Maio varrido

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É quase um mantra: “poupe seu carro nas primeiras 150 voltas, apenas acompanhando o ritmo dos líderes e dê tudo de si e de seu equipamento nas 50 finais”. Nesta edição 2019 das 500 Milhas de Indianápolis, o vencedor resolveu quebrar essa lógica manjada de forma categórica para conquistar a mais famosa garrafa de leite do mundo.

O mantra de Simon Pagenaud foi algo mais ou menos assim “a liderança é minha e eu não divido com ninguém, vou correr de cara pro vento, assumindo todos os riscos quanto a consumo de combustível porque ninguém vai me alcançar”. Sim, até os pássaros cardinais sabem que é melhor voar em grupo e que o líder do V formado nos céus deve ser alternado, pois o líder do bando sempre mais faz esforço para cortar o ar.

Pagenaud não estava nem aí pra isso e liderou 116 das 200 voltas, sempre sendo o primeiro a abrir as rodadas de pits. Assumiu os riscos de consumir mais combustível que os outros e de, numa lógica simples, levar o carro ao limite por mais tempo. Os livros de história cuidarão de contar que “em 2019, Pagenaud resolveu vencer sendo líder o máximo possível”.

Foi mais ou menos o que Emerson Fittipaldi fez exatos 30 anos atrás, quando ganhou sua primeira, em 1989. Tinha um carro fantástico pra andar de cara pro vento e acabou liderando a maior parte do dia. O desfecho dramático contra Al Unser Jr. só ocorreu porque a Patrick Racing colocou combustível demais no último pit e deixou Emmo pesado em relação a Litlle Al.

A vitória de Pagenaud foi uma feliz combinação de um piloto determinado, motivado e mentalmente fortíssimo, um cenário de corrida em que o prejuízo do combustível foi anulado por bandeiras amarelas, um carro muito bem acertado paracorrida e ao longo da corrida (discorro sobre isso mais pra baixo), tudo embalado pela invejável estrutura Penske, que conquista sua 18ª vitória na pista.

Foi o fecho de um mês de maio perfeito para Pagenaud, iniciado com a vitória no GP de Indianápolis, em que ele cresceu demais quando a chuva chegou e superou ninguém menos que Scott Dixon nas voltas finais num passão de respeito.

Desde que foi campeão em 2016, Pagenaud parecia estar descendo a ladeira, sendo constantemente o pior carro Penske ano passado. Parece que aquelas voltas finais na chuva despertaram um monstrinho adormecido.

Aquela vontade visceral de vencer surgiu com intensidade. O monstrinho então comemorou muito a vitória do traçado misto, cravou a pole para as 500 Milhas e agora terá seu rosto forjado para sempre no troféu Borg&Warner.

Na língua inglesa existe a expressão to sweep quando você vence tudo de varrida. Nada mais adequado do que tirar uma foto com o vencedor do mês inteiro com uma vassoura na mão, junto à famosa faixa de tijolos.

Nenhum mês na vida de Pagenaud foi melhor que maio de 2019. Até porque a Penske já avisou que seu contrato, que estava a perigo, está renovado.

Que bom a última batalha do dia ter sido contra Alexander Rossi. Ele tem uma pilotagem incrível em Indianápolis, misturando técnica e agressividade na medida certa. Lembremos que ele venceu como rookie em 2016 quando foi desafiado no rádio por Bryan Herta a fazer um número de voltas praticamente impossível com um tanque de combustível, enquanto todos a sua frente foram para o splash and go.

A tática deu certo e ele recebeu a bandeirada da centésima edição com motor quase apagado, pescando as últimas gotas. Mas não pensem que foi golpe de sorte: o garoto já havia marcado a volta mais rápida e sempre andou no ritmo dos líderes. Nos últimos anos, Rossi tem sido o piloto mais destacado da Andretti. Apenas erros de juventude fizeram com que ele não fosse campeão da Indy ano passado contra o carimbadíssimo Scott Dixon.

Anotem: Rossi ainda vai ganhar mais uma edição por lá. E ainda vai ser campeão na Indy.

Se existe um coelho, é de se supor que exista também uma tartaruga. E ela atendia este ano por Scott Dixon. Não era propriamente uma tartaruga, pois provou que tinha no Ganassi #9 o carro mais veloz do dia. Foi dele a volta mais rápida da prova, o único a chegar à marca de 226 milhas por hora de média.

Dixon estava bancando a tartaruga porque estava unindo sua pilotagem finíssima à vocação do motor Honda ser ligeiramente mais econômico que o Chevrolet. Ele foi fazendo stints cada vez mais longos, chegando a estar com 14 voltas a mais de combustível que o líder Pagenaud. Isso é praticamente meio tanque.

Em determinado momento já seria possível procurar o pit para um mero splash e ganhar muitos e muitos segundos em cima de todos, pois sua distância para o líder era de apenas 5,5 segundos. Mas as bandeiras amarelas agiram como um Plano Collor em cima de toda a poupança de Dixon e nos privaram de saber se a tática da tartaruga daria certo.

Primeiro a da volta 138, provocada por Marcus Ericsson e sua falta de experiência com freios frios na entrada dos boxes – bandeira que salvou Rossi, com problemas no bocal de reabastecimento. E pela segunda amarela, na 178, da batida entre Graham Rahal e Sébastien Bourdais, em que Dixon saiu com o carro avariado. No fim, uma 17ª colocação, último na volta do líder, foi um resultado injusto pra quem tinha bom potencial para surpreender no final.

A melhor volta da prova, por Dixon, foi cravada no giro 40. Isso quer dizer que sim, a pista foi ficando mais “lenta” ao longo da corrida. Em três horas, temperatura, pressão atmosférica, quantidade de borracha no asfalto, intensidade e direção do vento mudam bastante no Indianapolis Motor Speedway. E os carros são muito sensíveis a isso, de modo que uma das exigências para se vencer essa prova é a de conseguir ajustar o carro no que for possível durante a corrida.

São poucos os expedientes disponíveis aos pilotos, mas cruciais para manter um bom desempenho. Entre as soluções estão os ajustes do spoiler dianteiro (aquelas “voltinhas” que o mecânico dão no bico para aumentar ou diminuir a carga aerodinâmica durante os pits), além das alavancas internas no cockpit para amolecer ou endurecer as suspensões dianteira e traseira, além da mais adequada calibragem dos pneus para cada momento prova, em busca da temperatura ideal de funcionamento dos compostos.

E aí vem a pergunta: quanto vale a sensibilidade de um piloto para recuperar um carro problemático? Pode valer vitória.

Em 1988, com apenas um terço de prova, o grande Rick Mears já estava uma volta atrás dos líderes. Enquanto seus companheiros Danny Sullivan e Al Unser Sr. iam bem, ele tinha problemas consideráveis de sobreviragem. Decidiu então passar um rádio, falando algo como “caras, vamos voltar para as rodas antigas, acho que o carro vai se comportar melhor”.

A Penske havia levado para Indianápolis naquele ano um desenho novo, estilo “calota”, inteiriça, com apenas três pequenos furos e que prometia diminuir o arrasto – mas que naquele momento gerava desconfiança em Rick. Imediatamente o time correu para os caminhões, achou alguns jogos de rodas antigas e correram para o caminhão da Goodyear para montar pneus nelas.

Ninguém ganha o apelido de Rei dos Ovais à toa. A chamada de Mears mudou o jogo. Aquele carro problemático ficou magistralmente estável. Ele descontou a volta e dominaria a prova a partir da volta 122. Decisão que rendeu a vitória.Apenas um cara chamado Emerson Fittipaldi chegou na mesma volta que ele.

Os ajustes finos durante a prova separam os homens dos meninos. Ed Carpenter, que tem sua própria equipe e todo ano coloca bons carros pra correr em Indianápolis, classificou seus três carros no chamado Fast Nine, os nove competidores que disputam a pole. Todos, claro, com a mesma regulagem, conseguida por ele.

Durante a corrida, só Ed conseguiu se manter no pelotão da frente, chegando em louvável sexta posição, enquanto seus companheiros e empregados Ed Jones e Spencer Pigot não mostraram a mesma sensibilidade de mudar o carro ao longo da corrida e ficaram para trás. Terminaram em 13º e 14º, respectivamente.

O que dizer da participação brasileira este ano? A Foyt não conseguiu repetir o bom acerto do ano passado e Tony Kanaan andou mais que o carro para ficar em nono, seis posições à frente do companheiro Matheus Leist, que pilotou com cuidado. Já Hélio Castroneves teve uma participação abaixo da crítica, talvez abalado pelo problema desastrado que teve em seu primeiro pit stop. Mesmo assim, já vinha sendo o Penske notadamente menos competitivo do grid. Uma pena, porque adoro carro nas cores da Pennzoil.

Não posso deixar de tecer algumas palavras sobre a não classificação de Fernando Alonso, que tanto quer a Tríplice Coroa, um desafio que é dos mais nobres dentro do esporte a motor.

A McLaren conseguiu misturar arrogância e despreparo em níveis tão elevados que o resultado é o maior vexame da escuderia fundada por Bruce em todos os tempos. O melhor texto sobre o episódio, da Associated Press, usa o termo “comédia de erros” em seu título. É bastante adequado.

Vou fazer um resumo das piores ocorrências:

– Quando chegaram para o primeiro teste de pista para Alonso, no Texas Motor Speedway, perceberam que não tinham… um volante para o carro. Sim, você leu direito. A McLaren ficou de produzir um, que deve estar sendo feito até agora. O diretor Zak Brown teve que ir pessoalmente à Cosworth pedir um volante padrão da fabricante para que a viagem não fosse totalmente perdida.

– Para a campanha em Indianápolis, a McLaren estaca associada à Carlin Motorsports. Sim, é um time respeitável, mas de berço europeu, que tem poucas horas de voo na Indy não entende lhufas de regulagens de oval, ainda mais num local tão específico quanto Indianápolis. Foi o time que apresentou o PIOR desempenho entre os concorrentes, abaixo até das equipes de ocasião.

Pra piorar, com a desistência da Harding, a Carlin assumiu o carro de Patricio O’Ward – muito mais trabalho do que podiam suportar. De tantos times com quem podiam se associar, foram escolher logo o mais fraco. O único carro da Carlin a se classificar foi o de Charlie Kimball, em 20º – pra fazer uma corrida horrorosa: 25º, tomando 4 voltas. Max Chilton foi o pior carro de todos (36º), seguido de O’Ward (35º) e… Alonso (34º). Sim, os três carros que ficaram de fora do grid eram todos da Carlin. Há muito venho dizendo que a McLaren deveria se associar com a Ed Carpenter Racing, justamente porque mostram serviço onde interessa: Indianápolis.

– Alonso bateu nos treinos, o carro titular ficou bem avariado. Onde estava seu carro reserva? Estava… numa oficina de pintura. Tudo porque o bólido, cuidado pela Carlin, não veio com o laranja “Papaya” da McLaren. Sim, você leu direito. Eles perderam DOIS DIAS de treino porque o tom de laranja não era o correto.

– No dia do Bump Day (Last Row Shootout), assim que Alonso saiu dos boxes, notou que o tal carro reserva (agora, uau, nas cores certas!) estava estranhíssimo, literalmente se arrastando no chão. Pra fazer as regulagens, houve uma confusão com medidas métricas e imperiais. Sim, você leu direito. Um erro ginasial. O carro saiu todo torto, embaraçosamente desregulado. Desnecessário dizer o quanto eles perderam de tempo pra desfazer esse imbróglio.

– Alonso tinha um carro pra fazer 229 milhas em sua última tentativa, com ajudas camaradas vindas da Carpenter e da Andretti. Mas não passava de 227. Por quê? Mais um erro, dessa vez na relação de marchas, que ficou curta demais.

Alonso fez o que pôde diante de tudo, mas acabou batido pelo jovem Kyle Kaiser, da minúscula equipe Juncos Racing. O asturiano tem parcela de culpa nesse vexame todo? Sim, claro que sim. Não apenas por ter se acidentado nos treinos, mas em eventos anteriores. Foi Alonso quem queimou pontes com a Honda e impediu que a McLaren continuasse com a parceria inteligente com a Andretti que foi tão elogiosa em 2017.

Ora, a Andretti tem vitórias e muita experiência em Indianápolis, além de sempre inscrever um monte de carros para a corrida, o que multiplica a capacidade de colher informações da pista na procura por acertos ideais para a qualificação e para a corrida.

Se há algo de positivo de todo esse episódio é que a McLaren foi tão vergonhosa que não dá pra fazer pior. Tendem apenas a melhorar. Se é que vão manter o programa de Indy.

Apenas passando aqui para lembrar que agora são 50 anos sem um Andretti vencer em Indianápolis. Marco Andretti até foi para a pista com pintura alusiva ao lendário layout vermelho-vivo da STP usado por seu avô Mario para vencer sua única edição em 1969.

Só que Marco foi o tempo todo o pior carro da Andretti na pista. Um desempenho bastante constrangedor. Deu pena de ver o velho Mario, falar com olhos brilhando, que nada lhe deixaria mais feliz do que a vitória do neto…

Pobre Mario…

Abração!

Lucas Giavoni

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

2 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Grande Lucas!!

    Como sempre, uma coluna Top, Parabéns!

    Essa edição foi muito show, com direito a Simon Pagenaud pegar o vácuo até do carro madrinha, quando estavam em bandeira amarela.

    Grande abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  2. Fernando Marques disse:

    Lucas,

    a dinâmica das 500 Milhas este ano não foi do meu agrado.
    Foi dificil ficar grudado na TV durante a corrida.
    O Rubergil JR. chamou a minha atenção (corretamente) em relação as minhas falhas de memória, mas ano passado foi bem melhor.

    Fernando Marques
    Niterói

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