Ferrari diz a que veio

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A F1 de hoje não tem propriamente um motor.

Tem 3 unidades de potência, operando em conjunto.

É a primeira vez que isso ocorre no mundo do automobilismo de alta tecnologia?

Para responder isso é preciso voltar a 1935.

A Alfa Romeo tinha se destacado na categoria Grand Prix, antecessora pré-2a. Guerra da F1, sob o regulamento conhecido como Formula 750kg.

Com o advento da “Formula Libre”, passou a valer tudo e as montadoras alemãs Mercedes-Benz e Auto Union investiram pesado, criando os carros de competição mais poderosos da época.

A Mercedes W25B, com um motor de 3,9L entregava 430 bhp e a Auto Union Tipo A, com  um motor de 4,9L entregava 375 bhp.

Sabendo que Hitler tinha assumido o poder em 1933 e um dos pilares de sua plataforma política era “Deutschland über alles” (Alemanha sobre todas as coisas), era natural que ambas tivessem algum tipo de amparo, oficial ou oficioso. Tudo que pudesse provar a superioridade ariana estava valendo.

As Alfa P3, tão vitoriosas antes com seus 3.1L e 270 bhp, não seriam páreo, principalmente nos circuitos de alta velocidade.

E havia 3 deles, projetados para encantar a plateia com médias de velocidade altíssimas, logo no início da temporada: Túnis, Tripoli e Berlim (AVUS).

Para complicar um pouco mais, a direção da Alfa tinha decidido se concentrar na produção de veículos de rua e se retirar das corridas.

Ou seja, zero investimento direto em automobilismo. Zero chance de ter um modelo novo, adequado à Formula Libre.

Para não ficar totalmente ausente, a Alfa tinha nomeado representante da marca a equipe de seu antigo diretor do “reparto corse”, Enzo Ferrari, e entregou a ele as P3 disponíveis. Mais problemas: Mussolini estava acostumado a aproveitar os êxitos das Alfa 8C para alimentar sua popularidade.

Parte dela vinha da sua plataforma de levar a Italia de volta ao esplendor da antiga Roma… (se você encontrou alguma similaridade com “America Great Again”…) logo era preciso que Enzo desse um jeito.

O que o Duce poderia fazer seria persuadir a lenda Tazio Nuvolari a voltar a defender a Scuderia. De fato isso ocorreu, não se sabe se pela influencia política ou pela possibilidade de ter um carro competitivo contra a blitzkrieg alemã.

O que Enzo poderia fazer para enfrentar, com alguma chance de sucesso, as poderosas esquadras tedescas, 4 meses antes do início da temporada?

Onde encontrar potencia equivalente, antes de mais nada?

A equipe Ferrari não contava mais de 30 pessoas.

Enzo, Luigi Bazzi, seu principal engenheiro, coadjuvados por Arnaldo Roselli e Enrico Beltracchini olharam para o motor 8 em linha da P3.

Naturalmente pensaram que seria ideal se ele tivesse o dobro de potência.

Ou seja, precisariam de dois motores desses para alcançar e até ultrapassar a concorrência. A solução óbvia seria instalar dois motores em um chassis.

Os dois motores 3.165cc de 8 cilindros em linha, os maiores produzidos pela Alfa até aquele momento, entregariam 540 bhp a 5.400 rpm e em tese daria para enfrentar com sobra as M-B e AU. Mas… qual chassis?

Não havia tempo para desenvolver um chassis adequado, muito menos feito com as ligas especiais de metal que tornavam os carros alemães mais leves.

Optaram então por adaptar um chassis P3, alongado para instalar um motor atrás do piloto.

Para distribuir o peso, um motor seria montado na frente outro atrás do piloto.

Dois motores consomem muito mais combustível, então tanques especialmente desenvolvidos foram instalados nas laterais (solução utilizada posteriormente na Lancia D50, nas Brabham projetadas por Gordon Murray etc.). Capacidade para 120 litros cada um. Distribuiriam o peso e ajudariam com o centro de gravidade.

Como fazer os dois motores funcionarem em conjunto?

Não cabia uma solução convencional. A conexão entre eles foi feita por meio de dois eixos ligados à caixa de mudanças. O diferencial foi instalado no meio, com a potência sendo transmitida para as rodas traseiras por meio de dois eixos de transmissão em formato de Y. Ou seja, cada roda traseira era movida por um eixo.

A Ferrari inicialmente construiu dois protótipos, um com motores 2,9L e outro com os 3.1L, muito provavelmente para avaliar a relação peso/potência.

Obviamente outro efeito colateral do peso, 1.300 quilos na versão com

motores maiores e em ordem de marcha, seria o desgaste acentuado de

pneus.

Simplesmente nenhum fabricante tinha pneus projetados para esse inédito

conjunto em condições de corrida.

A intenção inicial era usar os Dunlop, considerados os melhores para alta velocidade, mas o próprio fabricante ficou inseguro sobre a prestação deles e a Ferrari acabou optando por Engleberts.

No dia 10 de abril de 1935, dentro do prazo inacreditavelmente pequeno, Attilio Marinoni e Tazio Nuvolari testaram a Alfa 16C Bimotore na estrada Brescia-Bergamo.

O Mantuano Volante atingiu máxima de 280 km/h e declarou à imprensa que com algumas modificações acreditava poder atingir 340 km/h.

Ele e Marinoni informaram a Enzo e Bazzi que tinham encontrado problemas de transmissão e dirigibilidade, o que não era propriamente estranho considerando o ineditismo da proposta e a falta de tempo para desenvolvimento.

E assim, em 5 de maio, Nuvolari é obrigado a competir com uma 8C em Tunis (abandonando logo no inicio), porque as Bimotore ainda não estavam prontas.

Uma semana depois, ele e Chiron podem dar combate a Caracciola, Fagioli, Varzi, Stuck em Tripoli. O circuito Melaha era o mais veloz da época, com longas retas, portanto favorável aos exuberantes 540 bhp das Bimotore.

A Mercedes levou 3 W25 e Auto Union 3 Tipo A, sendo uma com cockpit fechado, streamlined, a cargo de Hans Stuck.

Nos treinos este conjunto marca o melhor tempo, 220.4 km/h, seguido por Nuvolari (início promissor) e Caracciola. Infelizmente para a Scuderia o grid era formado por sorteio e não por tempo de volta.

Nuvolari larga no meio do pelotão e Chiron na última fila.

As condições da pista também eram fonte de preocupação para Enzo.

Entre o mar e o deserto, ela costumava apresentar uma venenosa combinação de calor, vento e areia. A largada era às 15:00, portanto com sol alto e temperatura de pista idem, o que deveria gerar desgaste ainda mais acentuado dos pneus.

Baixada a bandeira Caracciola assume a ponta. Tazio, exibindo sua extraordinária qualidade e o potencial da Bimotore rapidamente assume o segundo lugar. Mas é obrigado a parar já na terceira volta, para abastecer e trocar pneus.

Caracciola pára na sexta, Varzi (Tipo A) e Fagioli (W25) passam à frente.

Rudi e Tazio passam a duelar, tentando alcançar Varzi.

30 voltas completadas, faltando 10 para a bandeirada final, Varzi continua liderando. Nuvolari está em segundo, tendo ultrapassado Caracciola e Fagioli (Stuck tinha abandonado após seu carro pegar fogo). Rudi declarou depois que tinha deixado Tazio ultrapassar, de caso pensado, pois a rivalidade entre os dois italianos era mais que conhecida, portanto era de se esperar uma briga acirrada.

E estava certo, Tazio alcança Achille, os dois levantam a platéia duelando roda a roda por várias voltas até que a Bimotore precisa pagar o preço de seu peso excessivo, indo aos boxes para trocar pneus mais uma vez. Rudi, que estava voltando às corridas após seu acidente em Monaco e a perda de sua esposa Charly, assume a ponta e age como uma raposa. Achille também tem que pagar o preço em pneus faltando cinco voltas para o final. Volta com o vigor que o caracterizava, descontando espetacularmente a vantagem para a W25 mas… na última volta um pneu estoura e ele tem que se arrastar pela pista para garantir o segundo. Fagioli faz o terceiro, Tazio quarto e Chiron quinto.

A Ferrari já sabia que era difícil dosar a potência da Bimotore nas acelerações, que ela era instável nas retas e, claro, devorava pneus. Tazio teve que trocar 8 vezes. Mas não havia tempo para reverter drasticamente essas características.

Mais duas semanas e a turma se reuniria em Berlim.

AVUS ainda não tinha a famosa curva parabólica a 43º. O circuito consistia em duas retas muito longas, ligadas por uma curva levemente parabólica no lado norte e um grampo no lado sul.

A classificação era feita com os concorrentes divididos em duas baterias de 5 voltas e a corrida em si contava 10 voltas. Isso foi pensado exatamente para evitar excessivo desgaste de pneus, o que prejudicaria as disputas.

Mas o circuito era longo, o tempo de volta ficava na casa dos 5 minutos e Nuvolari tem que trocar os pneus de sua Bimotore ao cabo de duas voltas, repetindo a troca na quarta. Essa perda de tempo o impede de passar da sexta colocação e assim ele fica fora da final.

Chiron adota tática diversa. Menos impetuoso nas acelerações de saída de curva e freadas, vai gerenciando a borracha e obtém o quarto lugar na classificação. Na corrida final, tendo encontrado o caminho para domar a besta, chega em segundo. É o melhor resultado desse carro extraordinário, em sua curta carreira em corridas de alta velocidade no circuito Grand Prix.

Nuvolari e Enzo decidem aproveitar o potencial de outra maneira e assim uma Bimotore é preparada para bater o recorde de velocidade pura. Mais leve (menos de 1 tonelada), streamlined, pneus Dunlop e com um apêndice aerodinâmico que lembra os da atual F1 atrás da entrada de ar do motor traseiro, ela obtém a marca no dia 16 de junho, em um trecho junto ao litoral da estrada que liga Florença e Livorno. Velocidade máxima alcançada: 364 km/h. Velocidade média no quilometro lançado: 323 km/h.

Um forte vento lateral intermitente quase joga a Bimotore para fora da estrada, por duas vezes.

Para se ter uma ideia do valor dessa conquista convém notar que o recorde atual é de pouco mais de 763 mph, obtido por carros especialmente projetados para essa prova, movidos por 2 motores a jato (bimotores!), em locais ideais, como Bonneville Salt Flats (Utah, US).

A Bimotore não teria chances contra as rivais alemãs nos demais circuitos da temporada, a maior parte estreitos e/ou de rua, e foi substituída pelas P3 com motor 3.8L, com Nuvolari obtendo uma vitoria estupenda na casa dos adversários, o GP da Alemanha.

Em 36 Ferrari vende uma Bimotore para o inglês Arthur Dobson. A outra foi desmontada, para canibalização, como era costume na época.

Essa Bimotore sobrevivente se mostra competitiva nos circuitos ingleses até depois da 2a. Guerra, obtendo inclusive um 2º lugar no GP da Holanda de 48.

Esse exemplar foi encontrado na Nova Zelândia nos anos 90 e levado à Inglaterra para um excelente trabalho de restauração.

Quem tiver interesse em ver ao vivo esse produto da criatividade de Enzo Ferrari e seus colaboradores da época deve ir a Donington ou Goodwood.

Lá poderá constatar que o escudo doado a Ferrari pela família de Francesco Baracca está presente não apenas na lateral mas acima da grade do radiador.

A marca Alfa Romeo aparece, sim, mas nessa grade.

Há também uma Bimotore no museu Alfa Romeo, com a marca milanesa na posição que deveria ser a original, mas é uma réplica, feita com algumas peças originais e destinada mais a fins… pedagógicos, digamos, porque a carroceria tem partes transparentes destinadas a observar e compreender a disposição pioneira dos dois motores.

Ela foi idealizada nos anos 70 por Giuseppe Luraghi, quando presidente da Alfa Romeo, exclusivamente para exposição.

É sabido que Enzo considerava a Bimotore uma criação totalmente sua. Enquanto não obteve resultados expressivos a Alfa não se incomodou com a colocação do “cavallino rampante” nos locais mais nobres. Mas quando viu a foto do recorde de velocidade mudou de ideia.

Embora a Bimotore tenha sido feita com base em peças produzidas pela Alfa, sua concepção é inteiramente Ferrari.

Fica a seu critério decidir quem merece ter a marca nos locais mais visíveis.

Para quem gosta, aqui vai a ficha técnica completa:

Diâmetro/curso (curso longo): 71.0 mm x 100.0 mm

Taxa de compressão: 7.0:1

2 válvulas por cilindro, DOHC

2 carburadores Weber

2 Roots-Type Superchargers

 

Chassis emlongarinas de aço com seção em “C”

Suspensão dianteira: independente,braços transversais, molas

helicoidais

Suspensão traseira: independente, molas semi-elípticas

Sistema de direção: coroa e pinhão

Freios a tambor nas quatro rodas

Câmbio: manual de 3 velocidades

Pneus: dianteiros 5.50 x 20”, traseiros 7 x 21″

Tração traseira

 

Peso: 1000 kgvazio, 1.300 kg em ordem de marcha

Comprimento/Largura/Altura: 4200 mm/1510 mm/1290 mm

Comprimento entre-eixos: 2800 mm

Eixos dianteiro e traseiro: 1380 mm/1380 mm

Tanques de combustível: 2 x 120 litros

Tanque de óleo: 40 litros

 

Dados de Performance:

Potência total: 540 bhp/403 KW a 5.400 rpm

Relação Peso/Potência: 0.52 bhp/kg

Relação potência/capacidade cúbica: 85 bhp/litro

Velocidade máxima: 328 km/h

 

Carlos Chiesa
Carlos Chiesa
Publicitário, criou campanhas para VW, Ford e Fiat. Ganhou inúmeros prêmios nessa atividade, inclusive 2 Grand Prix. Acompanha F1 desde os primeiros sucessos do Emerson Fittipaldi.

4 Comments

  1. Carlos disse:

    Realmente, Fernando. Fiquei com a impressão de que se Nuvolari tivesse tido um pouco mais de paciência, ou Chiron um pouco mais de voz ativa, este carro teria tido outra carreira. Claro que não nessa temporada. Mas se algum fabricante de pneus conseguisse resolver o problema da durabilidade sem perda significativa de performance, a Bimotore talvez pudesse ser mais competitiva. Pelo menos foi o que conclui depois do bom resultado de Chiron em AVUS.

  2. Paulo Hardt disse:

    Bela história!
    Belo carro!
    Belo texto!

    Paulo Hardt

  3. Fernando Marques disse:

    Chiesa,

    que carro fantástico!!!

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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