enfrentar tudo isso para andar de simulador ou sentar num carro sem a menor chance de progresso… ou atrair um ou mais patrocinadores com verba suficiente para chegar a um cockpit intermediário na F1… a opção de ficar aqui não parece tão despropositada. Não me espantarei se o Bruno Senna voltar em um ano ou dois.

    • Mauro Santana disse:

      Concordo com o Fernando!

      Abraço!

      Mauro Santana
      Curitiba-PR

  4. Marcel Pilatti disse:

    Tens razão, caro Chiesa: que colunistas!
    Abraço,
    Marcel

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