Dois dinamarqueses

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Tudo sobre a última edição das 24 Horas de Le Mans.

– Isto aqui não é loteria. É um esporte de risco profissional. Pode acontecer com todos nós. E pode acontecer várias vezes. (Michael Delaney)

Esta é, em uma tradução livre, a frase em que o personagem de Steve McQueen, do filme Le Mans (1971), descreve o que é um acidente, evento tão presente nas competições automobilísticas.

A frase surpreende por não ficar presa à época em que foi dita e é adequada a qualquer período histórico que se queira abordar. Simplesmente não há piloto que nunca tenha passado por isso. E serve para que façamos uma reflexão sobre os acontecimentos da edição de 90 anos das Horas de Le Mans, disputada neste fim de semana, com destaque para dois pilotos desse pequeno e conhecido país escandinavo chamado Dinamarca.

A Audi conseguiu sua 12ª vitória nos últimos 14 anos. O trio vencedor foi o do R-18 e-tron quattro #2, composto por Tom Kristensen, Allan McNish e Loïc Duval, conjunto que completou as 24 horas de clima instável com 1 giro à frente do Toyota TS030 #8, de Anthony Davidson, Stéphane Sarrazin e Sébastien Buemi.

O Audi, #3 completou o pódio, capitaneado por Lucas di Grassi. Esse carro perdeu preciosos minutos ao ter um pneu traseiro estourado logo no começo de uma volta e arrastar-se até o box. Caso contrário, também poderia ter lutado pela vitória – que finalmente seria a 1ª de um piloto brasileiro na mítica corrida. Di Grassi, pela boa pilotagem, deverá ter outras oportunidades.

Nosso primeiro dinamarquês é Tom Kristensen, 45 anos, vencedor da corrida.

Com um carro de endurance nas mãos, Tom é um grande senhor das pistas. Participa para vencer – e vence. Quando ninguém imaginava ver o espantoso recorde de Jacky Ickx de seis vitórias do Circuit de la Sarthe superado, eis que Tom vence pela nona vez neste fim de semana.

Sua carreira em Le Mans começa em 1997 com vitória com o protótipo Porsche WSC-95 (um sucessor espiritual do 936) da Joest Racing – mesma organização que hoje cuida da esquadra da Audi. Após algumas tentativas pela equipe oficial da BMW, torna-se piloto da marca das quatro argolas em 2000 e emenda seis vitórias seguidas, sendo a de 2003 com o Bentley Speed 8, que era, grosso modo, um Audi R8 de carroceria fechada.

A partir de 2006, a Audi corre com o modelo R10, o primeiro a diesel. Sua conquista seguinte vem apenas em 2008, quando genialmente derrota a esquadra da superior Peugeot sob chuva. Tom já era, à época, um quarentão, vendo todos os colegas de geração, como Biela e Pirro, se aposentarem, e os novos talentos aflorarem. Benoit Tréluyer, discípulo do grande Henri Pescarolo, é atualmente o melhor piloto de endurance do mundo. Forma, junto com Andre Lotterer e Marcel Fassler, o conjunto mais forte de todos, que faturou Le Mans em 2011 e 2012.

Apesar disso, o tempo de Kristensen não passou. Quando o conjunto defensor do título, o Audi #1, apresentou problemas elétricos que exigiram mais de 30 minutos de reparo na 8ª hora, lá estava Kristensen com seus colegas McNish (outro quarentão) e Duval (substituto do aposentado Rinaldo Capello), para tomar a liderança e pilotar brilhantemente, negando à Toyota sua ansiada primeira conquista.

Kristensen dedicou sua vitória ao compatriota Allan Simonsen.

Temos então o outro dinamarquês de nossa história, Allan Simonsen, 34 anos, morto durante a corrida ao colidir na 3ª volta.

Simonsen é o que podemos chamar de gentleman driver. Corria em categorias GT regionais desde 2002. Suas participações em Le Mans vinham desde 2007. Pegou carros como Porsche GT3, Ferrari 430 (com a qual foi vice da categoria em 2010) e 458, além de um ano em que participou com Lola-Mazda na categoria Protótipo 2.

Desde 2012, era piloto da Aston Martin Racing, que com seu modelo Vantage V8 concentra foco nas duas categogias de GT – a Professional e a Amateur, que não distinque carros mas sim conjunto de pilotos, permite compatidores com carreira mais modesta, como Simonsen.

O dimamarquês estava feliz. Certamente tinha em mãos o melhor carro GT, e isso ficou patente pela 1ª colocação no grid para a GT-Pro, conseguida por Bruno Senna, e pela GT-Am, conquistada por Simonsen.

Era sua melhor chance de um bom resultado e a equipe pediu para que começasse o turno com o carro. A partir da 3ª volta, com pouco mais de 10 minutos de corrida, uma garo deixou o trecho norte da pista molhado. Dois carros, um LMP2 e um GT-Pro, rodaram na entrada da curva Tetre Touge, feita para a direita, que desemboca no primeiro trecho do retão Mulsanne. É feita em quarta marcha, e muito importante por deve-se lancer o carro em máxima velocidade para aproveitar a reta.

Um terceiro carro roda em seguida. Ele alarga a trajetória, passa por cima da zebra e então vai para a zona de escape, que é pintada. O carro, ao invés de rodar, chicoteia para a esquerda – certamente a mais de 200 km/h, e dá uma pancada seca frontal no rail de proteção.

A imagem das portas e tampa traseira arrancadas pelo impacto não deixam dúvidas de que a batida foi fortíssima, a despeito do monobloco do carro ter ficado intacto. Simonsen não resiste.

É possível dizer que, apesar de ser o mais competitivo, o Aston Martin também era o carro que demandava mais experiência ao volante. O francês Frederic Makowiecki bateu o Aston de Bruno Senna na madrugada, também em um lance que o carro chicoteou. E ele era o mais inesperiente piloto do carro.

Durante a corrida, a bandeira dinamarquesa foi exibida a meio mastro.

O destaque maior para a história de Kristensen e Simonsen, unidos pela pátria que nasceram, nos servem para lembrar que Le Mans é feito de superpilotos e gentlemen drivers. Dos grandes campeões àqueles que simplesmente amam o esporte e fazem de tudo para participar de algo tão grandioso. Serve para lembrar que Le Mans é feito de diversidade. E que, mesmo diante de tantos cuidados com a segurança, este ainda é um esporte muito perigoso, e exige bravura e estoicismo para quem o pratica.

A família de Simonsen disse aos diretores esportivos da Aston Martin que o time não se retirasse. Que a melhor forma de homenagear o ente morto era continuar na pista e tentar a vitória.

A vitória não veio, mas o espírito de competição continua presente em todos.

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

4 Comments

  1. Allan disse:

    Diferente dos demais, rendi-me ao IPhone 4 e suas maravilhas com uma internet 3G. Consegui acompanhar praticamente a prova inteira – tendo acordado de madrugada no domingo para ver se de fato estaria escuro em Le Mans as 6h local (já que lá as 20h ainda estava bastante claro!). Foi um deleite, ainda que as câmeras do site lemans.tv sejam limitadas a alguns carros e a reta principal. De qualquer forma, e ainda que aceite o risco do automobilismo, Le Mans precisa mudar alguma coisa para que isso não ocorra novamente. Se custaria muito carro a inclusão de soft walls/safer barrier eu não sei, mas ao menos nos pontos mais complicados – como curvas rápidas e frenagens alucinantes – certamente faria bastante diferença. Não precisa mudar o circuito, apenas adequa-lo aos nosso tempos. Até Indianápolis foi adequada, então… E RIP pelo meu xará.

  2. Rubbergil Jr disse:

    Muito tocante esta edição de Le Mans. Assisti uma parte da corrida no domingo 1:00, era a hora do amanhecer lá, coisa mais linda… E vi o final também, e um mix de emoções danado.
    Já prometi a mim mesmo que eu ver uma edição de Le Mans ao vivo.

  3. Mauro Santana disse:

    Bela coluna amigo Lucas

    Acompanhei a largada(duas primeiras horas) e a chega(duas ultimas horas) pelo SportTV, e acredito que muitos devam ter feito o mesmo.

    Realmente foi uma corrida diferente, e fiquei emocionado com as palavras da lenda Jacky Ickx no pódio.

    Minha esposa estava assistindo comigo as primeiras duas horas no sábado, e ficou chocada quando à informei da morte do dinamarquês Allan Simonsen na noite do mesmo sábado.

    Nós amantes das corridas de esporte a motor sabemos que o show tem que continuar, mas que quando uma fatalidade ocorre, a famosa pergunta sempre volta a soar:

    “Vale a pena continuar amando as corridas de esporte a motor?”

    Abraço a todos!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  4. Fernando Marques disse:

    Em Le Mans sempre acontece essas fatalidades … ao contrario não é Le Mans… é triste … faz parte do risco …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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