Do destino ninguém foge

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O destino sempre acaba achando um jeito de nos encontrar no momento estabelecido.

Segundo um velho conto árabe, na antiga Bagdá havia um rico comerciante que, certo dia, envia seu fiel servente ao mercado fazer umas compras. Enquanto cumpria a encomenda, o servente vê ao longe, entre a multidão, uma mulher totalmente vestida de negro que lhe chama muito a atenção, e começa a segui-la. Estando já bem próximo a ela, esta se vira e os dois se vem frente a frente, momento em que o servente se assusta e sai correndo de volta para casa.

Aterrorizado e quase sem fôlego, o rapaz lhe suplica a seu senhor que lhe empreste um de seus cavalos. Surpreendido, este lhe pergunta o que acontecia e o servente lhe conta que havia visto a morte no mercado, e que esta lhe havia olhado de forma ameaçadora. Assim, precisava do cavalo para fugir e se esconder na casa de uns familiares que moravam na cidade de Samarra.

O senhor, vendo seu servente tão aflito… cede. Porém, intrigado com a história, decide ir ao mercado para ver se podia encontrar a tal mulher. Efetivamente, o senhor, pela descrição de seu servente, encontra a mulher e lhe pergunta porque havia assustado o rapaz. A mulher, de fato, lhe confirma que era a morte, mas nega haver feito nada para assustar o servente, para continuar dizendo que apenas se havia surpreendido de vê-lo aquela manha no mercado, pois tudo estava disposto para que se encontrassem à noite em Samarra.

Este conto nos recorda como tudo na vida parece estar já bem disposto e que, apesar do que façamos, tudo seguirá seu próprio curso e os acontecimentos serão os que estavam estabelecidos. Não conhecemos o futuro, e muito menos as consequências que podem se derivar de nossos atos. Só contamos com nossas boas intenções, mas estas nem sempre são suficientes.

Na Fórmula 1 temos alguns exemplos de como o que é feito em prol da segurança, em ocasiões, acaba rendendo os resultados mais inesperados. Em ocasiões, a segurança de uns se consegue a custa da de outros, apesar das boas intenções iniciais.

Em 1975, o GP da Espanha se disputaria no difícil circuito de Montjuic. Porem, os pilotos tinham muitas reticências respeito à sua segurança e, com Emerson Fittipaldi liderando seus companheiros, estes se queixam das deficiências observadas e inclusive ameaçam não participar (Fittipaldi, finalmente, não participaria).

Eu mesmo escrevi uma coluna sobre aquele GP, portanto não vou me estender agora. O caso é que os guard rails, no trecho em descida que ia desde a “rasante” até a curva do ângulo e a petição dos pilotos, haviam sido bem reforçados para resistir um possível choque e impedir que algum carro pudesse se incrustar neles. Durante a corrida, na volta 26, com Rolf Stommelen na liderança e sob o constante acosso de Carlos Pace, quando ambos chegam na “rasante”, o aerofólio traseiro do Hill GH-1 de Stommelen não resiste a pressão e é arrancado subitamente, deixando o carro ingovernável.

Assim, Stommelen se arrebenta com violência naqueles guardrails, mas estes resistem o choque. Porém, o carro sai dali ricocheteado iniciando um voo em direção ao ângulo, onde havia um posto de assistência. O carro passa por cima dos guard rails, atravessa a alambrada e se precipita sobre o pessoal que havia lá. Quando o carro parou, haviam 4 pessoas mortas e uma dúzia de feridos. Stommelen, com varias fraturas e contusões… se salvou. Os guard rails, haviam cumprido sua missão, ainda que a um alto e imprevisto custo.

Outro exemplo de como a preocupação pela segurança de uns tem resultados adversos sobre outros aconteceu em Imola. Com vistas a acolher o GP da Itália alternativamente com Monza, em 1979 se disputa uma corrida extra campeonato em Imola, para comprovar se o circuito era apto para a formula 1. O circuito havia sido objeto de varias melhoras, ainda que mantinha o traçado original. A prova se disputa sem incidentes, sendo a vitória para Niki Lauda com seu Brabham-Alfa Romeo.

Deste modo, com a aprovação conseguida, Imola sediaria o GP da Itália de 1980, pois Monza estava submetida a reformas para melhorar sua segurança. Por terceira vez consecutiva na temporada, René Arnoux partia desde a pole, ainda que a vitória final seria para Nelson Piquet. O único destacável daquele fim de semana seriam os acidentes de Jody Scheckter durante os treinamentos e o de Gilles Villeneuve durante a corrida. Ambos aconteceram, na ligeira curva (ou poderíamos dizer inflexão) à direita que antecede a curva de Tosa, e acabaram batendo no muro do exterior mas, apesar de espetaculares, os acidentes não tiveram nenhuma consequência para os pilotos.

O caso de Villeneuve parecia mais sério, a julgar pelas imagens do acidente, mas o canadense saiu ileso. Ao tomar a inflexão na quinta volta, Gilles, como era habitual nele, ataca as altas zebras com decisão provocando o estouro do pneu traseiro. Sem controle, o carro cruza a pista e se arrebenta no muro do exterior, contudo, com um ângulo bastante agudo e numa posição traseiro-lateral.

httpv://youtu.be/JvMt7Andylk

Para 1981, Imola passaria a sediar o GP de San Marino e, com a experiência das provas anteriores, algumas modificações são feita para aumentar a segurança (ex. uma chicane na curva “Aqua Minerale”). Em 1982, veríamos a disputa (e mal entendido) entre Gilles e Pironi, e que seria a última corrida do canadense, quem perderia a vida nos treinamentos do GP da Bélgica. Nos prolegômenos do GP de 1983, e em memória de Gilles Villeneuve, se erige um monumento no lugar daquele seu acidente na inflexão, que passa a ser chamada “curva Villeneuve” desde então.

Os GPs se sucederiam sem incidentes e, em 1985, os proprietários do circuito decidem que já era hora de organizar provas de motociclismo, numa tentativa de rememorar os gloriosos tempos da competição das duas rodas, que se haviam celebrado com bastante sucesso no circuito entre os anos 50 e 70. Em 1956, e pilotando uma Norton-Max, até havia participado numa daquelas corridas um tal Bernie Ecclestone.

Porém, tendo em mente os acidentes de Scheckter e Villeneuve, na curva dedicada a Gilles se decide construir uma chicane à direita, além de elevar as zebras, para obrigar os pilotos a reduzir a velocidade nesse ponto, pois uma batida no muro, como a de Gilles, seria fatal para um motociclista.

Em 1988, Imola abrigaria um GP do campeonato mundial de motociclismo: O GP das Nações. Seria aquela a única ocasião, pois o GP passaria a ser disputado no circuito de Mugello a partir do ano seguinte. Assim, aquela chicane construída para proteger a integridade dos pilotos de moto, foi caindo no esquecimento.

httpv://youtu.be/JuRAF52OmWQ

Os anos passam e chegamos a 1994, quando um novo GP de San Marino esta prestes a se disputar. O austríaco Roland Ratzemberger, debutante no campeonato, estava decidido a conseguir um lugar no grid, pois seu começo de temporada não havia sido bom e outra decepção poderia ser o fim de sua carreira na F1.

Assim, na segunda sessão de treinamentos, Roland estava dando o máximo quando sofre uma pequena saída de pista na curva Tossa, da que consegue se recuperar e vai para uma nova volta com tudo. Ao se aproximar da curva Villeneuve, o trecho onde se alcançavam as maiores velocidades do circuito (mais de 300 km/h), uma peça de seu aerofólio dianteiro se desprende (possivelmente havia sido danificado em sua saída de pista na volta anterior) e Roland não consegue manter a traçada natural da curva, indo direto àquela esquecida chicane.

Ao passar por suas altas zebras, estas atuando como uma verdadeira rampa de lançamento, fazem que o carro empreenda um voo de cerca de 30 metros em direção ao muro do exterior da curva, onde seu Simtek se arrebenta com violência numa posição fronto-lateral que provocaria em Roland gravíssimas lesões cervicais que lhe causariam a morte instantaneamente.

httpv://youtu.be/Ev0anvC6_xg

As boas intenções daquele comerciante ao emprestar a seu criado um cavalo para que pudesse fugir, apenas lhe proporcionaram ao rapaz o meio de chegar a tempo ao seu encontro com a morte. Assim mesmo, as preocupações por melhorar a segurança dos pilotos em Montjuic, acabaram custando a vida de 3 fiscais e um fotógrafo, enquanto que aquela chicane na curva Villeneuve de Imola, cuja missão era a de proteger os motociclistas, resultou fatal para Ratzemberger.

Assim, se confirma que o destino sempre acaba achando um jeito de nos encontrar no momento estabelecido, ainda que para isso tenha de recorrer às formas mais inesperadas, pois… do destino, ninguém foge!

Manuel Blanco
Manuel Blanco
Desenhista/Projetista, acompanha a formula 1 desde os tempos de Fittipaldi É um saudoso da categoria em seus anos 70 e 80. Atualmente mora em Valência (ESP)

6 Comments

  1. Fabiano Bastos disse:

    Manuel,
    Se o Bernie receber cópia da tua coluna vai chorar de emoção e transformá-la num mantra (bem longo por sinal).
    Brincadeiras a parte, lógico que passos na direção da segurança devem ser medidos e tomados com a cautela necessária para que realmente se avance na direção correta, mas não engoli nenhuma das razões apresentadas até hoje para a não adoção de uma cobertura para o cockpit.
    Cito duas das mais “fortes” utilizadas:
    1) o canopy pode lançar objetos contra os espectadores?
    Mas outras partes do carro também podem, existem outras corridas com cabines fechadas e não vemos uma chuva de detritos nos espectadores.
    2) vai atrasar a saída do piloto do cockpit em caso de acidente?
    Hoje, para sair de um carro de F1 o piloto já precisa retirar a proteção lateral de cabeça. O que impede que o canopy seja retirado juntamente com esta proteção? Ah, e caso o piloto fique preso em um carro capotado? Quantos pilotos teriam perdido a vida por uma situação como esta descrita nos últimos 25 anos? E quantos morreram por lesões na cabeça? Não tenho dados para fazer esta conta, mas a memória me faz crer que vale a pena arriscar cobrir os cockpits.
    Mas parece que vão continuar culpando o destino, como se não pudessem traçar um diferente. Pois os pilotos parecem não aceitar a ideia.
    [youtube http://www.youtube.com/watch?v=e87HIlOIYFA&w=560&h=315%5D
    Grande abraço!

    • Fabiano Bastos disse:

      Complementando a informação sobre o lançamento de detritos sobre os espectadores, vale a pena ver novamente o vídeo do acidente que vitimou Justin Wilson e ver como o bico do carro que atingiu seu capacete foi lançado longe. Sendo assim, a inexistência de cobertura no cockpit não garante a segurança dos espectadores.

    • Manuel disse:

      Oi Fabiano, tudo bem ?

      Concordo contigo em que essas razoes que você expoe para a nao adoçao da cúpula protetora adolecem de pouco fundamento. Contudo ( e talvez devido a que sou um aficionado da “velha guarda” ) me parece que a tal cúpula desnaruralizaria a formula 1. Em 1969, se apresentou o Ferrari Sigma como um modelo para aumentar a segurança e evitar, principalmente, que as rodas dos carros se enganchassem entre si, mas a idéia foi logo descartada, precisamente, por corromper a filosofia da formula 1 que sempre foi a de ser uma categoria ” Open Wheel ” ( rodas expostas ).

      No que a mim respeita, eu proibiria o uso de materias susceptiveis de se desintegrar, como acontece com as atuais fibras com as que se fabricam os carros. Naquele acidente de Stommelen em Montijuic, apesar de sua violência, o carro se manteve bastante integro ( ainda que, logicamente, todo amassado ), mas nao vimos rodas voando pelos ares, nem uma chuca de detritos cobrindo a pista.

      Enquanto à facilidade com a que o piloto possa sair do carro, ainda que importante, me parece que é ainda mais importante que, no caso de que essa saida nao seja rápida, nada pior do que o próprio acidente inicial lhe possa ocorrer até a chegada da equipe de resgate e médica. No acidente de Berger na Tamburello, em lmola, o austriaco nao saiu do cockpit, mas os bombeiros atuaram com tanta eficiência na hora de extinguir o fogo subseqüeinte que, praticamente, nada lhe sucedeu. Esse é o tipo de eficiência que deve ser buscada e/ou melhorada constantemente.

      Respeito a que uma dessas cúpulas teria salvado a Bianchi ( como foi dito na época ), temo que nao. Segundo o diagnóstico dos médicos, Bianchi sofreu uma “lesao axonal difusa”, que se produz em situaçoes de forte desaceleraçao. Quer dizer : O cerebro choca contra as paredes interiores do crâneo. Assim, ainda que nao ajam signos exteriores de lesao, devido à proteçao do capacete ( ou de uma eventual cúpula ), nada impede que o cerebro continua a se deslocar no interior da cabeça.

      Portanto, em minha modesta opiniao, creio que o mais peremptório é impedir que os carros se desintegrem ao mais mínimo choque, lançando perigosos pedaços por todas partes. Recordemos que a fibra de carbono nao foi introduzida na formula 1 por motivos de segurança, mas devido a que dotava o chassi de uma maior rigidez. Contudo, temo que acabou se tornando num elemento colateral de perigo que é necessário evitar.

  2. Fernando Marques disse:

    Que belo texto como bem disse o Mauro.

    Também não sabia ou não me lembrava deste detalhe das zebras no acidente do Roland Ratzemberger, principalmente em relação ao voo que seu Simtek deu ao passar pela zebra … aliás esta questão da altura das zebras em Imola era um caso sério … a Jordan do Barrichello também voou quando passou por cima delas naquele fatídico fim de semana …

    E nada como uma boa historia baseada em fatos concretos e comprovados, Manuel é um mestre neste sentido, para nos mostrar como o destino é o dono da razão.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Fernando Marques disse:

      Só complementando meu comentário … a Willians do Senna também de um salto e voou depois de passar nas zebras da Tamburello …

      Fernando Marques

  3. Mauro Santana disse:

    Que texto fantástico Manuel!!!

    Muito bom mesmo.

    Então, eu desconhecia este detalhe do acidente do Ratzberger, pois as imagens que eu sempre vi, me levavam a crer que ele havia seguido reto pela pista até a curva Villeneuve.

    Agora, também lembro que em conversa com meu pai naquela sábado a noite de 30/04/1994 após o programa Sinal Verde, comentamos do por que a F1 não usava aquela chicane das motos, e tal comentário da mesma chicane voltou a tona na reforma que foi feita no circuito após 1994.

    Sempre fui fã da pista de San Marino, mas após a reforma, e claro, dos incidentes fatais, ela perdeu totalmente o seu tempero, pois a sua maior qualidade era justamente o trecho de alta.

    Mas é isso, do destino ninguém foge.

    Abraço!!

    Mauro Santana
    Curitiba-Pr

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