Mil!

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As primeiras mil
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Luigi Musso, Pescara - 1957

O 63º GP da história da Fórmula 1 foi disputado em Pescara, na Itália, em 18 de setembro de 1957. Em sua programação oficial, os organizadores da prova não se preocuparam em precisar o horário da largada: ela aconteceria “próxima das 9h30”.

Já o milésimo GP de Fórmula 1, salvo pela ocorrência de um furacão, terremoto ou algo mais grave, terá a sua volta de apresentação autorizada no próximo domingo, dia 14, às 3h10m00 – três hora, dez minutos, zero segundos –, horário de Brasília.

O fato desta precisão ser sublinhada na TV pela exibição da evolução dos ponteiros do relógio e também o fato de o seu mostrador ter sido comercializado à Rolex são um bom exemplo das diferenças a separar Pescara da China, ainda que não se trate apenas de uma questão de pontualidade.

É bem mais do que isso: tecnologia, dinheiro, glamour, política etc. sempre estiveram presentes na categoria, mesmo que o peso de cada um destes itens tenha sido multiplicado muitas vezes nos 70 anos desde que Nino Farina e seu Alfa Romeo venceram o primeiro GP, o da Inglaterra, disputado em 13 de maio de 1950, em Silverstone.

A diferença não está nos ingredientes; está na intensidade e no entrelaçamento entre eles ou, para reduzir tudo a uma palavra, na complexidade gestada e assumida pela Fórmula 1 contemporânea.

Como todas as demais atividades humanas, as coisas se tornaram incrivelmente mais complexas na Fórmula 1. A mistura dos ingredientes já citados mais contratos, advogados, marketing, segurança, TV, patrocínios, interesses comerciais diretos e indiretos teceram uma teia enorme, pesada, difícil de ser movida, mais ainda de ser alterada, mesmo que em aspectos minúsculos. Cada possibilidade de receita ou de obtenção de vantagem competitiva foi de tal forma exasperada por organizadores, equipes, pilotos, imprensa, fornecedores etc. que transformou a Fórmula 1 em ambiente mais propício ao uso de termos como “cipoal”, “campo minado” e “areia movediça” do que “esporte”, “coragem” e “ousadia”.

Concordo inteiramente com você, leitor: foi uma péssima troca, esta, e explica em boa parte porque tantos perderam ou reduziram o interesse pela categoria.

E não há nada que possamos fazer: complexidade é o que nos cerca e a tendência é só piorar. Contratos pontuarão o nosso futuro. Tudo já é ou será regulado, cada vez mais, de forma mais minuciosa, deixando menos espaço para o improviso e para a surpresa.

Lutar contra a complexidade é inútil, frustrante, paralisador. Como cada elo que se pretende alterar pode influenciar o elo seguinte, toda e qualquer discussão se emaranha, se dilui e, não raro, se perde. Pense, por exemplo, na intermináveis discussões sobre a limitação dos efeitos das asas dianteiras. Vocês viram a simplicidade da asa do Dallara com o qual Fernando Alonso disputará Indy 500? Por que a Fórmula 1 não pode ter algo equivalente? Meses de discussão depois, chega-se a conclusão que a asa dianteira tem de ser limitada a 16 elementos horizontais e 12 verticais…

Como disse, esta mesma complexidade estende-se a todas as atividades humanas e estão aí as discussões em torno da previdência oficial. Diante de tudo, não estranho que, expostos a uma oportunidade de escolha, tantos tenham votado em candidatos de perfil autoritário, que prometam combater a complexidade à bala. Pobres coitados; serão devorados por ela, eleitores e eleitos.

De nossa parte, sempre é possível virar as costas à Fórmula 1. Menos mal que possamos abraçar a MotoVelocidade, como tantos leitores e colunistas do GPTotal fizeram. Há uns 25 anos, Roberto Agresti já me apontava este caminho, argumentando que via na categoria ambiente mais franco e risonho, que eu e ele vimos com nossos próprios olhos no comecinho da década de 70, varejando os boxes de Interlagos atrás da Fórmula 1.

Por qualquer motivo, não segui a recomendação do amigo e agora estou aqui, chupando os limões de minha amargura.

Stirling Moss, Pecara – 1957

Meu primeiro GP, Inglaterra 1970, foi o de número 191. Desde então, assisti com paixão juvenil a praticamente todos os GP transmitidos pela TV ou, em pessoa, os realizados em Interlagos, além do GP da Argentina de 72. Deve dar algo mais de 750 GPs.

Não se vê tanta corrida impunemente. A insensibilidade que o passar do tempo traz, a impaciência, o “eu já vi isso antes”, são inevitáveis. Me dei conta isso de forma avassaladora quando da morte de Ayrton Senna; ele não foi nem o primeiro, nem o segundo, nem o terceiro ídolo que pranteei na Fórmula 1.

Ao longo dos anos, projetei na categoria um diálogo com o mundo, algo que faço conscientemente (antes fazia inconscientemente) desde que li o admirável Mevitevendo, livro de crônicas de Artur da Távola, no qual ele fala do seu diálogo consigo próprio a partir da TV.

Artur se via dialogando com a TV, eu com a Fórmula 1.

Vi muitas coisas legais, outras nem tanto, já falei sobre isso aqui várias vezes, me perdoem as repetições. Mas foi um diálogo e o diálogo é sempre bom, mesmo que possa ter tons melancólicos e conduzir a uma crescente paralisia, que é como me encontro hoje, diante da complexidade, da Fórmula 1 e do mundo.

Não me rendi à solução mais simples, de tentar romper a complexidade como a um nó górdio. Fico feliz que esta tenha sido a lição que sobrou depois de tantos GPs.

O som e a fúria, ao menos para mim, significavam algo, afinal.

Grande abraço

Eduardo Correa

Eduardo Correa
Eduardo Correa
Jornalista, autor do livro "Fórmula 1, Pela Glória e Pela Pátria", acompanha a categoria desde 1968

4 Comments

  1. Rubergil Jr disse:

    Mais um texto primoroso.

    O futuro que cerca a categoria é tenebroso. Como será o próximo regulamento? Como serão os motores em 2021?

    Se fizer um regulamento que agrade às fabricantes de carros, fatalmente o esporte será deixado em segundo plano. Porém se fizer um regulamento esportivamente justo, não irá despertar o interesse de fabricantes e sem eles não há F-1…. Que fazer? É o desafio do Liberty Media.

  2. THIAGO VALERIO DA ROCHA disse:

    Grande Edu! Sempre preciso nas palavras da paixão por esse esporte. Grande Abraço!

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