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A história de uma das mais importantes corridas da história do automobilismo mundial.

Ao assistir o discurso marcante do filme 300 dia desses – discurso para que futuras gerações saibam o que aconteceu na batalha de Termópilas e os valores defendidos pelo Rei Leônidas de Esparta – acabei pensando um pouco em feitos do automobilismo: suas histórias  que acabam ficando na gaveta sem que as novas gerações tenham ideia de como as sucessões de eventos acabam influenciando ou gerando os fatos atuais.

Entre um pensamento e outro me lembrei daquela que é considerada uma das primeiras provas de endurance da história: a Targa Florio, uma das grandes corridas de estrada do passado.

Entre 1906 e 1977, essa competição foi disputada pelas estradas e ruas da Sicília, integrando inclusive o calendário do Mundial de Marcas. Quando a precariedade para organizar uma prova nestas condições ficou mais evidente, por falta de segurança para pilotos e espectadores, ela não foi mais disputada. Até então, a prova fez parte do chamado “Big Three” do Endurance, ao lado das 24 horas de Le Mans e a Mille Miglia.

httpv://youtu.be/iW658NelJmw
edição de 1965 da prova

O período entre 1894 a meados de 1905 foi marcado pela efervescência dos entusiastas pelo automóvel, que logo descobriram que a melhor forma para difundir seu uso mundo afora seria por meio de competições, colocando os novos bólidos para serem testados em resistência e velocidade.

Foram diversas as provas criadas com essa finalidade, dando início no Velho Continente a uma rivalidade entre franceses e italianos pela primazia e superioridade na tecnologia do automóvel. Por uma grande coincidência, em 1906 duas provas que marcaram essa era pré-história do automobilismo foram realizadas na França e Itália.

No lado francês, foi organizada a primeira corrida com regras. Por essa razão, esse grande prêmio ficou conhecido como o primeiro disputado por uma “fórmula”, com regras para igualar os carros. Não por acaso hoje somos aficionados por um esporte que se chama “Fórmula 1”.

No lado italiano, temos uma situação bem interessante: sem pensar em regras especificas, existia na Sicília um rico italiano que colocou na cabeça a ideia de organizar uma prova naquela região. Ele era um entusiasta e não mediu esforços para tornar seu sonho em realidade: seu nome era Vincenzo Florio.

Ele nasceu em 1883, em Palermo, filho do homem mais rico da região, cujos negócios incluíam vastas áreas de terra, vinícolas, produção de azeite, ferrovias, hotéis e linhas de navegação. Quando Vincenzo contava com oito anos, seu pai faleceu e todos os negócios da família ficaram a cargo de seu irmão mais velho, na época com 23 anos. Numa dessas situações que às vezes creditamos ao destino, ele decidiu que Vincenzo precisava ter uma educação de primeira linha. Foi o que aconteceu.

Vincenzo foi levado a vários locais durante sua infância e adolescência, passando temporadas em Nice, Paris, Monte Carlo, Viena e Baviera, com acompanhamento de preceptoras inglesas, recebendo o que de melhor havia em termos de educação. Em suma, se transformou em um homem culto e com espírito inovador.

De volta à Sicília, Vincenzo começou a dirigir um triciclo De Dion e logo pensou em colocá-lo em competição contra outros. Ninguém mais na região, porém, possuía um veiculo a motor. Para ir adiante, organizou uma corrida entre o triciclo que ele mesmo pilotaria, um ciclista e um cavaleiro em um cavalo. Esta corrida, que pode ter sido a primeira versão da Targa Florio, acabou com a vitória do cavaleiro. A ausência de estradas pavimentadas logo danificou a e o triciclo ficaram avariados.

Foi aí que Vincenzo convenceu seu irmão a adquirir alguns veículos – entre eles um Peugeot, um Benz e um Fiat. Próximo aos 20 anos de idade, sua família possuía uma frota de quase uma dúzia de veículos. Decidido a virar piloto de competição, Vincenzo começou a competir em alguns eventos nas regiões de Palermo, Pádua e Brescia. Chegou inclusive a derrotar Vincenzo Lancia, um ás da época e futuro criador da marca que leva seu sobrenome.

Na Europa começavam a aparecer corridas das mais diversas categorias em vários locais, e Vincenzo passou a pensar seriamente em organizar sua própria corrida na Sicília. Então em 1905, aos 22 anos de idade, tendo participado da Gordon Bennett nos Estados Unidos, ele conversou com Henri Desgrange, então editor do L’Auto, sobre sua ideia e resolveu anunciar para o ano seguinte a corrida. Ele encomendou a um joalheiro uma placa de ouro – a Targa – que significa troféu em italiano, a qual viria a ser o prêmio do vencedor da corrida. E assim temos a criação da Targa Florio.

Em seguida, ele montou uma equipe de pessoas com conhecimentos da região para encontrar e traçar um circuito que pudesse ser usado na corrida. Aí entra a vontade e o espírito inovador de Vincenzo: em 1905 simplesmente não havia nenhuma estrada pavimentada. Seus “especialistas” percorreram vários trechos até encontrarem um caminho entre as montanhas. Ele subia por caminhos com muitas curvas até uma altura de aproximadamente 1.200 metros, com descida novamente em ziguezague constantes até o nível do mar, numa extensão de cerca de 170 quilômetros. Nenhum pavimento, nenhuma proteção de guard-rails, e o mais crucial: nenhum carro jamais havia percorrido tal percurso.

Mais: a região era infestada por ladrões, que usavam as montanhas como esconderijo e isso foi motivo de recusa dos pilotos recrutados para a corrida de 1906, temerosos de se tornarem alvo de tiro por parte dos bandidos. O interessante é que esse temor vigorou na região por mais 50 anos, mas nenhuma corrida foi atrapalhada pelos mafiosos que ali residiam. Reza a lenda que Florio nunca pagou “pedágio” para que eles facilitassem as coisas.

httpv://youtu.be/x__bLJBKqT4
prova de 1973, última válida para o Mundial de Marcas

Em 6 de maio de 1906, foi dada a largada da primeira Targa Florio. Dos 22 pilotos inscritos, apenas 10 compareceram. Mas o que chamou a atenção foi a presença do público. As pessoas tinham se postado ao longo do percurso em diversos aglomerados desde a noite anterior, caminhando por estradas poeirentas sem nenhum tipo de ponto de apoio ou transporte para conduzí-los. Trata-se de uma situação totalmente inimaginável nos dias atuais, se imaginarmos que ao final da prova eles deveriam voltar e tudo isso para ver um uns poucos carros de competição passar por onde estavam a cada três horas, dada a extensão da pista e os poucos competidores.

Vincenzo Florio financiou toda a empreitada, desde o pagamento aos pilotos à construção de tribunas ao longo do trajeto, sem contar com nenhum tipo de ajuda. A despeito das estradas apavorantes e dificuldades consideráveis, ele persistiu em seu sonho e, com o passar dos anos e com alterações no circuito – alguns mais longos, mais curtos, alguns alcançando grandes altitudes, outros ficando no nível do mar – as corridas se sucediam ano a ano.

De 1919 a 1930, um circuito de 108 quilômetros chamado Medium Madonie foi adotado, e foi nessa configuração que as corridas europeias voltaram a ser disputadas depois da I Guerra Mundial. (A propósito: o primeiro piloto a largar nessa prova em 1919 foi um certo Enzo Ferrari, que só ficou famoso bem depois…)

Vários pilotos passaram pela Targa Florio. Destacamos como vencedores Felice Nazzaro, Achille Varzi, Tazio Nuvolari, Luigi Villoresi, Peter Collins, Strirling Moss, Wolfgang von Trips, Olivier Gendebien e Graham Hill, nomes que fizeram fama nas corridas de Endurance e, em alguns casos, na Fórmula 1.

A Targa Florio entrou para a história como a mais antiga e romântica das corridas de Endurance. Vincenzo a acompanhou até 1958, vindo a falecer no inicio do ano seguinte. Foi uma prova que teve seus altos e baixos e momentos de grandeza. Mas com a evolução das pistas, dos conceitos de segurança e também das questões financeiras, ela se manteve no calendário oficial até 1977, quando sua ultima edição foi disputada.

Até hoje ela é considerada por diversos historiadores de automobilismo o marco inicial das genuínas pistas de corrida.

Vincenzo, nós não nos esquecemos de você!

Mário Salustiano
Mário Salustiano
Entusiasta de automobilismo desde 1972, possui especial interesse pelas histórias pessoais e como os pilotos desenvolvem suas carreiras. Gosta de paralelos entre a F1 e o cotidiano.

10 Comments

  1. Excelente trabalho Mário, aguardamos os próximos.

  2. Manuel disse:

    Caro Mario, muito obrigado por esta bela lembrança. Continue procurando nessa gaveta da história.

    um abraço, Manuel

  3. Arlindo Silva disse:

    Ótima coluna Mário!

    Sucesso e abraço!

  4. Começou bem, Mário!
    Abraço, meu amigo.

    • Mário Salustiano disse:

      valeu meu amigo

      agradeço aqui o apoio e o estimulo que você e a turma do gepeto me deram para ter esse espaço, espero estar a altura do desafio

      abraços

  5. Fernando Marques disse:

    As corridas de estradas de certa forma foram substituidas pelos rallyes …

    Fernando MArques
    Niterói RJ

    • Mário Salustiano disse:

      tens razão meu amigo

      e os rallyes são fonte pura de muitas emoções, esse é o melhor lado que vejo no automobilismo e todas as suas categorias, temos muita “água” para beber na fonte, são histórias ricas e interessantes que podemos trazer ao debate

      abraços

      Mário

  6. Mauro Santana disse:

    Fantástico Mario, Fantástico!!!

    Uma pena uma prova desta não existir mais, e fico imaginando quantas e quantas histórias que não devem existir por todo aquele caminho.

    Parabéns!!

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

    • Mário Salustiano disse:

      pois é amigo Mauro

      foi pensando em todas essas histórias que estão caminhos afora que me veio a ideia de escrever esse texto

      abraços

      Mário

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