Indignação seletiva

O epílogo de 1974
15/10/2014
Nossa melhor dobradinha
22/10/2014

Tudo indica que Fernando Alonso sairá da Ferrari e irá para a McLaren. Será que o tri vem?

Bicampeão mundial de Fórmula 1, multimilionário, não é impossível que Fernando Alonso perambule daqui alguns anos pelos autódromos do mundo como um comentarista amargo, sombra de um passado de glória, desdenhando dos personagens e feitos do presente. Do fundo do meu coração, torço para que isso não aconteça, porque admiro o espanhol como piloto e porque sempre tenho pena de quem não consegue enxergar as benesses da própria vida, enquanto alguns, bem menos afortunados, demonstram sua alegria genuína porque o ônibus passou bem no momento em que chegaram ao ponto ou porque hoje teve bife acebolado no bandejão da firma.

Alonso destronou Emerson Fittipaldi como o mais jovem campeão do mundo, depois perdeu esse título para Lewis Hamilton, que perdeu para Sebastian Vettel e, com a Fórmula 1 aceitando novatos de 16 anos, o alemão pode perder para um piloto imberbe em pouco tempo. Destemido no limite do afobamento, Alonso ganhou atenção do mundo ainda na Fórmula 3000. Dava para ver que se tratava de um fora de série. Lapidou-se e se tornou um dos melhores de sua geração, ganhando carteirinha de sócio permanente do seleto clube de pilotos que bateram Michael Schumacher nos anos áureos do heptacampeão.

Mas Alonso não esconde seu desejo – obsessão? – em conquistar pelo menos mais um título antes de se aposentar. Completou 33 anos em julho passado e, se está longe de ser um velho liquidado, também é evidente que se encontra nos anos finais de sua carreira. Da mesma forma que o relógio biológico costuma tocar para as mulheres, que se fixam na ideia de ter um filho, em determinado período da vida, o relógio está tocando para Alonso há vários anos. Ele buscou parceiros que pareceram ideais para gestar e parir seu terceiro título, mas a fecundação não ocorreu.

Por quê?

Sempre que empreendo essas construções mentais, fico pensando que algum leitor, um dia, há de soltar com razão o clássico “se minha avó fosse homem, ela seria meu avô”. Mas, se… Alonso e Ron Dennis não tivessem se engalfinhado como dois candidatos à presidência em um ringue de debate, é possível que o espanhol, a essa altura da vida, ninasse seu almejado tricampeonato. Algo de muito estranho aconteceu naquele campeonato de 2007. Estranho, antiético e chocante: a McLaren espionou dados da Ferrari, isso todo mundo sabe. O time de Ron Dennis foi excluído do Mundial de Construtores, sem que os pilotos perdessem seus pontos, chegando à última corrida, no Brasil, ambos com chance de ser campeão. Kimi Raikkonen, da ultrajada Ferrari, ficou com o título e Alonso foi-se embora da McLaren, para amargar dois anos em uma Renault bem diferente da que lhe deu dois títulos. O que teria acontecido se Alonso domasse o touro destrambelhado que lhe habita o espírito e Ron Dennis baixasse o nariz empinado, possibilitando que o espanhol tivesse ficado na McLaren?

No mínimo, teria disputado o título do ano seguinte, que ficou com o ex-companheiro Hamilton. E provavelmente teria construído passagens bem mais louváveis em sua carreira do que uma vitória construída à base de uma farsa. O tricampeonato poderia ter vindo ali. Mas Alonso foi para a Renault e era evidente que ele, naquela situação, era piloto demais para carro de menos. Naqueles tempos, cada vez que se avizinhava o momento de decidir o futuro, Alonso era colocado em uma equipe diferente. Falava-se da finada BMW, da Ferrari, que acabou sendo seu destino. Cogitá-lo na Red Bull, então um time em formação, parecia uma excentricidade. Não parece que o espanhol tenha conversado com a equipe dos energéticos, que sempre optou por desenvolver jovens pilotos de alto potencial mas, se o tivesse feito e chegado a bons termos, o que seria da história da Fórmula 1 desde então?

Well, well… se minha avó fosse homem… O fato é que Alonso está diante do relógio, que não dá trégua, e ele não parece desistir de pelo menos igualar o feito de pilotos como Ayrton Senna, Nelson Piquet e Jackie Stewart. Esteve perto de conseguir nessas cinco temporadas com a Ferrari. Mas a equipe italiana não é a mesma dos tempos de Schumacher. De fato, a equipe que deu cinco títulos ao alemão extinguiu-se quando ele se aposentou e desfez-se o time competente formado em torno dele. As presenças de Jean Todt, Ross Brawn, Rory Byrne e outros menos estrelados em torno de Schumacher pareciam blindar o alemão da zoeira sem limites que é tentar ser bem sucedido em Maranello. Alonso, por falta de sorte ou de capacidade, não conseguiu blindar-se do sangue quente e estabanado dos italianos.

Queixar-se em público do carro, pela enésima vez, não fará o tricampeonato repousar na estante do asturiano. O clima pesou, seu mecenas morreu, é hora de partir. E então a rádio paddock informa que Alonso foi oferecer-se para a Mercedes. Nervosinha, a Ferrari decide encerrar o contrato que só terminaria em 2016. O espanhol, aparentemente, fica sem rumo, mas hesita em assinar contrato com a McLaren, que iniciará nova jornada com motores Honda a partir de 2015, o que pode significar uma gestação mais longa do que seus 33 anos comportam. E a turba se insurge contra a falta de ética de Alonso, ao se oferecer para ocupar um lugar já ocupado.

Senhoras, senhores… por favor. O que há de diferente na atitude de Alonso quando comparada à obsessão de Ayrton Senna em correr pela Williams do início dos anos 1990, descrita por ele mesmo como um carro de outro planeta? Senna, à época, estava em uma situação muito parecida com a de Alonso, hoje: um piloto melhor que seu carro, um touro indomável obcecado por vencer.

O que há de fazer um piloto destacado nessa condição? Reunir condições para estar sentado no melhor carro, evidentemente. Como Senna, em 1993, Alonso está milionário, pode abrir mão de uma soma tão vultosa como a que recebeu na Ferrari nos últimos tempos. Senna foi ainda mais acintoso à época, oferecendo publicamente para correr de graça para Frank Williams. É claro que isso não aconteceu. Ele costurou um acordo e deve ter ganho muito dinheiro, mas a prática de Senna, no mundo dos negócios, é conhecida como “dumping”. Os fãs de Senna achamos, naquela época, que a atitude era um desprendimento, um ato de arrojo, a obstinação de alguém que quer ser campeão a todo custo (e quanto custou…). E hoje a indignação seletiva carimba na testa de Alonso o rótulo de antiético.

Não estamos maduros o suficiente para deixar de relativizar os fatos a nosso favor, moldando-os às nossas teses? O mesmo argumento que serve para enaltecer nossos deuses servirá de chibata para açoitar nossos inimigos? E você, Alonso, corra onde quiser e aceite a verdade: você conseguiu muito mais que 99,99999% da população mundial. Seu nome está escrito na história. Se o tricampeonato não vier, isso não fará de você um perdedor. Eu, por exemplo, vou ficar feliz da vida se, hoje, conseguir pegar o Metrô com ar condicionado e tiver um lugar para eu fazer minha viagem sentada.

Alessandra Alves
Alessandra Alves
Editora da LetraDelta e comentarista na Rádio Bandeirantes desde 2008. Acompanha automobilismo desde 83, embalada pelo bi de Piquet e pelo título de Senna na F3.

8 Comments

  1. Rodolfo César disse:

    Na minha opinião é o seguinte:

    Hoje, o Alonso se assemelha (que é a palavra mais adequada, pois há várias diferenças de cenário e opções) com o Senna de 1993: ele quer o melhor para carreira dele, quer o título e sabe que aonde está esse título não virá.

    Contudo, esse tri poderia ter vindo antes (2007 ou 2008) se tivesse assemelhado com o Prost de 1989: Alonso não soube lidar com a briga interna e com a acintosa preferência de Ron Dennis por Hamilton, seu pupilo.

    É inegável que entre 1988/89 a McLaren apoiava mais a Senna do que a Prost, um exemplo é a McLaren ter apresentado um recurso (em Suzuka, 1989) que prejudicava um de seus pilotos, foi a única vez que aconteceu isso (essa é maior constatação de tal preferência). Prost permaneceu na McLaren mesmo após o título perdido em 1988, das dúvidas que assombrava a sua mente sobre a Honda e a McLaren ajudarem mais Senna do que ele. Prost lutou no ano seguinte, da forma mais pragmática possível, para retomar o título e sagrar-se tri.

    Em 2007 a história se repetia, a McLaren tomou partido pró Hamilton. Alonso poderia ter engolindo a seco os acontecimentos de 2007 se soubesse administrar os acontecimentos, mantendo-se na equipe para buscar em 2008 seu tão sonhado tri, já que conhecia as dificuldades que lhe seriam possivelmente impostas.

    A McLaren possuía o melhor carro entre 1988/89, assim como em 2007/08. Alonso perdeu uma grande oportunidade, sendo que para 2015 ele vislumbra um cenário mais obscuro, mais inseguro. Vai ter que trabalhar muito e torcer para que o desenvolvimento do MP4/30 esteja a ponto de combater o domínio da Mercedes que se insurge.

    A verdade é que quando Senna se transferiu para a Williams em 1994, ele estava indo para a equipe top do momento, a equipe que desejava estar. Alonso está indo para uma equipe que apresenta um novo projeto, com promessa de ser vencedor. Não é exatamente a equipe que gostaria de ir, mas é a melhor opção diante das circunstâncias, há grandes diferenças nisso.

    A temporada de 2015 tem tudo pra ser emocionante, imprevisível. Abraços!

  2. Manuel disse:

    Bom amigos, Nao discordo de vossa opiniao de que Alonso podería der sido campeao em 2007. Porem, devemos recordar que Ron Dennis chegou a dizer que eles ( a McLaren ) competia contra Alonso e, mesmo assim, quase ganha !

  3. Mauro Santana disse:

    Textaço Alessandra!!!!!

    Na minha opinião, como muito bem colocado pelo Lucas, 2007 teria sido do Alonso se ele não tivesse feio o que fez na Hungria.

    E digo mais, ele teria sido tetracampeão em 2008, e o título já teria chegado decidido aqui no Brasil, pois Alonso teria “passeado” por cima do Massa e do Hamilton.

    Força e JUÍZO Alonso!!!!!!!

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  4. Fernando Marqyes disse:

    Me parece claro que em 2007, não foi o Haikkonen que foi campeão, e sim a Mclaren que deixou de dar um titulo a um de seus piloto (seja Alonso ou seja Hamilton).
    Em 2008,ao contrário penso que foi a Ferrari que não deixou o Massa ser campeão. Aquele pit stop de Singapura … A Ferrari tinha no mínimo um carro tão bom quanto a Mclaren.
    Alonso é sem duvidas o melhor piloto da Formula 1 em atividade, mas desde que saiu da Mclaren nunca mais conseguiu estar no lugar certo na hora certa.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  5. Alessandra Alves disse:

    Allan, é isso mesmo! Ele poderia ter ganho dois títulos na McLaren naquele período. O carro da McLaren era superior ao da Ferrari e a equipe, em 2007, dinamitou-se sozinha. Depois, em 2008, contratou Kovalainen, que foi aquela insignificância que vimos. Vou mais longe: se Alonso estivesse na McLaren em 2008, ouso dizer que o papel de Felipe Massa naquele ano teria muito menos importância.

    • Mário Salustiano disse:

      amigos e Alê

      concordo com todos os pontos e acrescento mais lenha no fogo..rsrs , um dos problemas que vejo em Alonso nesse período alem do ego inflado a estratosfera, é que seu principal conselheiro era o Flavio Briatore e já conhecemos o tipo de caráter dele , e o outro bem abordado por voces é que com mais serenidade na cabeça ele poderia sim ter levado o título em 2007, além da Hungria ele desperdiçou uma boa chance no Japão ao errar sozinho e bater quando ocupava a quinta posição

  6. Allan disse:

    Excelente visão. Lembrando que o título poderia ter vindo já em 2007, tivesse adotado a postura de aceitar Hamilton como adversário, e não como “pós-adolescente-estagiário-com-dever-de-abrir-passagem”. Só na Hungria ao menos um segundo lugar poderia ter vindo (seria pole, fez o que fez, largou em 6º e chegou em 4º. Não só teria feito mais 6 pontos como teria tirado 2 do Kimi, que chegou em 2º!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *