Crônica do GP: Bélgica 2020

Estudo aponta
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Tivemos no GP da Bélgica o que resumi como suspensão do suspense. Não houve surpresa na qualificação, não houve surpresa na largada, não houve surpresa nas táticas de pneus, não houve surpresa de quebras, não houve surpresa durante o Safety Car provocado pelo Giovinazzi, não houve surpresa da meteorologia, tampouco houve surpresas de padre louco invadindo a pista. Então… não há surpresa de resultado. Nem a mitológica e tesuda pista de Spa-Francorchamps nos livra de tamanha previsibilidade.

Sempre que este patamar de normalidade for atingido, o resultado será Lewis Hamilton, Valtteri Bottas e Max Verstappen, nessa referida ordem.

Para não dizer que não houve algo de novo, a Renault mostrou-se em sua melhor forma nesta sua nova fase como construtora. Daniel Ricciardo foi o melhor do resto com uma sólida quarta posição, coroada com a melhor volta da corrida que tirou de Hamilton o Grand Slam, pois ele carregava no bolso pole com vitória de ponta a ponta.

O australiano foi seguido de longe pelo seu companheiro Esteban Ocon, que ainda está em processo de desenferrujar, mas que chegou à frente de um grupo compacto que era seguido por Alexander Albon (mais uma vez sem entregar nem metade do que Verstappen entrega), a McLaren de Lando Norris, a Alpha Tauri de Pierre Gasly e as duas Racing Point, com Lance Stroll à frente de Sergio Perez.

Ainda houve bandeirada para a outra Tauri, do russo Kviatt (tão encrencado quanto Albon) e para a Alfa Romeo de Kimi Räikkonen. Só então chegaram as Ferraris, que provavelmente receberam a bandeirada depois que as garrafas de champagne do pódio já estavam todas vazias e o tímido sol do domingo já se escondia atrás dos pinheiros das Ardenas. Sebastian Vettel P13, Charles Leclerc P14, invertendo suas respectivas posições de largada.

As constatações agora são óbvias. Primeiro: a unidade de potência (que no século passado costumávamos chamar de motor) da Ferrari caiu drasticamente de 2019 para 2020. E não há como não associar o fato ao acordão feito entre FIA e Ferrari sobre a investigação feita sobre o fluxo de combustível do motor, do qual recaía uma suspeita gigantesca de estar burlando o sensor. Todos os times com unidade Ferrari estão pouco competitivas.

Como se não bastasse, o chassi Ferrari de 2020 é tão bom quanto cortar o dedo com papel. Räikkönen, com uma Alfa Romeo longe de ser competitiva, não teve trabalho para superar as Ferraris na pista, incluindo o trabalho de ultrapassá-las quando necessário, com uma facilidade desconcertante. Todos os times evoluíram seus tempos de volta em relação a 2019… exceto a Ferrari.

Diante de tamanho descalabro, fiz uma rápida varredura nos resultados das quase mil corridas disputadas pela Ferrari. Como eu já suspeitava, não houve nada, absolutamente nada similar a carros da equipe recebendo a bandeirada em P13 e P14 sem quaisquer problemas mecânicos. A isso também se deve a não-largada de Carlos Sainz, com problemas fatais numa McLaren que não ia ter problemas em chegar à frente disso.

O mais assustador é que nem em anos latrinários para a Ferrari, como 1962, 1973, 1980 ou 1992, os desempenhos foram tão ruins quanto neste fim de semana. Ou seja, em uma determinada perspectiva, esta foi a pior corrida da história da Ferrari, o que é um tanto assustador.

As definições de péssimo trabalho foram atualizadas com sucesso.

Em certo ponto de vista, a pior corrida da história da Ferrari nos seus quase 1000 GPs

Nesta semana tivemos a notícia que a Globo não transmitirá a F1 a partir do próximo ano, quebrando um ciclo que começou em 1972 e vinha de modo ininterrupto desde 1981 – portanto, em 40 temporadas seguidas. Não houve acordo de direitos de transmissão com a Liberty Media. O acordo vigente foi assinado em 2015, quando a F1 ainda estava nas mãos de Bernie Ecclestone.

É preciso entender que o que está em jogo é muito mais do que um acerto financeiro. Apenas com essa premissa em mente é que entendemos que os dois lados estão errados. Sim, os dois.

Vamos primeiro à premissa. A Liberty pediu à Globo, pelo que se sabe, uns 120 milhões de reais pelos direitos. A Globo, por sua vez, arrecada 98 milhões de reais de cada um de seus anunciantes – são vários, Nova Schin, Tim, Renault, Santander e por aí vai. Por mais que ela seja obrigada a repassar parte do valor para suas afiliadas, a operação, até onde se sabe, é superavitária, mesmo com o câmbio nitidamente desfavorável. Se existe algum player no Brasil que pode bancar essa brincadeira em Tv aberta, é a Globo. As demais emissoras não tem como jogar esse jogo.

A questão é que a Liberty pensa diferente de Ecclestone – e nem ao menos deve estar negociando com outros grupos de comunicação. Tio Bernie valorizava o contrato com a Globo porque ela representava massificação da audiência. Ora, o Brasil continua sendo o país com maior número de TVs ligadas no momento da largada, um dos raros em que ainda é transmitido em TV aberta. Por outro lado, os atuais donos do circo querem valorizar mais o seu produto.

Não é de hoje que a Globo tem operado sob a égide da lei do mínimo esforço, entrando no ar segundos antes da volta de apresentação, cortando pódios, empurrando qualificação para seu canal por assinatura e mantendo gente como a péssima Mariana Becker, que tem conhecimento técnico tão denso quanto isopor. O próprio Reginaldo Leme, herói da minha infância e que foi dispensado ano passado, há anos parecia cansado e desatento a detalhes que não escorregariam nas décadas anteriores.

Mas há mais: a Liberty quer liberação para sua própria transmissão por steaming, com materiais exclusivos e uma porrada de câmeras onboard para o internauta se divertir. Na prática, seria uma concorrência pesada à própria Globo, que teria que melhorar sua transmissão para não perder terreno – o que demanda mais tempo de grade e mais grana para fazer bonito.

Isso acontece em um momento em que a emissora sente o impacto da pandemia, em forma de diminuição de anunciantes, algo que foge ao controle dela. É sabido que a Globo entrou na justiça para adiar o pagamento de cerca de 460 milhões de Reais à Fifa pelo direito de transmissão da Copa 2022, bem como vai rescindir o contrato da Libertadores da América junto à Comebol.

F1 em Interlagos, 1974. Reparem na umbrella nas mãos de Ronnie Peterson em sua Lotus…

Se livrar da Globo significa para a Liberty também se livrar do GP do Brasil, que acabou sendo convenientemente cancelado pela pandemia e que tem contrato encerrado este ano. Todo o arranjo contratual, claro, é da época de Ecclestone, que apesar de criticar a estrutura, sabia que o local é cheio de fãs de verdade e com corridas muito disputadas. A Liberty está se lixando para isso, só enxergando que o Brasil paga pouco pelo GP e seu autódromo não está no nível dos demais do calendário em termos de estrutura. Isso tudo embalado com um bilhetinho dizendo que o país não tem mais pilotos na categoria.

Sim, a Globo erra por estar se lixando para suas transmissões. E a Liberty erra por estar se lixando para o alcance para todos, o que sempre foi bom no Brasil. Ela está elitizando um produto já altamente elitizado por sua própria natureza. Não é a tática mais inteligente para construir público e atrair novos fãs, incluindo os mais jovens.

No fim, como eu disse, erro de lá, erro de cá.

Em meu mestrado (lá vou eu citar de novo, vocês já devem estar de saco cheio disso), parto do pressuposto do teórico da comunicação John B. Thompson. Ele afirma que os meios de comunicação de massa não apenas financiam e difundem formas culturais, mas também as transformam. E que o que chega para nós não é simplesmente uma transmissão esportiva: é um produto, anteriormente apenas televisivo (sonho dourado de Ecclestone), mas que hoje é multiplataforma. E que ele, esporte, é transformado justamente para ser o melhor produto de mídia possível.

O que quero dizer é que, bom ou ruim, o produto Fórmula 1 como o conhecemos, ou seja, através da Globo, não existirá mais. Nem GP do Brasil de Fórmula 1. Termos que consumir Fórmula 1 de outra(s) maneira(s).

Um dia isso ia acontecer. É algo chocante, mas não surpreendente. Suspende o suspense.

 

Abração!

 

Lucas Giavoni

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

8 Comments

  1. Carlos Chiesa disse:

    Lucas, preciso fazer uma observação: o valor pago que vc tem por patrocinador da F1 talvez não seja o verdadeiro. Salvo engano este é o valor de tabela. Não é o valor efetivamente pago, porque anunciantes como esses negociam até os olhos saltarem das órbitas por meio dos mídias. A exposição das marcas antes, durante e depois da transmissão das provas está longe de ser fabulosa. Ao longo dessas décadas a Globo experimentou várias modos de exibir os comerciais dos patrocinadores sem espantar a audiência. O grande atrativo, e isso explica o que uma marca como Nivea está fazendo na F1, são as inserções em outros programas da grade, todos eles de grande audiência. Em outras palavras, creio que a Globo precisou inventar um jeito de abrir espaço em seus programas de maior audiência para os patrocinadores da F1 para poder fazer frente ao custo da transmissão, este sim colossal. Quanto ao resto, streaming me parece ser o nome do jogo daqui para a frente em se tratando de comunicações esportivas e de entretenimento.

    • Lucas Giavoni disse:

      Olá Chiesa!

      De fato, é possível que os valores não batam – não são totalmente abertos ao público e há os descontos de ocasião (e olha que ocasião vivemos…). A operação, no fim das contas, talvez seja deficitária neste momento de câmbio tão desfavorável. Pesaria, sim, para a Globo se a operação ficasse no vermelho, diante de tantos outros vermelhos que a emissora deve possuir.

      Já os outros fatores na balança, estes não mudam. Mas não deixa de ser um pouco estúpido que as partes não cheguem num acordo. Fica parecendo birra da Libery, por ser este um acerto ao estilo Ecclestone. Só que a Liberty sai perdendo porque vai enterrar a F1 aqui… e o público brasileiro fica na mão. Seria o último lampejo de popularidade da categoria. Sem cobertura televisiva, qualquer esporte aqui vira nicho do nicho. Todo mundo sai perdendo.

      Abração!

      Lucas Giavoni

  2. Fabiano disse:

    Para assistir às corridas narradas pelo Cleber Hoje Não Machado, melhor que vá para o F1TV ou para o grupo Disney (ESPN / FoxSports).
    A emissora havia acertado em cheio ao escalar o Everaldo Marques no Sportv, ao lado do Rafael Lopes, depois tira o cara para botar o Cleber a narrar a corrida. Ficou com gosto de hoje sim, hoje sim, hoje não.
    Sobre o GP, assim como qualquer outro evento esportivo profissional, ele tem que sobreviver com recursos próprios, sem aplicação de verbas de impostos, retiradas da saúde, segurança e educação para pagar por um evento para poucos. Sou fã e assisto corridas de F1 desde os tempos em que o Nelson Piquet era o brasileiro que vencia corridas, mas nunca fui fã da maneira como o evento é gerenciado nas terras tupiniquins.

  3. Helena Sophia disse:

    É verdade!… Sem transmissão, porque renovar o contrato do autódromo?!…
    Agora sim, não teremos mais GP, depois de tantos anos de ameaças.

    • Lucas Giavoni disse:

      Oi Helena!

      Para a Liberty é uma dupla vitória: rompe com Globo e com Interlagos, dois arranjos dos tempos do Bernie. Só que é a clássica vitória de Pirro. Sem TV aberta, nenhum esporte pode ser chamado de popular. E se não tiver transmissão nos canais por assinatura, aí vira nicho do nicho. Se a Liberty pensa que todos os brasileiros vão correr assinar o streaming deles, comecei a rir desde já.

      Abração!

      Lucas Giavoni

  4. Rubergil Jr disse:

    Belíssimo texto, Lucas.

    Em tempo: esperei a semana inteira por um texto seu sobre a Indy 500…

    • Lucas Giavoni disse:

      Oi Rubergil!

      A Indy foi tão “interina” que acabamos nem programando coluna minha. Mas aproveito a pecha para dar uns pitacos.

      – Desde cedo ficou claro que ia dar Honda. Os motores da Chevrolet só surpreenderiam se fossem muito mais econômicos e encaixassem num momento bom de pits no final, o que acabou não acontecendo.
      – É bom ver Sato vencedor novamente. Isso reafirma que o cara é bom por lá. Quase venceu em 2012 (lembra aquele duelo final com o Franchitti? Foi totalmente win or wall), venceu em 2017 e agora. Não deixou de ser surpreendente o modo como ele atacou um favoritíssimo Scott Dixon, que teve que aceitar o fato de que não alcançaria mais.
      – Pensei que a adoção do windscreen deixaria a corrida doida, estilo packing racing, com muito vácuo e ultrapassagens aos montes. Mas parece que o efeito foi contrário. A impressão é que ficou mais difícil passar.
      – Outro medo meu, felizmente descartado, era do windscreen provocar ar sujo, fazendo pilotos de trás perderem a aderência dianteira quando ultrapassados. Não foi o caso. Ufa!
      – Diferentemente do que acontece na F1, dessa vez senti demais a falta de público. É um componente muito forte de Indianápolis.
      – É 2020, tem acontecido muita coisa louca nesse ano, mas nem assim um Andretti (ainda que partindo da pole) venceu por lá. A maldição continua…

      Abração!

      Lucas Giavoni

      • Rubergil Jr disse:

        Boa Lucas! Suas observações batem com a minhas. Sato realmente “encaixou” com a Indy. Parece que ali no “templo” afloram apenas a velocidade, inteligência e leitura do japonês, enquanto suas loucuras e afobações ficam “em hold”. Aliás, foi a leitura de corrida que fez Sato passar Dixon na hora certa. Nitidamente Sato tinha o carro mais inteiro ao final da corrida, desbancando o conjunto mais veloz que era Dixon/Ganassi.

        Outro fortíssimo candidato que teve problemas foi Alexander Rossi, o melhor dos Andretti. Está se mostrando outro cara que sempre anda bem em Indianapolis, e sempre será candidato à vitória. Ainda bem para a equipe porque, olha, se depender do Marco…

        A corrida não foi tão emocionante como 2017, nem tão enfadonha como 2018 (e que era o temor geral). Foi, digamos assim, uma edição mais “standard”, o que já está bom demais. Pena mesmo a falta de público, de fato é parte integrante do espetáculo.

        Sobre o domínio dos Honda sobre o Chevrolet, me lembrou edições entre 1988 e 1991 quando apenas pilotos com o Ilmor/Chevrolet tinham chance real de vitória (o mundo dá voltas, né dona Chevrolet?). Mesmo assim, tinham leões com Chevrolet que até tentaram algo – refiro-me aqui ao quarteto da Penske e Tony Kanaan, sempre ele. Alías, Tony PRECISA disputar mais uma prova, em tempos normais, e se despedir do templo de maneira digna.

        Finalmente, Alonso. Acho até bom ele comer um pouco de grama, é preciso que o piloto entenda e respeite o que significa Indianapolis, afinal até Rick Mears e Emerson Fittipaldi “gramaram”, ficando sem se classificar pelo menos uma vez. Chegar e vencer na estréia, é preciso condições muito especiais – que o próprio Alonso teve em 2017, por sinal. Espero muito que Alonso volte mais forte, com boa estrutura.

        Abraço!

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