Grand Prix em tons de vermelho

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O lendário filme Grand Prix é o maior clássico automobilístico da história do cinema -- e tem algumas histórias geniais.

Hoje vamos relembrar uma história em que um diretor de cinema, sem querer, ajudou um dono de equipe a arquitetar o fechamento de um vantajoso contrato, sem nem desconfiar que houvesse essa trama se desenrolando nos bastidores, enquanto ele levava às telas um dos maiores filmes da história do cinema.

Aos 35 anos de idade, John Frankenheimer estava na plenitude de sua capacidade como diretor de cinema. Ele havia dirigido grandes êxitos tanto comerciais como de crítica nos três anos anteriores. “Sob o domínio do mal”, “Sete dias em maio” e “O homem de Alcatraz” eram destaque em seu currículo.

Fanático por carros, ele resolveu embarcar num ambicioso projeto de retratar no cinema o mundo das corridas de Fórmula 1. O filme se chamaria “Grand Prix” e seria filmado em diversos locais na Europa, durante as temporadas de 1965 e 1966, aproveitando e acompanhando a caravana real das equipes de Fórmula 1 nos diversos circuitos do campeonato mundial.

Para esse projeto, ele visitou diversas equipes em busca de apoio e permissão para uso de imagens e cooperação das equipes nos sets de filmagens que ocorreriam durante as provas reais. Uma das equipes visitadas por ele foi evidente a Ferrari. Ele esteve em Maranello em busca da cooperação do comendador Enzo Ferrari. Junto a ele estava o ator Adolfo Celi, que deveria interpretar um papel declaradamente baseado no comendador. Era crucial para Frankenheimer receber a aprovação de Enzo Ferrari ao seu projeto.

De imediato, o velho Enzo rechaçou a ideia e não quis cooperar, nem autorizar que o cineasta usasse seu nome ou da sua equipe no filme. Apesar da insistência de Frankenheimer, a visita não logrou êxito.

Naquele tempo, Enzo Ferrari estava muito envolvido em duas frentes de batalha. Na Fórmula 1, os britânicos, chamados por ele de “garagistas”, estavam lhe aplicando uma surra e venciam desde 1959, restando para a Ferrari títulos apenas em 1961 e 1964.

Na categoria Esporte, a Ford abriu uma guerra contra a Ferrari depois de não ter tido êxito em tentar comprar a escuderia italiana. Eles estavam desenvolvendo o poderoso GT40 não apenas para vencer, mas para derrotar a Ferrari. Dessa forma, as preocupações de Enzo passavam em como manter a Ferrari no topo do mundo automobilístico e não havia espaço para filmes e essa trupe de Hollywood em sua agenda.

A situação, no entanto, mudou alguns meses depois.

O insistente Frankenheimer voltou a Maranello levando consigo 45 minutos de filmagens que já haviam sido rodadas durante o GP de Mônaco. Ao assistir, Enzo Ferrari percebeu que o cineasta tinha uma visão bem mais acurada e benéfica do esporte que ele havia imaginado.

O Comendador não apenas mudou de ideia, como resolveu ajudar. Mas ele enxergou que, dessa ajuda, ele iria tirar alguns benefícios para sua escuderia.

Como Frankenheimer falava bem o francês, ele conseguia conversar e transmitir uma imagem positiva e colaborativa, durante vários encontros. Além de visitar a fábric,a almoçava com Enzo e conversavam os mais variados assuntos sobre automobilismo.

Frankenheimer recordou num desses prolongados almoços uma conversa em que Enzo reclamava do comportamento dos americanos. Eles exigiam carros com ar-condicionado, o que sua visão, além de caro, roubava potência do motor, algo muito caro ao velho Comendador. O público europeu não fazia a mínima questão do equipamento.

“Que posso fazer?” reclamava Enzo, “Isso encarece a linha de produção, são poucos os carros que enviamos aos EUA”.

Frankenheimer, numa visão mais pragmática sugeriu: “porque não colocar ar-condicionado em todos os carros e deixar o cliente decidir se usa ou não?”.

Ferrari ficou encantado com a ideia e, de imediato ordenou, que todos os carros fossem equipados com ar-condicionado. Isso fazia parte de seu encantamento pessoal, ele era dado a esses arroubos de bajulação ao interlocutor quando lhe era conveniente. Mais do que encantado, ele sabia a partir dali como poderia tirar um proveito positivo para sua equipe.

Depois desse encontro, Enzo deu permissão para que o cineasta filmasse nas dependências da fábrica para usar essas cenas em seu filme. O astro francês Yves Montand fazia o papel do piloto Jean-Pierre Sarti, que pilotava para a equipe Ferrari e o script previa que na corrida derradeira do filme, em Monza, ele sofreria um acidente fatal a bordo de uma Ferrari.

Enzo Ferrari não se opôs à cena. Na verdade, a única objeção que ele impôs ao cineasta seria que seus carros não poderiam ser derrotados. A forma que Frankenheimer contornou essa imposição foi a famosa cena em que a equipe se retira da corrida após o acidente. Assim para o comendador não havia derrota.

Para muitos, essa cena era uma espécie de reconhecimento ao fato de na vida real no famoso acidente em Monza 1961, que ceifou a vida de 14 espectadores e o piloto Wolfgang Von Trips da Ferrari, a equipe ter permanecido na disputa, fato que foi bastante criticado.

Além do fato de se sentir atraído por toda a movimentação que houve em sua fábrica e em Monza em torno de sua equipe pelo pessoal de Hollywood, Enzo Ferrari aproveitou essa proximidade para estabelecer contato com a fabricante de pneus Firestone, na época ainda totalmente americana.

A Firestone estava perdendo espaço dentro dos Estados Unidos nas categorias norte-americanas para sua arquirrival Goodyear e isso estava incomodando e muito seus executivos. Além disso, a Goodyear havia fechado um contrato com o estúdio MGM e teria exclusividade de exibição de sua marca nas filmagens. Vale lembrar que em 1965, quando as filmagens se iniciaram, apenas duas equipes usavam os pneus da Goodyear – Brabham e Honda.

Isso talvez explique o porquê de dois fatos que ocorrem no filme. O primeiro é que nenhuma equipe, exceto a Ferrari, tinha seu nome real. E o segundo é que no filme, a equipe japonesa Yamura é quem termina ganhando o campeonato. É bom lembrar que na temporada de 1965, a Honda ganhou o GP do México, último daquela temporada, marcando a primeira vitória dos pneus Goodyear na categoria. Coincidência ou coisas que contratos de bastidores explicam? Além disso, muitos fãs acreditam até hoje em premonição do cineasta quanto ao sucesso da Honda nos anos 80/90.

Quem trabalhou para levar a Goodyear à Europa foi Carroll Shelby, angariando vários contratos bem lucrativos para as equipes e deflagrando uma guerra de pneus naquela época. A Firestone sabia que se quisesse manter seu nome em evidência precisava entrar no mundo da Fórmula 1, e vocês imaginam o quanto havia de peso em ter um contrato com a mais mítica das equipes, a Ferrari.

O Comendador sabia que ele poderia levar uma boa vantagem numa situação como essa e abriu as portas para receber os executivos americanos. A visita foi feita pelo próprio Raymond Firestone, que estava muito irritado e não engoliu a exclusividade que a MGM deu à Goodyear no filme.

Essa reunião foi facilitada dada a proximidade que Enzo havia costurado com Frankenheimer e sua equipe. Não era mais segredo que Enzo havia deixado filmarem em suas dependências e a Firestone foi ao encontro, pensando em tirar da Goodyear a chance de capitalizar no filme a imagem junto à Ferrari.

Estava tudo muito bem costurado e tramado pelo comendador, quem sabe inspirado em Alfred Hitchcock, já que o cinema estava em sua casa…

Para Enzo Ferrari, o dinheiro era pouco importante, o que ele queria era a garantia que a Firestone levaria para sua equipe o que houvesse de melhor em tecnologia e assim seus carros seriam equipados com os melhores pneus.

O Sr. Ferrari assinou um contrato com a fabricante para a temporada de 1966 e a Firestone, para poder arcar com essa garantia, montou uma fábrica na Inglaterra em Brentford. Mesmo assim, o custo desse contrato foi mantido sob sigilo e é possível imaginar que fosse muito vantajoso para os italianos. Na temporada de 66, a equipe Ferrari venceu duas corridas e terminou o ano como vice-campeã de construtores.

Enzo, um visionário solitário, sabia montar cuidadosamente a imagem da Ferrari para o mundo. Ele vendeu com êxito a ideia que a Ferrari era um pequeno fabricante, um grupo de artesãos dedicados a dar forma a carros excepcionais feitos a partir das mãos. E que na batalha contra a Ford nas pistas, lutava contra uma gigante corporativa e seus infinitos dólares. Enzo podia ser golpeado, mas não vencido, e isso gerou uma onda de simpatia dentro da Itália.

Os visitantes que chegavam a Maranello se surpreendiam, pois ao invés de artesãos, encontravam uma fábrica moderna para os padrões da época, perfeitamente equipada e controlada por uma força de funcionários qualificados, quase mil pessoas, produzindo carros de corridas e carros de passeio, jóias desejadas em todo o mundo.

Comparado a Ford, logo se via que a Ferrari não era inferior, tecnicamente falando. Apenas nos recursos financeiros os americanos levavam vantagem, mas a cabeça de Enzo já estava se voltando para uma solução dentro de seu território a Itália, berço de outro fabricante também poderoso, a Fiat.

Imaginem se John Frankenheimer tivesse a mínima noção que nos almoços que ele teve com o comendador, havia esse thriller se desenrolando? Talvez ele se arriscasse a fazer outro filme, ou quem sabe, em Grand Prix, ele poderia ter adicionado em seu roteiro mais elementos de suspense dentro da trama.

Adicionar mais tons de vermelho…

Abraços,

Mário

Mário Salustiano
Mário Salustiano
Entusiasta de automobilismo desde 1972, possui especial interesse pelas histórias pessoais e como os pilotos desenvolvem suas carreiras. Gosta de paralelos entre a F1 e o cotidiano.

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