Confiança

Competição ou jogo? – parte 1
25/07/2018
Competição ou jogo? – final
01/08/2018

O momento atual da Fórmula 1 me parece paradoxal, sob vários aspectos.

De imediato, cabe observar que, após três anos de domínio praticamente incontestável da Mercedes, entre 2014 e 2016, e uma temporada (2017) em que a Ferrari conseguiu se aproximar sensivelmente, o mapa astrológico de 2018 nos presenteia com um daqueles raros cenários vintage, no qual duas equipes chegam muito perto de explorar todas as potencialidades do regulamento técnico, relegando o tênue favoritismo de um lado ou de outro a peculiaridades de clima ou de traçado. E mesmo estas flutuações têm se mostrado incapazes de gerar apostas seguras sobre quem irá dominar treinos ou corridas.

Antes o contrário, em algumas oportunidades tais variáveis têm aberto a janela de competitividade aos dois conjuntos da Red Bull, que só não disputam efetivamente o título da temporada porque a equipe não tem o apoio total e exclusivo de uma fornecedora de motores que seja capaz, nesse momento, de entregar unidades tão eficientes quanto as que empurram os bólidos alemães e italianos. Ainda assim, apesar de toda essa competitividade técnica, temos visto poucas disputas diretas entre os dois principais candidatos ao título, e muitas provas sendo decididas a partir de erros bobos ou a partir de interferências eventualmente questionáveis por parte da direção de prova.

Junte a essa constatação o fato de que estamos sob o signo de um sistema de pontuação que irá dar peso muito maior a erros do que vitórias, e o que resta é a impressão de que aquela que poderia ser uma das melhores temporadas já vistas neste século está sendo desperdiçada, prova a prova.

Tomemos este GP da Hungria como exemplo. Antes do fim de semana começar, não eram poucas as pessoas apostando que seria mais fácil ou provável que a Ferrari sofresse resistência por parte da Red Bull do que da Mercedes. Ainda assim, sob a forte chuva que caiu no sábado, Hamilton anotou uma pole verdadeiramente “de piloto”, enquanto Vettel assinalava apenas o quarto tempo, atrás de Bottas e do próprio companheiro de equipe, Kimi Räikkönen.

Logo após a conquistar sua 77ª pole position, Lewis declarou que o segredo para andar forte sob chuva é ter “confiança”. A palavra merece atenção, uma vez que estabelece uma ponte direta com o que se passou na Alemanha apenas uma semana atrás, quando Vettel e a Ferrari tinham a vitória nas mãos até que começou a chover, a poucas voltas do fim.

Ora, já vimos muitas atuações sensacionais de Sebastian Vettel em pista molhada para sabermos o quanto ele pode ser bom sob tais circunstâncias. Naquela oportunidade, no entanto, Hamilton começava a andar muito rápido, tirando proveito dos pneus ultramacios que havia calçado pouco antes – e que naturalmente conservavam temperatura com muito mais facilidade –, levando Vettel ao típico erro de quem acostumou-se a trabalhar sem margem de segurança, de quem se habituou a assumir riscos extremos para voltar a vencer, de quem – já dissemos isso algumas vezes em 2018 – vem tendo dificuldades para se livrar das reações típicas do competidor que se enxerga como “zebra”.

Ora, mesmo que Hamilton eventualmente tivesse sido capaz de alcançar Vettel, um segundo lugar naquela oportunidade ainda teria bastado para que o alemão chegasse a Budapeste liderando a tabela de classificação. O baque emocional causado pelo abandono certamente foi grande e, quando seis dias depois os mesmos carros e pilotos estão novamente enfrentando uma pista molhada, parece natural que Vettel esteja com a confiança abalada e prefira assegurar uma posição nas duas primeiras filas no grid do que se arriscar a mais uma vez sair com as mãos abanando.

Até onde é possível analisar de forma distanciada, o primeiro ato do fim de semana magiar foi definido assim.

Avançamos então 24 horas, para a largada e o posicionamento inicial dos conjuntos.

Apagadas as luzes vermelhas todos os principais carros saltam com eficiência insípida, nenhum sinal de pneus girando em falso, nenhum reflexo mais demorado por parte de ninguém. Vettel, com pneus macios, é quem larga pior, sendo momentaneamente ameaçado pela Renault de Carlos Sainz na aproximação da Curva 1. O alemão, no entanto, recupera seu avanço fazendo bom uso do vácuo dos carros à frente, e está bem posicionado o suficiente para superar o companheiro de equipe pelo lado de fora nesta interessante Curva 2, que deveria ser estudada por qualquer um que se lance a projetar autódromos futuros.

A partir de então, e isso iria valer pelas primeiras 16 voltas, o que se viu foi a equipe Mercedes aplicar o jogo de equipe, usando Bottas para atrasar Vettel e permitir a fuga de Hamilton. Quando o finlandês da Mercedes finalmente rumou aos boxes, Vettel tinha uma desvantagem de 8,5s em relação ao líder. Paralelamente, o tempo que teve de guiar na turbulência certamente acentuou o desgaste de seus pneus, reduzindo a vantagem de durabilidade que passava a ter, por estar calçado com compostos mais duros que seus concorrentes diretos.

Encerrou-se assim o segundo ato para a definição do fim de semana.

Durante as 24 voltas seguintes houve uma corrida de fato. E das boas.

Tendo pista livre para deixar a verdade dos potenciais vir à tona, Lewis e Sebastian protagonizaram um duelo de estratégia, no melhor estilo das provas de caça no ciclismo olímpico.

Com pretensões de durabilidade diferentes, ambos passaram a buscar o melhor ritmo que fossem capazes de sustentar dentro da estratégia traçada. Para Lewis, a conta era mais simples: Bottas e Kimi já haviam parado, e ele já estava no lucro em relação às voltas a menos que teria de dar com o segundo jogo de pneus. A ele bastava continuar acelerando com precisão, até que o desempenho não estivesse mais lá. Já para Vettel a conta era um pouco mais complicada, uma vez que seus segundo stint seria com pneus ultramacios. Suas chances na prova dependiam fundamentalmente de sua capacidade de entregar mais 20 ou 25 voltas consistentes antes de fazer a troca. Não se tratava apenas de andar rápido, portanto.

Com essas referências em mente fica mais fácil compreender por que a diferença entre os dois líderes demorou a cair, mesmo quando o gráfico de perda de rendimento deveria ser amplamente favorável ao alemão da Ferrari. Da mesma forma, a diferença de metas ajuda a explicar o cuidado de Vettel com os pneus, preferindo alargar a trajetória e perder um segundo diante de um erro que ficou bem evidente pela tevê, do que forçar uma frenagem mais intensa que certamente teria resultado num travamento do pneu dianteiro direito.

Quando Hamilton seguiu para os boxes, ao fim da 26ª volta, sua vantagem em relação a Vettel ainda era próxima a seis segundos, o que pode ser considerado uma vitória parcial. Seb, todavia, empataria o placar ao longo das próximas voltas, quando conseguiu ampliar sua vantagem em relação a Hamilton de 11 para pouco mais de 14 segundos, apesar de seus pneus macios acumularem quase 30 voltas a mais de desgaste. A essa altura a vantagem de Vettel em relação a Bottas, também com pneus mais novos que os seus, já havia passado dos 25 segundos, deixando bastante claro que a Ferrari tinha o melhor ritmo do dia. Considerando que havia ampliado em três segundos a vantagem em relação a Hamilton, Vettel deveria fazer sua troca e voltar à pista a três segundos do inglês, com pneus muito mais novos e macios.

De repente, um final interessante se desenhava para a corrida.

O anticlímax, contudo, veio na forma de um erro da Ferrari que pode ser considerado muito mais grosseiro do que o da Alemanha, ainda que tenha custado menos.

Por volta da volta 35 Vettel começou a dobrar uma longa fila de retardatários, perdendo muito tempo em relação às Mercedes, que tinham pista livre. A vantagem em relação a Hamilton logo era menor do que 10s, e o que é mais importante, Bottas estava a menos tempo do que seria necessário para efetuar uma troca.

A situação, claro, era momentânea, uma vez que Hamilton já estava em vias de alcançar o mesmo grupo, e Bottas logo teria que fazer o mesmo. Mesmo que os pneus de Vettel estivessem no fim da vida útil, dificilmente ele deixaria de recuperar alguns dos segundos perdidos ao longo das próximas voltas.

Outra opção teria sido antecipar a parada, fazendo uso da distância que já havia construído e deixando os retardatários como uma barreira a atrasar Hamilton durante a caça que teria de abrir. Ainda que esta opção o obrigasse a cumprir muitas voltas com pneus ultramacios, a situação certamente não seria tão dramática quanto foi no Bahrein, por exemplo.

O fato é que a única coisa que a Ferrari jamais poderia fazer seria chamar Vettel aos boxes logo após se livrar dos retardatários. E foi justamente isso que a equipe fez, ao fim da 40ª volta. Um erro absurdo de estratégia, amador, infantil, que devolveu Sebastian à pista logo atrás de Bottas, desperdiçando no processo todas as melhores voltas dos pneus ultramacios que havia guardado para o fim da prova.

O tamanho do prejuízo pode ser dimensionado pela forma como Räikkönen, com pneus muito mais duros, os alcançou rapidamente, ou pelo tempo que o próprio Vettel foi capaz de virar em sua última passagem, quando os pneus já haviam rodado 30 voltas mas Bottas já não estava mais à frente.

Analisando friamente, a Ferrari perdeu a corrida tanto quanto a Mercedes a venceu.

Falei há pouco que Bottas já não estava à frente de Vettel quando ambos receberam a bandeira quadriculada, e abro um tópico à parte para comentar o comportamento ridículo do finlandês da Mercedes em suas voltas finais.

Ao ser atacado por Sebastian na abertura da 65ª volta, Bottas perdeu a posição na zona de aceleração entre as curvas 1 e 2, e não havia nada que pudesse fazer a respeito. Ao menos não ali. Ainda assim ele conservou a linha interna e atrasou a freada de forma irresponsável e antidesportiva, provocando um toque que apenas por sorte não comprometeu todo o campeonato.

Por algum milagre o pneu traseiro esquerdo de Vettel não furou, apesar da asa dianteira da Mercedes ter sofrido danos consideráveis. Kimi também superou o compatriota na mesma manobra, e enquanto ainda discutíamos o absurdo dessa situação o mesmo Bottas agia de forma ainda mais contundente em relação a Ricciardo, que o atacava por fora na Curva 1. Um toque violento – o australiano já havia sido tocado na largada – jogou Daniel para fora da pista, sem maiores consequências. Logo Ricciardo o alcançaria novamente, e enquanto a própria Mercedes o aconselhava a devolver a posição para evitar uma punição iminente, Bottas ainda se recusou e teve de amargar a ultrapassagem na volta final.

Terminada a prova ele receberia uma punição de 10s, que não bastou para premiar o excelente Pierre Gasly, sexto colocado e possivelmente o piloto do fim de semana, mas que acabou gerando uma curiosidade inusitada: o tempo final de Bottas acabou sendo exatamente um minuto a mais que o do vencedor Hamilton, com precisão de milésimo de segundo.

Após a Hungria a Fórmula 1 entra de férias, que vão durar até o dia 24 de agosto, em Spa. A nós só resta esperar que a reta final do campeonato reserve boas disputas diretas e seja definida muito mais por méritos do que por erros. Temporadas com tanto potencial não podem ser desperdiçadas.

Uma ótima semana a todos

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

6 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Grande Márcio!!

    Um ponto que eu não consigo entender é, como que a Ferrari consegue fazer tanta besteira, tendo em mãos uma vasta quantidade de informações aos que estãoa mureta dos box, pilotando os carros junto com seus dois pilotos.

    Complicado!

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba PR

  2. Lucas dos Santos disse:

    Márcio,

    Se tem uma coisa em que a Mercedes está de parabéns nesse GP é na estratégia de paradas nos boxes. Eles simplesmente acertaram nessa parte.

    A parada do Bottas, como forma de “contrapor” a parada do Raikkonen na volta anterior, foi simplesmente crucial. E a parada do Hamilton, que entrou assim que alcançou os primeiros retardatários, foi a estratégia perfeita! Lewis voltou dos boxes com a pista livre à sua frente, enquanto Vettel perdia tempo com os retardatários. Quando chegou a vez do Vettel parar, já não tinha muito o que fazer.

    Quanto aos erros do Bottas, eu diria que o primeiro foi “barbeiragem” e o segundo imprudência. Barbeiragem porque foi um erro primário, comum de se ver pilotos de categorias de base cometendo e não pilotos como o Bottas. E imprudência porque o piloto estava com a asa dianteira danificada, o que, sabidamente, deixa o carro subesterçante, mas na hora de se defender do Ricciardo, freou como se estivesse com o carro perfeito. O resultado não poderia ser diferente: subesterçou, não conseguiu fazer a curva e atingiu em cheio o carro do Ricciardo, que tinha deixado espaço mais do que suficiente na linha de dentro.

    Aliás, esse acidente do Bottas estragou um momento interessante na TV britânica. A TV Sky Sports F1 conversava ao vivo com o Christian Horner via rádio no momento em que o Ricciardo tentava ultrapassar o Bottas. Então o Horner meio que começou a “narrar” aquela parte da corrida, ali, ao vivo. Ele comentava que o Ricciardo faria a ultrapassagem da maneira mais difícil e esperava que o Bottas não espalhasse na curva. Mal ele terminava de dizer isso e foi exatamente o que aconteceu! Irritado, o Horner acabou deixando escapar um “oh, f*ck” durante a transmissão e o narrador da corrida, David Croft, acabou tendo que pedir mil desculpas pela reação do chefe da Red Bull.

    Mais uma vez, a superioridade das três principais equipes em relação às demais. Riccardo, em seu Red Bull Racing RB14, largando lá do meio conseguiu escalar facilmente o pelotão em um circuito considerado difícil de ultrapassar. E, no final da corrida, a distância que se formou à frente do Pierry Gasly foi simplesmente absurda! Antigamente, quando existiam aquelas três equipes pequenas, dizia-se que elas pareciam pertencer a “outra categoria” de tão lentas que eram em relação às demais. Hoje, pode-se dizer que Mercedes, Ferrari e Red Bull é que são de “outra categoria”, de tão mais rápidas que são. Algo precisa ser feito para equilibrar essa disputa. Esse negócio de “The best of the rest” não está legal.

    • Legal, Lucas. Vi a transmissão nacional, e não tive oportunidade de ver essa situação que você narrou. Vou procurar na internet.
      Quanto ao Bottas, vejo o toque com Vettel como uma postura comum entre os pilotos da atualidade, que parecem entender que forçar a barra quando estão sendo ultrapassados de maneira inapelável é sinal de combatividade. Massa cansou de se portar assim, e acumulou vários prejuízos bestas em função dessa imaturidade. A meu ver a posição estava perdida, e agir dessa forma apenas facilitou as vidas de Räikkönen e Ricciardo.
      Já em relação ao toque com o australiano, sua explicação é perfeita. Ainda assim, acredito que um piloto como Bottas tinha a obrigação de imaginar que teria de se adaptar à perda de aderência.
      Abraço, e escreva sempre.

  3. Salve Fernando. pois é, Vettel tinha uma distância grande a cumprir com os ultramacios, e disse que esperou pelo desgaste dos pneus de Bottas para atacar mais próximo do fim.
    Funcionou em parte, pois lhe valeu o segundo lugar, mas o impediu de tentar caçar Hamilton.
    Abraço, e tenha uma ótima semana.

    • Fernando Marques disse:

      Marcio,

      se eles tinham teoricamente mais carro em Hungaroring, o certo seria Vettel ser mais agressivo.
      Um forte abraço e uma ótima semana para você também.

      Fernando Marques

  4. Fernando Marques disse:

    Marcio,

    a chuva como fator imprevisível, mesmo ela ocorrendo no Q3 e não no decorrer da corrida como foi na Alemanha, foi determinante para o resultado final da corrida. E mais uma vez quem se deu bem foi o L. Hamilton.
    Um outro fator, a meu ver imprevisto também, ajudou o Hamilton a vencer a corrida. Eu esperava uma Ferrari bem mais rápida e eficiente na pista. Depois que o Vettel fez seu pit stop, ele voltou atrás do Bottas mais bem próximo dele e mesmo tendo pneus novos ultramacios não conseguiu uma vez sequer se aproximar para tentar a ultrapassagem ao fim da reta de Hungaroring mesmo com as asas abertas. Vettel não teve velocidade para passar o Bottas que andava num ritmo bem mais lento que permitiu inclusive ao Raikkonen e com pit stop a mais que eles acompanhar a briga de camarote e herdar o 3° o lugar quando Bottas não tinha mais pneus para nada. Numa pista onde a Ferrari era teoricamente mais rápida que a Mercedes, ver o Vettel preso atrás do Bottas foi uma decepção. O Bottas só não chegou em 2º por que não tinha mais pneus sequer para estar na pista. Se tivesse a Ferrari não teria reagido no fim.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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