Croácia, campeã do mundo

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Decepção e euforia
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Não me lembro (nem mesmo na Copa do Mundo de 2014!) de ver tamanha unanimidade entre os torcedores brasileiros em finais “estrangeiras” como aconteceu no mundial da Rússia. As justificativas que vinham após o “vou torcer pela Croácia” variaram do “eles nunca foram campeões antes, merecem” ao “jogaram três prorrogações”, passando por “é um país pequeno” e “com passado de guerras e sofrimento”. Houve até apelos à figura da presidente do país.

É de fato um fenômeno engraçado esse que acomete os esportes, mais do que a qualquer outro tipo de entretenimento: preferências — ou torcidas, no caso — vêm acompanhadas de justificativas. Como se fosse, de fato, uma escolha racional, e não meramente passional, como o termo sugere.

Em todo caso, é provável que os jogadores croatas não façam ideia dessa versão coitadista de suas performances, e possivelmente entendam que o apoio maior demonstrado a eles resulte de alguma rejeição à França. Já os torcedores “originais” da Croácia, longe de alguma decepção, ficaram tremendamente orgulhosos da equipe.

A Croácia, nesta versão atual, surge em 1991, após a dissolução da Iugoslávia. Desde então, tem dividido com a vizinha Sérvia (que até 2006 era nação composta com Montenegro) o posto de principal potência esportiva local.

Os maiores nomes do desporto em ambas as nações aparecem no tênis: dos sérvios, o gigantesco Novak Djookovic; dos croatas, Goran Ivanisevic e Marin Cilic, ambos vencedores de Grand Slams e presentes em outras finais de Majors. No futebol, a Croácia muito mais impactante: além da recente final, em 1998 fez campanha memorável, tendo o artilheiro da Copa e conquistando honroso 3º lugar após ser eliminada pela mesma França de 2018 nas semifinais. Já a Sérvia, pouco fez, embora tenha revelado o grande Petkovic, ídolo de Flamengo, e Mihajlovic, craque do futebol italiano. No vôlei, vantagem sérvia, donos de um ouro olímpico; já no Basquete, superioridade croata, com uma bela seleção (prata em Barcelona) e revelando grandes nomes da NBA nos anos 90.

No esporte a motor, a presença de ambos os países é muito pequena: do lado sérvio, ainda podemos citar o lendário Bill Vukovich, bicampeão da Indy 500 — 1953-54: nascido na Califórnia, era filho de sérvios. Já do lado croata, não há nenhum grande nome nas provas de autódromos. Grandes, mesmo, só os circuitos: as pistas de Opatija (1969-77) e Rijeka (1978-90) sediaram o GP da Iugoslávia de Motovelocidade. Por lá desfilaram Freddie Spencer, Eddie Lawson e Wayne Gardner.

Por outro lado, em termos de pilotos, quase nada. Um outro nome nos ralis, alguns no motociclismo e em outras categorias, mas nada muito significativo. No entanto, outro californiano, filho de um casal de imigrantes croatas, merece nossas lembranças e destaque no mundo da velocidade.

Gary Gabelich (Gabelić, originalmente) nasceu na cidade de San Pedro e cresceu em Long Beach.

Desde muito cedo, era apaixonado por velocidade. Velocidade, na acepção da palavra: era vidrado em dragsters. Venceu a primeira competição da qual participou, pilotando o carro de seu pai, e venceria uma série de outras provas em maior escala. Estabeleceria, também, o recorde mundial de velocidade para pilotos com menos de 21 anos: mais de 570 km/h. Sua carreira profissional começou de forma curiosa: era motorista de entregas, usando uma… Kombi.

Com o passar dos anos, outra de suas paixões seria descoberta: Gabelich participou do programa Apollo, testando as cápsulas em sua resistência e uma série de pormenores. Ele serviu como astronauta em 1968 e 69. De uma certa forma, foi “dublê” do lendário Wally Schirra, pois tinha exatamente as mesmas medidas do comandante do Apollo 7. Gabelich chega a se voluntariar para participar dos testes de “release” das cápsulas: quedas livres da altura de… 10 mil metros.

Em paralelo aos projetos e pesquisas aeroespaciais, Gary seguia em sua dedicação à velocidade.

Em 1967, por exemplo, se torna o primeiro homem a completar uma “corrida” de Dragsters na casa de 7 segundos, e em 1969 seria o primeiro a superar a marca de 200 milhas (ou 322 km/h) nos “funny cars” — um híbrido de dragsters com carros de passeio. Ele também competia na água, com os drag boats, sendo campeão nacional em 1968, e estabeleceu o recorde de velocidade em 1969, se tornando o primeiro homem a romper as 200 milhas por hora.

A situação, porém, chegava ao status de insustentável: a companhia de aviação lhe deu um ultimato: “pare com essa tolice ou peça demissão”. Ainda bem, Gabelich seguiu em sua tolice. Em 1970, surge a grande oportunidade de sua vida.

A empresa Reaction Dynamics Inc. desenvolveu um carro foguete, e procurava um piloto para se arriscar no lendário deserto de sal de Bonneville. Craig Breedlove, o então recordista, pediu uma quantia em dinheiro que a empresa não estava disposta a pagar. A segunda opção era Chuck Suba, um bom piloto de dragsters da época. Empresa e corredor chegaram a um acordo, mas Suba sofreria um acidente algumas semanas depois. O terceiro da lista era Gary.

A primeira tentiva aconteceu no dia 22 de setembro. Um fracasso. A velocidade atingida foi de 426 milhas (ou 685 km/h) — para se ter ideia, o recorde de então era de 600,6 milhas, ou 966 km/h. Em 15 de outubro, nova tentativa e a velocidade máxima foi superada — ele chegou a 609 milhas (980,1 km/h) –, mas não conseguiu fazer a volta de retorno — como manda o regulamento da FIA para os recordes — devido a uma falha mecânica. Oito dias depois, algo parecido: desta vez ele chega a impressionantes 621 milhas de pico (999 km/h), mas outra vez o carro quebra.

O momento histórico aconteceria no dia 28/10. Gary chega a 617 milhas na ida, e 627 na volta (1009.6 km/h), atingindo a média de 622 milhas — ou 1001 km/h, o recorde mundial para velocidade terrestre. Registros não oficiais apontam que ele atingiu 650 milhas (1046 km/h) em dado momento. Se tornava o primeiro ser humano a romper os mil quilômetros horários na terra.

A grande glória havia chegado, e Gabelich ficaria conhecido como “o homem mais rápido do mundo”. Perguntado sobre a dificuldade em controlar o carro, foi bem humorado: “é mamão com açúcar“.

Como a Reaction Dynamics decidiu interromper os testes de velocidade e não iria mais participar das competições em Bonneville, Gabelich passaria a competir em diversas categorias. Em 1972, sofre um grave acidente pilotando um funny car. Sua mão foi arrancada (mas seria reimplantada) e uma de suas pernas correu sério risco de ser amputada, ele sofrendo com gangrena durante quase um ano. Assim, ele não conseguiria mais desenvolver todo seu potencial, mas obteria alguns resultados importantes naquela década, como a vitória no Toyota Slalom de 1979.

No começo dos anos 80, em parceria com Tom Daniel, Gabelich dava inicio ao seu mais ambicioso projeto: eles fundaram a Rocketman Corporation, e passaram a conceber um veículo supersônico em formato de foguete (foto abaixo). Gary procurava investidores para a construção de sua obra-prima que, afirmava, poderia atingir 800 milhas por hora.

O projeto não sairia do papel, porém: Gary faleceria em 26 de janeiro de 1984, vítima de um acidente de moto.

Até a data desta coluna, apenas dois homens superaram a marca de Gabelich em 1970: um em 1983, menos de três meses antes de sua morte, e outro em 1997. Ninguém atingiu as 800 milhas.

Em 2008, ele passaria a fazer parte do “Walk of Fame” em Long Beach. Há também um parque na cidade que leva seu nome.

Gabelich era sobretudo um homem sábio. A frase que melhor o vai definir, e que inclusive faz parte do monumento que sua família ergueu no parque, diz: “Don’t wish it, make it happen. — Não deseje algo, faça acontecer.

De fato, os croatas não precisam de um título na Copa do Mundo de futebol.

Marcel Pilatti
Marcel Pilatti
Chegou a cursar jornalismo, mas é formado em Letras. Sua primeira lembrança na F1 é o GP do Japão de 1990.

4 Comments

  1. Ronaldo disse:

    A cidade que Mario Andretti é a pequena Motovun, na Croácia.

  2. Mauro Santana disse:

    Show de coluna, Marcel!

    E faço minhas as palavras do Fernando.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba PR

  3. William disse:

    É isso aí. Nosso apreço (brasileiros, e populações em geral) pelos “menores” ou mais “fracos”, isto numa visão simplista, se apegando a um fato: menor população, menos reconhecimento, menos rico e etc é quase que uma constante. Da mesma forma que havia os que torciam pela França para manter a hegemonia dos países grandes na galeria dos troféus. Opiniões diversas, que sempre fazem parte de nosso cotidiano, e todas estão com suas razões.

    Parabéns pela sua coluna, eu particularmente desconhecia desse fatos de sérvios e croatas. E aprendi, que apesar de certos talentos não serem reconhecidos, eles merecem certos créditos justamente por fazer parte de qualquer esporte ou outra área, vide a celebração fervorosa dos jogadores tunisianos ao fazer um gol num jogo que acabou…1…a…6 para o adversário.

    Parabéns à você, Marcel, por sua coluna, gostei muito. E ao site também, fazia tempo que não comentava. Continuam com a mesma qualidade de sempre.

    Abraços.

    William – POA

  4. Fernando Marques disse:

    Marcel,

    muito brilhante a sua homenagem a Croácia, que além de ter uma bela presidente, revela que eles não são só bons no futebol mas também em outros esportes, em especial o automobilismo.
    Achei muito legal

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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