Crônica do GP: Eifel 2020

Fim do tabu
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Melhor dos melhores
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A coisa anda tão doida, tão doida que o GP da Alemanha, realizado neste fim de semana, nem mesmo pôde ser chamado de GP da Alemanha! Virou GP de Eifel, o que ao menos nos remete às origens das corridas disputadas no sagrado solo de Nürburgring.

Sobre a corrida, não há muito o que falar, senão que Lewis Hamilton prevaleceu como assim é esperado. Devemos até aplaudir a largada vigorosa de Valtteri Bottas, que apesar de ter tracionado pior, se defendeu nas duas primeiras curvas.

Confira aqui o resumo da corrida

Para Hamilton, bastou um pouco de pressão para que em 12 voltas, o colega errasse a freada da primeira curva. Pronto, não perderia mais a ponta. Já o destino de Bottas seria a ladeira. Seu pneu ficou quadrado, seu motor começou a falhar e pronto, garagem.

Promovido a segundo, Max Verstappen simplesmente não está em posição de lutar pela liderança contra Hamilton numa situação corriqueira. Sua vitória no GP70 em Silverstone está muito mais ligado a uma tática inteligente de pneus do que um pico de performance da Red Bull. Não se enganem, a Mercedes continua sendo arrasadora – como previsto.

Como que em telepatia, meu amigão Mário Salustiano me mandou esta foto, com os comparativos entre Valtteri Bottas e seu antecessor, Nico Rosberg, feito pela Sky Sports britânica.

O que faz Hamilton ser tão monopolizador das vitórias e títulos nos últimos três anos? Ao que parece, a resposta está ao lado de seu box.

Há tempos venho dizendo que a Fórmula 1 virou uma versão medrosa de si mesma, parafraseando o filme “O Demolidor”, que em um futuro imaginário tem uma sociedade de cordeirinhos muito, muito frouxos.

Tudo piorou sensivelmente com o terrível acidente de Jules Bianchi e hoje, mesmo que o trator de remoção dos carros fique pra dentro dos muros, o Safety Car é acionado, seja físico (o Mercedão) ou virtual.

(Alguns vão dizer: ah, mas o Safety Car virtual não afeta a corrida, pois mantém as distâncias entre os pilotos. Quem pensa assim se esquece que, com o andamento sensivelmente mais lento, a perda de tempos nos pits é bem menor – portanto provoca mudanças táticas sim…)

Isso acabou criando uma situação de conveniência, em que o Safety Car dá uma chacoalhada na corrida. Em muitas ocasiões, provoca até reviravoltas interessantes, como a vitória de Pierre Gasly na Itália.

O diretor de prova Michael Masi inclusive deu explicações do que motivou a entrada do Safety Car (o Mercedão) nos estágios finais do GP. Ora, se tem que se contorcer em explicações, é porque não ficou óbvio pra quem está assistindo. 

Não deixa de ser artificialismo barato. Sorry.

Muito sensível a visita de Mick Schumacher a Hamilton, para lhe presentear as 91 vitórias com um capacete do pai.

Como muito se falou por aí, igualar (e agora passar) as vitórias de Schumacher parecia ser uma missão difícil demais.

Nada que um regulamento com tendência à hegemonia não consiga. Hamilton é um piloto fantasticamente talentoso, mas tem na maioria das situações o melhor carro e um companheiro de equipe que está dois degraus abaixo – seu ex-colega Nico Rosberg só estava um degrau abaixo e não perdeu a oportunidade de ser campeão quando a chance bateu à porta.

O próprio Michael Schumacher se aproveitou muito do período de glória da Ferrari na virada do século, com um papel de protagonismo ainda maior, pois aqueles eram tempos em que testes aconteciam à exaustão, e Schumacher estava lá, pra garantir até mesmo testes de 20 gasolinas diferentes pro carro.

Sobre Hamilton e Schumacher? Dois talentos imensos. Hamilton ainda vai ter seu lugar na história, insisto que ainda é cedo para fazer esse tipo de análise. Mas o que é possível ver de comum nos dois é que ambos são aberrações estatísticas, termo que já usei vez ou outra para falar sobre o alemão, tristemente debilitado.

Os dois são a maior evidência que tenho que, para determinar um peso histórico, comparar resultado, velocidade, os números não apenas se tornam insuficientes como atualmente atrapalham análises mais aprofundadas.

Kimi Räikkönen bateu o recorde de Rubens Barrichello com 323 largadas na F1. Apesar de ser um recorde expressivo, ninguém deu muita bola.

Afinal, Kimi não deu muita bola. Típico Kimi.

Não vi o pódio, mas ao que tudo indica, Ricciardo esqueceu de fazer o shoey, sua tradicional celebração de tomar champanhe na sapatilha que ficou suando por duas horas dentro do carro.

Ou seja, não sei se foi bom ou se foi ruim…

Ricciardo é um piloto que já provou ser capaz de disputar vitórias, ele não apenas merecia voltar a frequentar o pódio, como mostrou sua excelência em ultrapassagens ao aprontar para cima da Ferrari de Charles Leclerc por fora.

Temos que falar sobre a saída da Honda ao fim de 2021.

Não, Honda, não vem com esse papinho eco-amiguinho de emissão zero, seu contrato de Indy vai até o inferno congelar.

A Honda simplesmente chegou à conclusão que é muita grana e muito uso de seus melhores engenheiros para pouco retorno para a marca, seja em prestígio, seja em vendas na segunda-feira.

O temor é que a F1 fique cada vez menos atraentes para as gigantes automotivas. Não vejo nenhum problema na categoria voltar a ser mais garagista – pelo contrário, já que estes carregam no DNA a vontade de participar e pertencer. O problema é que hoje a categoria é totalmente dependente das gigantes automotivas, num cenário em que não vão entrar novos jogadores.

Como tenho tanta certeza disso? Porque hoje é um suicídio estratégico começar do zero um powertrain de Fórmula 1, dada a complexidade dos sistemas, do nível tecnológico de quem já está estabelecido e, por fim, da grana que precisa ser injetada.

O modelo de F1 híbrida vem desde 2014, quando Ferrari, Mercedes e Renault já estavam estabelecidas. Aí entra a Honda em 2015 com o famoso Gipitú Engine, num déficit que provocou o rompimento com a McLaren (por culpa da McLaren também, diga-se). O powertrain Honda era tão questionável que Daniel Ricciardo preferiu sair da Red Bull (soma-se a isso a preferência do time por Verstappen) para se juntar à Renault.

Renault que… ao que tudo indica vai ser obrigada, até mesmo por força do Pacto de Concórdia, a voltar com fornecimento para Red Bull e Alpha Tauri, ex-Toro. A relação entre o grupo do energético com a Renault estava chamuscada desde 2014, quando ficou claro que a Mercedes tinha feito um conjunto fantástico.

Pra fechar, a inacreditável carta do chefão Chase Carey (aquele com bigode de cafeicultor do século XIX) ao governador interino do Rio de Janeiro. No documento, o acordo selado para se realizar em breve o GP do Brasil num futuro autódromo em Deodoro, assim que forem liberadas todas as licenças para dar andamento à empreitada.

Sim, inacreditável.

A começar pela imensa instabilidade política no Rio. O governador afastado tem altas chances de ser defenestrado do cargo, bem como tem altas chances de se juntar ao histórico carcerário de seus antecessores. O vice, Cláudio Castro, assume um estado no meio de um furacão regado à pandemia.

Como eu já disse, é só o começo, pra ir aquecendo. Porque tem mais.

Tem a questão do local. Como se não bastasse ser remotíssimo, com todo o problema de mobilidade que um GP de Fórmula 1 pode causar a um centro urbano, o terreno de Deodoro é basicamente uma ilha de vegetação nativa no subúrbio do Rio de Janeiro. Uma… FLORESTA, com 200 mil árvores. Tem até nome: Floresta do Camboatá. É o último resquício de Mata Atlântica em área plana em todo o Rio, um refúgio de pássaros. Essa floresta, óbvio, precisa ser aniquilada para caber um autódromo nela.

Precisa ir muito longe para dizer que a questão ambiental, se for aprovada, vai ser de uma excrecência gigantesca?

Mas tem mais, tudo que é ruim pode piorar. Tem a parte, digamos, empresarial.

Que tal formar uma empresa às pressas, com capital declarado de 100 mil reais (valor de um mero Corolla zero), para ganhar sozinho uma licitação que prevê um orçamento de construção de autódromo de… R$ 697 milhões?

Este é o nascimento da Rio Motorpark, empresa que não apenas tem que construir, como sediar e organizar um futuro GP do Brasil de F1 – com proposta de R$ 65 milhões pela prova, enquanto os organizadores de Interlagos “só” oferecem R$ 20 mi.

Seu frente é o empresário José Antonio Soares Pereira Júnior, o JR Pereira. Como histórico de sucesso, a presidência de uma empresa chamada Crown Telecom que faliu e deixou um rombo de R$ 24,7 milhões na dívida ativa com a União – com uma dívida pessoa física na mesma esfera de R$ 85,5 mil. A massa falida ainda tem 20 processos trabalhistas. Que trabalho!

Mais: essa Crown esteve envolvida a doações um tanto obscuras a certo Delúbio Soares, ex-tesoureiro de partido, fato revelado pela Lava Jato, bem como recebimento, a pedido de Delúbio, de dinheiro proveniente da agência SMP&B, de certo Marcos Valério.

Mas não é só de passado torto que vive a formação da Rio Motorpark.

Assim que os organizações Globo (SporTV) deixaram de renovar os direitos da MotoGP com a Dorna, o grupo comprou os direitos para repassá-los ao Fox Sports. Só que rolou um… calote com a Dorna. A Fox teve que assumir a dívida dos direitos para manter a transmissão.

Pois a Rio Motorpark acaba de conseguir os direitos da F1 por 5 anos, nos mesmos moldes que assinou com a Dorna pra MotoGP, após as fracassadas tentativas de continuidade com a Globo.

Mais alguma coisa? Parece que não tem fim, né?

O frente JR Pereira foi ligado a esquemas pouco ou nada republicanos, com ligação direta a Rafael Alves, que ganhou status de “chefe do QG da propina da Prefeitura do Rio”.

Com tudo isso à luz, vocês contam ou eu conto pra Chase Carey o que vai acontecer?

 

Abração!

 

Lucas Giavoni

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

5 Comments

  1. Fernando marques disse:

    Me desculpem por trocar o Lucas pelo JCViana noeu comentário

    Fernando Marques

  2. Fernando marques disse:

    O que ninguém pode questionar é que Hamilton conquistou uma marca histórica.
    E que tão mais histórica será a marca das 100 vitórias.
    Não se pode também questionar e nem desmerecer foi o trabalho que Hamilton e a Mercedes fizeram para chegar a está marca. Ela não foi alcançada a toa.
    E pelo visto, esse lado da questão não vem sendo levada em consideração .
    JC Viana sempre nos brinda com excelentes textos. Este último não fone a regra.
    Mas lamento que a marca alcançada pelo Hamilton não tenha recebido o merecido destaque pelo o que ela representa.
    A meu ver o GP total deveria ter feito uma coluna tão histórica quanto foi as 91 vitórias.

  3. Rubergil Jr disse:

    Muito bom o texto Lucas. Especialmente seus comentários sobre o autódromo do Rio.

  4. Wladimir disse:

    Boa tarde, Lucas.

    Entre os multi campeões da moto velocidade é um pecado deixar de mencionar Giacomo Agostini e Michael Doohan. E não deixe de lado a publicação da sexta parte de Wing wars.

  5. MarcioD disse:

    Desde que Hamilton apareceu na F1 em 2007 podia-se notar que se tratava de um fora de serie, porque sendo estreante na F1 ganhou na mesma equipe de Alonso, um bicampeão no auge, novo, que havia acabado de derrotar Schumacher. Por pouco, muito pouco conseguiu algo inédito nestes 70 anos de Formula 1: ser campeão na estreia(sem contar evidentemente o próprio Farina)

    É um piloto muito rápido, arrojado, habilidoso, inteligente, muito constante, sabe poupar equipamento, que comete poucos erros e um dos melhores que já vi atuar na chuva. Além do mais está no lugar certo na hora certa.

    Schumacher teve seu favor toda equipe trabalhando a favor dele (trouxe os principais da Benetton), além de 2ºs pilotos bem mais fracos e subservientes que os que Hamilton teve e adversários externos de menor potencial no seu auge(94-06) quando comparados aos de Hamilton. Jamais a Ferrari permitiria brigas internas como Hamilton x Alonso x Button x Rosberg x Bottas. Hamilton tem a seu favor principalmente uma Mercedes quase imbatível e inquebrável e que estabeleceu uma hegemonia jamais vista.

    Contudo não vejo graça nestes multicampeões sequenciais que proliferaram no esporte a motor notadamente a partir dos anos 2000 tais como o próprio Hamilton, Vettel, Schumacher(apesar dele já ter 2 títulos em 94-95 o seu auge foi nos anos 2000), Valentino Rossi, Marc Marquez, Sébastien Loeb, Sébastien Ogier e Jimmie Johnson. Por quê? Porque a maior parte deles aliou o seu imenso talento a uma superioridade de equipamento, que combinada a privilégios dentro das suas equipes acabou com a competitividade em seus respectivos esportes tornando-os chatos, exceto para seus admiradores.

    Acho muito mais interessante para o esporte um cara como o tricampeão Jackie Stewart que conquistou 3 títulos alternados, sem contar com grandes facilidades, mas que ainda detém o recorde de 27 vitorias em 99 GP’s, uma marca que já dura 47 anos.

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