Ferrari sem erros

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Não, não foi só na era Schumacher que a Ferrari não cometeu erros.

Você está impressionado* com os erros que a Ferrari tem cometido ultimamente? Tem gente na imprensa desencavando a velha teoria da conspiração de que pérfidos italianos estão querendo ferrar o pobre Massinha, sabe-se lá porque motivo. Desentocam o argumento de que Piero Lardi, o filho extra-conjugal do Comendatore, posteriormente reconhecido como um produto Ferrari, não se referiu ao jovem brasileiro como um candidato ao título no começo do ano.

Com toda a pressão dos tifosi e dos patrocinadores, tudo que a Ferrari quer é ser campeã, seja com Kimi, hoje em baixa, seja com Massa, hoje em alta. No início do ano, era o contrário. Massa decaiu na segunda metade da temporada passada, enquanto Kimi se recuperou de uma primeira metade abaixo da expectativa. Logo, nada mais natural que o presidente da Ferrari, naquele momento, colocar mais fichas no finlandês.

Ele e a maioria das pessoas que acompanham F1 não se deixam influenciar por patriotadas. Concluir que erram de propósito para derrubar o brasileiro parece-me um atentado ao bom senso, para não dizer outra coisa. Tá bom que a Ferrari fez isso com o Eddie Irvine, mas quando o Schumacher estava lá. Foi, portanto, uma exceção. Era uma equipe Schumacher hospedada dentro da equipe Ferrari, inteiramente voltada para fazer o alemão se tornar novamente campeão. Ele e mais ninguém.

Raikkonen não é um Schumacher, sob nenhuma perspectiva. Mas, não foi só na era Schumacher que a Ferrari não cometeu erros.

Quando Bernie Ecclestone chegar ao inferno, a direção do lugar faria bem se o obrigasse a assistir ininterruptamente às corridas de esporte-protótipo da década de 70, categoria friamente assassinada por esse sujeito desalmado. Seria forçado a ver e rever aqueles maravilhosos Ferrari 312P, Alfa T33, Porsche 917, 908 etc., injustamente banidos das competições, para nunca mais esquecer desse crime de lesa-fã do automobilismo.

Pois em 1972 a Ferrari dominou completamente a categoria, com seus 312P, pilotados por Jacky Ickx, Mario Andretti, Clay Regazzoni, Ronnie Peterson, Tim Schenken, Brian Redman, José Carlos Pace, Helmut Marko, além de Arturo Merzario e Sandro Munari, vencedores da mítica Targa Florio. Praticamente uma seleção, em boa parte escolhida pessoalmente por Enzo Ferrari.

Tá certo que a Porsche não participou, porque não quis se adaptar à nova fórmula 3 litros ao invés de 5 dos anos anteriores, quando reinou com os modelos 917 mas a Alfa começou o campeonato com tudo a que tinha direito, menos um chefe de equipe chamado Peter Schetty, chefe da Ferrari.

Até 1971, a equipe era vista como um exemplo da capacidade latina de improvisação e de como o virtuosismo nem sempre significava eficiência. Em 1972, a estas características foi agregada uma preparação impecável dos carros e um “backstage” de corridas no mesmo nível. Mesmo nível da lendária equipe Mercedes dos anos 30 ou 50, comandada pelo extraordinário Alfred Neubauer, até então o ícone máximo de eficiência.

A 312P venceu todas as corridas da temporada, exceto Le Mans, da qual não participou por um misto de razões técnicas e políticas. Peter Schetty tinha então 30 anos. Suíço, pertencente a uma família da alta burguesia de Basel, cantão alemão da Suíça, formou-se em direito e administração em Viena. Abandonou os negócios da família para correr primeiro pela Abarth e depois pela Ferrari, em provas de subida de montanha, categoria na qual chegou a ser campeão europeu. No final da temporada de 70, já correndo em pistas com a Ferrari 512, chegou à conclusão de que não tinha o estofo de um grande campeão e decidiu encerrar a carreira de piloto. Imediatamente a Scuderia ofereceu a ele o posto de assistente do famoso Mauro Forghieri.

Foi uma oportunidade para introduzir a precisão suíça na equipe. Schetty tinha o costume de ir direto ao ponto do problema, sem rodeios, mas combinava isso com outro, o de deixar que todos os envolvidos expressassem suas opiniões. Com base nisso, ao invés de impor, propunha, e era seguido. Qualidades eternamente louvadas em se tratando de líderes.

Nas casernas, diriam que ele não precisava dos galões para ser obedecido. Fluente em alemão, francês, inglês e italiano, também funcionava como interprete na babel composta por um piloto belga, um sueco, um italo-americano, alguns ingleses, um brasileiro, um alemão e um corpo técnico italiano. Temos então um homem com qualidades essenciais de líder, poliglota, formação superior e ex-piloto. Falava tudo, entendia tudo e se fazia entender por todos. Um exemplo claro de The right man in the right place.

Ao invés de estimular inveja e rivalidade, buscou e obteve um real espírito de equipe. Nenhuma dupla de pilotos era privilegiada, todas tinham chance de vencer. No máximo dava instruções para que as posições fossem mantidas, quando a vitória da equipe estava assegurada. Parece que não fez muitos seguidores na F1 atual.

Nas corridas, para cuidar dos sete 312P que foram usados na temporada, a equipe era composta por… 16 pessoas no total! Ele e Giacomo Caliri, o engenheiro-chefe da divisão esporte inclusive. Alguma simetria com a milionária e pouco emocionante F1 atual?

Então vamos examinar os bastidores das corridas sob o ângulo deste antecessor de Jean Todt. Em suas próprias palavras: “A necessidade de organização é a mesma que em qualquer outro negócio, exceto que em corridas freqüentemente você precisa improvisar. É aí que a organização da equipe ajuda a trabalhar rápido e bem…” Quando, por exemplo, é preciso executar um trabalho inesperado em um carro entre os treinos e a corrida. É aí que o diretor esportivo e o engenheiro precisam conversar com o chefe dos mecânicos e estabelecer quais as dificuldades que o trabalho deverá apresentar, o quão cansados os mecânicos estão e que materiais estão disponíveis. Ainda, de acordo com a estimativa de tempo que o serviço vai levar, improvisar um plano de trabalho para que esteja terminado a tempo. Acima de tudo, é preciso ser cuidadoso para não dar ordens imperativas. Claro, é preciso dar ordens para que o trabalho seja executado… mas em certos momentos apenas, e da maneira certa.”

Chamo a atenção para sua habilidade de tirar bom partido da capacidade de improvisação, então considerada característica da equipe italiana, ao invés de tentar lutar contra ela. Um dirigente como esse sabe como tirar o máximo também dos seus pilotos, sem precisar de golpes baixos.

Curioso para saber os resultados dessa filosofia?

1000 Km de Buenos Aires: 1º Peterson/Schenken, 2º Regazzoni/Redman;
6 Horas de Daytona: 1º Andretti/Ickx, 2º Schenken/Peterson;
12 Horas de Sebring: 1º Andretti/Ickx, 2º Peterson/Schenken;
B.O.A.C. 1000 Km (Brands Hatch): 1º Andretti/Ickx, 2º Schenken/Peterson;
1000 Km de Monza: 1º Ickx/Regazzoni, 2º Jöst/Schüler (Porsche);
1000 Km de Spa-Francorchamps: 1º Redman/Merzario, 2º Ickx/Regazzoni;
Targa Florio: 1º Merzario/Munari; 2º Galli/Marko (Alfa 33TT3);
1000 Km de Nürburgring: 1º Peterson/Schenken, 2º Redman/Merzario;
1000 Km da Áustria (Zeltweg): 1º Ickx/Redman, 2º Marko/Pace;
6 Horas de Watkins Glen: 1º Ickx/Andretti, 2º Peterson/Schenken.

Quer dizer: em apenas duas corridas deixaram de fazer 1-2.

Abraços a todos!

*Coluna publicada originalmente em 15 de agosto de 2008.

Carlos Chiesa
Carlos Chiesa
Publicitário, criou campanhas para VW, Ford e Fiat. Ganhou inúmeros prêmios nessa atividade, inclusive 2 Grand Prix. Acompanha F1 desde os primeiros sucessos do Emerson Fittipaldi.

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