Evento peculiar

Pace em Le Mans
16/06/2017
Uma nova batalha
23/06/2017

O ano era 1965. Aquela Ferrari 250LM #21 da equipe Nart estava encostada nos boxes, enquanto os mecânicos, que já tinham trocado o motor de partida, corriam freneticamente para trocar o distribuidor, já que apenas 6 dos 12 cilindros do carro estavam funcionando. Era só a terceira hora de corrida…

Masten Gregory, um piloto americano baixinho, destemido e muito míope, procurava seu parceiro de corrida, um cara de 23 anos chamado Jochen Rindt. O alcançou no estacionamento, pronto para ir embora pra casa.

– Jochen, o que você está fazendo?
– Já tivemos nossa corrida. Não dá pra vencer.
– Está doido? Só é impossível se tivermos mais algum problema. Le Mans é um evento peculiar. Perder dez voltas não significa nada.

Masten, claro, estava de papo-furado, e ambos sabiam isto. A 250LM que pilotavam era um patinho feio, descartada pela própria Ferrari assim que Enzo Ferrari não conseguiu convencer os organismos de corrida que se tratava de um GT – o carro acabou sendo classificado como Protótipo, e vendido a particulares. Era um modelo bastante manhoso, de motor traseiro e suspensão independente. Podia ser mais rápida que aquelas fantásticas 250 GTO de entreeixo longo, mas longe de ter a mesma dirigibilidade.

Como se não bastasse ser bastante inferior aos protótipos de nova geração da equipe de fábrica da Ferrari, a concorrência também era composta por meia dúzia de temíveis Ford GT40 que faziam parte do um programa milionário da marca americana para derrotar a Ferrari naquela corrida.

Diante da situação, Masten e Jochen fizeram um pacto. Assim que o carro estivesse consertado, pisariam fundo, sem compromisso, quase que apenas por diversão. Se quebrar, quebrou – afinal, era o mais óbvio a acontecer. E se chegar, chegou. Eles voltaram para a pista em 18º lugar.

Pulemos pra 2017. Aquele Porsche 919 Hybrid #2, depois de ter liberado uma estranha fumaça em uma reaceleração, foi conduzido cuidadosamente aos boxes, onde os mecânicos constataram a quebra de um dos eixos dianteiros que se conectava com os motores elétricos do sistema híbrido. Todo o conjunto composto por eixo, braços de suspensão, freio e cubo de roda, teria que ser trocado. Era só a terceira hora de corrida.

Contra um Porsche 919 idêntico e três carros Toyota TS050 Hybrid que já mostravam um ritmo de prova superior, Timo Bernhard, Brendon Hartley e Earl Bamber teriam que voltar à pista com 18 voltas de desvantagem, partindo da desoladora 57ª colocação, última posição da pista que teve um grid de 60 carros.

Quem diria que este carro venceria a corrida? Pois venceram, negando a vitória a um carro da categoria LMP2 #38 cujo dono era… Jackie Chan! Sim, aquele mesmo, o chinês dos filmes de artes marciais divertidas.

Depois da traumática derrota do ano passado, a Toyota ampliou seus esforços e inscreveu três carros. A bordo do #7, Kamui Kobayashi marcou uma pole com direito a quebra de recorde do circuito. Este carro alternou a liderança com seu irmão #8 nas horas iniciais, que foram de pouca movimentação.

Como já mencionado, o Porsche #2 teve problemas de eixo dianteiro muito cedo, e foi o primeiro a ser ‘descartado’ da vitória. Mas havia muito ainda o que acontecer. O Toyota #8 teve um enorme contratempo quando todo o motor elétrico dianteiro entrou em colapso. O time perdeu 30 voltas para substituir a unidade de força, e o trio formado por Buemi / Davidson / Nakajima – o mesmo que perdeu ano passado na última volta – acabou fechando a corrida na 9º colocação geral, com um prejuízo final de 9 voltas.

Mas havia mais problemas para a Toyota. Problemas estes que nos fazem cada vez mais acreditar que existe uma maldição que envolve a marca japonesa e que não permite que eles conquistem a ansiada vitória na prova. Talvez os requintes de crueldade tenham alcançado patamar máximo ano passado, mas os infortúnios desse ano não fizeram feio não.

Na décima hora, o Toyota #7 de Conway / Kobayashi / Sarrazin, que liderava, teve uma falha fatal na embreagem. O azar é tanto que o carro apresentou o problema justamente na entrada da reta dos boxes, tornando impossível um retorno aos pits numa pista de 13 quilômetros. Se o problema ocorresse meros 350 metros antes, na tomada das chicanes Ford, seria possível entrar nos boxes no embalo e os mecânicos conseguiriam resolver…

E numa questão de MINUTOS, o Toyota #9 de López / Lapierre / Kunimoto também teve que abandonar por um toque no protótipo #25 da P2. O choque em si não foi forte, mas um pneu explodiu de tal forma que provocou danos irreparáveis na porção traseira esquerda do carro.

Mais uma vez não foi possível executar um retorno aos boxes. Por quê? Porque o toque ocorreu logo na primeira chicane, a Dunlop – mais uma vez era uma questão de enfrentar 13 quilômetros para conseguir chegar, algo que jamais aconteceria.

A corrida caía então no colo do Porsche #1, que adotaria dali em diante um ritmo de velha reumática para chegar até o final. Afinal, eles tinham 9 voltas de vantagem para o segundo colocado da ocasião, o Oreca #31 da Rebellion, categoria P2, de Bruno Senna, Nicolas Prost e Julien Canal – um carro que andava, em média, 10s mais lento por volta.

A essa altura, ao fim das 10 primeiras horas, o Porsche #2 estava em 21º, com 19 voltas de atraso.

Confesso que, depois disso, perdi totalmente o interesse. Eu, que costumo acompanhar todas as 24 horas da prova, fui dormir. Mas, por via das dúvidas, deixei o notebook aberto ao lado da cama.

Ainda bem que fiz isso.

Acordei, do nada, 6:40 da manhã. Olho no computador e tomo um enorme susto ao perceber que aquele Porsche #1, que não tinha como perder… estava perdendo! A pressão do óleo despencou de uma só vez e fez o motor apagar. André Lotterer, melhor piloto de endurance do mundo na atualidade, não tinha o que fazer senão encostar na área de escape. Ele e seus companheiros Nick Tandy e Neel Jani estavam fora da prova.

Eis que surge Jackie Chan na liderança. Soa muito estranho falar isso, mas o astro das artes marciais cinematográficas inscreveu dois carros de P2, em parceria com a DC Racing. E um deles, o #38, do trio Ho-Pin Tung / Thomas Laurent / Oliver Jarvis acabava de herdar o comando da corrida, faltando três horas e meia para a bandeirada.

Foi uma situação tão doida que, se me contassem o que estava acontecendo, eu não acreditaria. Aquele Porsche #2 estava três voltas atrás do novo líder. Mas eu ainda estava ainda meio grogue de sono, de modo que eu não estava em condições mentais de pegar papel, caneta e calculadora pra fazer a matemática.

A ultrapassagem, que negou que houvesse a maior zebra da história da corrida desde a manhosa vitória da Mazda em 1991, aconteceu exatos 67 minutos antes da bandeirada.

Ao zerar o cronômetro, o Porsche #2 vencia pela apertada margem de 1 volta de vantagem para o Oreca #38 do Jackie Chan. E o Rebellion #13 com Nelsinho Piquet / Matias Beche / David Hansson cruzava em 3º lugar, numa improvável presença brasileira no pódio geral da corrida. Duas posições atrás chegou o Alpine P2 de André Negrão.

Mesmo tendo perdido a liderança geral, Jackie Chan ficou eufórico com o desempenho de sua equipe, e comparou o segundo lugar geral e vitória na P2 a receber um Oscar.

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Essa presença brasileira foi bastante numerosa, a ponto de ser vitoriosa na categoria GT-Pro: o Aston Martin #97 de Darren Turner / Jonathan Adam / Daniel Serra ultrapassou o Corvette #63 na abertura da última volta. O carro americano, que vinha sendo pressionado, acabou saindo da pista e teve um pneu furado. Isso permitiu que o Ford GT #67 com o também brasileiro Pipo Derani chegasse em segundo. Em outro Ford, Tony Kanaan fez sua estreia em Le Mans chegando em 6º na categoria, 23º geral.

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Aplausos também para Rubens Barrichello, que mesmo a bordo de um carro P2 pouco competitivo, conseguiu terminar a corrida; para Fernando Rees, que marcou a pole da categoria GT-Am com um Corvette; e para Bruno Senna, outro piloto Rebellion e que, apesar de alguns atrasos, também alcançou a quadriculada.

Há diversas formas distintas de encarar o que aconteceu em Le Mans este ano. Inicialmente, há a constatação óbvia que são poucos os carros de LMP1 na pista, e isso ajudou a quase termos uma zebra absolutamente incrível. A categoria só tinha dois Porsches, três Toyotas e um CLM da equipe independente Kolles, que foi o primeiro a abandonar, com problemas no motor – que não é híbrido.

Esse problema foi agravado este ano com a retirada da Audi, e a recusa desta, em março, em ceder seus protótipos para que Roger Penske fizesse uma inscrição privada na corrida desse ano. Muita gente ficou fula da vida com a Audi por essa mesquinhez, incluindo este que vos escreve. Dando um pouco de asas à imaginação, se um carro desses passasse 24 horas sem ter problemas, acabaria ganhando a corrida este ano.

Para tentar sanar esse problema, A FIA e a Wec já liberaram o regulamento de 2020, tentando atrair mais marcas, sobretudo a Peugeot, que caiu fora da endurance ao fim de 2012.

Ao mesmo tempo, temos que nos render à velocidade desses carros. O Porsche #2, no momento em que o #1 abandonou, estava três voltas atrás do carro #38 da equipe do Jackie Chan. Eles simplesmente engoliram essa distância e pegaram a liderança ainda antes da entrada da hora final.

Diferentemente das edições anteriores, o vencedor apresentou um grave problema mecânico e perdeu várias voltas na garagem até ser consertado. Há muito tempo isso não acontecia em Le Mans – pra ser sincero, nem sei a última vez que isso aconteceu. As edições mais recentes foram marcadas por vitórias de carros que cruzaram as 24 horas sem mostrar problemas graves – no máximo, um furo de pneu.

Esta edição 2017 foi mais um exemplo de quanto o ‘fator quebra’ deve fazer parte do esporte a motor e que não apenas pilotos, como o equipamento também tem que ser colocado em seu limite.

Os contratempos de todos os carros LMP1 acabou dando contornos dramáticos à edição, e provam que o domínio da tecnologia híbrida ainda é um caminho a ser percorrido – e que esperamos dar frutos para os carros de rua num futuro breve.

Se hoje em dia um Prius já faz 17 quilômetros com um litro de gasolina, imagina quando a Toyota fizer um “upgrade” no modelo com a tecnologia atual de Le Mans…

De volta a 1965, Jochen e Masten retornaram à pista. Aceleraram sem compromisso, como haviam combinado. E aos poucos, foram testemunhando a quebra ou o atraso de todos os principais concorrentes da Ferrari e da Ford.

Quando deram por si, já estavam em segundo lugar com apenas 12 horas de corrida. E finalmente assumiram a ponta na 20ª hora quando um carro idêntico ao deles, da escuderia belga, pintado em amarelo, teve um furo de pneu em plena Mulsanne, o que danificou a tampa traseira e demandou demorados reparos. E eles acabaram dando à Ferrari uma improvável vitória, a sua última da marca em Le Mans.

Masten Gregory, mesmo diante de toda aquela conversa mole pra convencer Jochen Rindt a não ir pra casa mais cedo, acabou acertando na mosca: Le Mans é, de fato, um evento peculiar.

Abração!

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

5 Comments

  1. MarcioD disse:

    Lucas,

    Ótima a sua analise de Le Mans 2017, assim como o paralelo com a edição de 1965. Acredito eu que nunca houve um carro que estando na 57ª posição venceu a corrida.

    Realmente podemos dizer que Le Mans é um quintal da Porsche, 19ª vitoria na geral em 85 edições, mais de 22% e isto sem levar em conta que eles começaram a participar muito depois de 1923, já na década de 50, ficaram sem competir por um bom tempo na era de domínio da Audi e muitas vezes competindo sem estar na categoria principal. Em particular sou admirador deles desde a época do 917.

    Assisti as 3 partes da corrida que foram televisionadas e confesso que em todas elas fui pego de surpresa e errei nas minhas previsões quanto á vitoria. E digo mais a imprevisibilidade é uma das coisas mais legais do automobilismo e confesso que mesmo sendo um admirador da Porsche, no final estava torcendo pela vitória de um P2, especialmente os pilotados pelo Nelsinho ou pelo Bruno. Seria um soco no estomago desta tecnologia hibrida dos P1.

    Faço minhas as palavras do Rubergil com relação aos Híbridos da P1 sem tirar uma virgula.
    A FIA precisa repensar urgentemente isto ai, pois só a Toyota tinha a metade dos P1 na pista, saudades do Grupo C dos anos 80. Mais fábricas poderiam entrar na disputa e com esta tecnologia hibrida complexa, cara, que acrescenta peso aos carros e com muitos pontos onde podem surgir problemas, se torna difícil a participação delas.

    E fomos brindados ao final com uma disputa eletrizante de Aston x Corvette com direito a toques laterais e isto em uma corrida de 24h! Muito disputada esta categoria GTE Pro.

    E a que ponto chegou o artificialismo do automobilismo atual , me lembro que no passado se preparavam os motores de por exemplo, Ferraris 365 GTB Daytona e Corvettes, para alcançarem potência muito maior que o original de rua e colocavam para correr em Le Mans. Hoje a Ferrari 488 GTB de rua tem 670cv e as que são colocadas para correr lá tem 485 cv!! São 185 cv a menos, com uma velocidade final em Le Mans abaixo dos 300 Km/h, tudo por causa de um tal de BOP……..
    Os P1 de de 1000 cv tem uma velocidade final em Le Mans abaixo dos P2 de 600 cv …………
    E os motores dos P2 são todos de um fabricante só………..
    Inimaginável anos atrás que iriamos ver acontecer estas coisas no automobilismo do futuro.

    Márcio

  2. Fernando Marques disse:

    Amigos,

    nem tive como tentar ver um pouco das 24 Horas de Le Mans …
    O Lucas contou muito bem a história da corrida em 2017 … ainda mais lembrando a vitória da Ferrari em 1965 como parâmetro do que aconteceu este ano …
    Legal ver os brasileiros brilhando nas pistas e nos pódios …
    E fica aqui como registro que Nelsinho Piquet é o melhor piloto brasileiro da atualidade … ele anda bem em tudo quanto é categoria … e não tenho dúvidas que se ele tivesse mais uma chance na Formula 1 certamente iria brilhar também …
    Assino embaixo o comentário do Rubergil … os custos estão por demais exagerados … precisamos ter um freio nisso para podermos ter equilíbrio de novo nas disputas das corridas …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  3. Rodrigo Felix disse:

    Grande Lucas, não tem como não ser fã de suas colunas!
    Compartilhamos a mesma situação: também não tive ânimo para acompanhar assim que o Porsche #1 estava na liderança, e ao chegar do trabalho vi que o mesmo havia acabado de encostar! Incrível como a máxima de que “só termina quando acaba” se aplica cruelmente a esta prova.
    Em tempo: a Toyota vencerá ainda?

  4. Mauro Santana disse:

    Grande Lucas!!!

    Essa edição de 2017 foi com altos e baixos, e eu também fui dormir desanimado com a prova.

    Porém, quando lhe mandei msg antes das 07h00, e você me colocou a par do que estava acontecendo, a empolgação voltou, e sim, tivemos um final de prova muito legal, principalmente na categoria GT.

    Mas, se por um lado a falta de mais lmp1 no grid pode nos proporcionar momentos de “zebra”, por outro lado deixa o espetáculo um pouco “pobre”, pois estes carros da principal categoria possuem embarcados o que de principal existe no momento em termos, e isso é muito importante, tanto para o público, quanto para as montadoras, mesmo que os valores a serem gastos sejam a níveis orbitais.

    E está edição de 65 foi show, valeu a pena relembrar aqui.

    Grande abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba PR

  5. Rubergil Jr. disse:

    Que corrida meu caro Lucas. E estava também ansioso por sua coluna e análise, muito boa como sempre. O F5 do meu teclado comeu solto nesta segunda aqui no GPTotal…

    Alguns pontos a acrescentar:

    A desclassificação do Rebellion #13 acabou tornando a vitória da Jackie Chan em uma dobradinha. E o Negrão passou a terceiro na LMP2.

    Lamentável mesmo termos apenas 5 (ByKolles não conta) carros na LMP1. Faz muita falta uma terceira marca. E mais: será que não está na hora de rever esta complexidade de motores híbridos? Eu tenho algumas dúvidas se o futuro do automóvel passa por aí, e pior, com o alto custo, apenas as grandes marcas têm condição de bancar essa brincadeira. Sim, sempre foi assim no automobilismo, mas começa a ficar exagerado, e na F1 a coisa está ainda pior. Outra: a diferença de rendimento dos LMP1 para o resto é muito grande. Uma leve equalizada seria interessante.

    Por fim, apenas um requinte de crueldade na maldição da Toyota: saiu uma notícia de que um sinal de positivo de um piloto foi entendido pelo Kobayashi como uma aprovação para voltar à pista quando os pits estavam fechados. Aí a equipe avisou do erro, ele teve que parar o carro repentinamente e foi aí que a embreagem “cozinhou”.
    http://grandepremio.uol.com.br/endurance/noticias/video-gesto-de-piloto-confunde-kobayashi-e-contribui-para-quebra-que-tirou-vitoria-da-toyota-em-le-mans

    Até incentivo de colegas vira praga nessa maldição da Toyota. Eu não acreditei quando os 2 carros abandonaram de uma só vez…

    Abraços!

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