No news, good news

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Virando para a direita
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Existem alguns ditados que se dedicam a ilustrar os critérios de agenda setting e explicar ao público leigo o que é ou não é notícia. Por alguma razão que me escapa, boa parte dessas frases se relacionam a cachorros: “notícia não é quando o cão morde o homem, mas quando o homem morde o cão”; “notícia não é quando o cachorro balança o rabo, mas quando o rabo balança o cachorro”; “notícia não é quando o cachorro faz xixi no poste, mas quando o poste faz xixi no cachorro”; e por aí vai. De todo modo, qualquer que seja a versão escolhida a moral continua a mesma: notícia, neste sentido restrito, é quando algo foge ao normal ou ao que era esperado.

Partindo dessa premissa, alguém que olhe apenas para os resultados das corridas deste domingo na Fórmula 1 e na MotoGP poderá ser perdoado por concluir que não houve muito a ser noticiado. Afinal, desde 2014 o resultado “normal” de um GP é ter Lewis Hamilton como vencedor. E, da mesma forma, já faz alguns anos que a Ducati tem se mostrado a moto a ser batida no acelera-freia de Spielberg, na Áustria. Uma nova vitória de Andrea Dovizioso por lá, somando-se às de 2019 e 2017, portanto, não chega a ser algo surpreendente, a despeito da fase em Borgo Panigale não ser das melhores.

No entanto, basta olhar para estas provas e seus respectivos contextos com um pouco mais de atenção para vermos que, por razões distintas, a aparente “falta de notícias” é, na verdade, uma relevante notícia em si mesma.

Começando pela Fórmula 1, Silverstone havia conseguido algo que parecia impossível. Em meio ao traçado que mais aplica energia aos pneus a Mercedes enfrentou problemas e, pela primeira vez nesta temporada, foi batida em igualdade de condições pela Red Bull guiada pelo indomável Max Verstappen, único conjunto que ainda ousa enfrentar as flechas negras. E por pouco, muito pouco, o holandês já não havia vencido também a corrida anterior, quando Hamilton teve de lidar com um pneu despedaçado nos metros finais da prova.

As duas corridas em Silverstone representaram um raio de esperança sobre uma temporada que se anuncia modorrenta, e muitos acreditaram que a história pudesse se repetir em Montmeló, em razão do impiedoso calor catalão nesta época do ano.

Estavam enganados.

Nos treinos a Mercedes mais uma vez monopolizou a primeira fila, e o melhor que Max conseguiu fazer foi bater Bottas (sem trocadilho, por favor) na drag race até a curva 1, posicionando-se na segunda colocação e tendo ainda o benefício de contar com Lance Stroll atrás de si, após excelente largada do piloto canadense. Quando Valtteri finalmente superou a Racing Point, as duas primeiras posições já estavam consolidadas.

O ordenamento após as primeiras curvas parecia interessante. Levando-se em conta que Hamilton deveria ter ritmo de prova mais forte que o do rival holandês, em tese ambos teriam pista livre à frente para que pudessem levar adiante a batalha em torno de quem arrancaria mais performance por parte dos pneus, e por quanto tempo. Logo, no entanto, essa leitura cairia por terra. Hamilton simplesmente não se distanciava na liderança, mantendo Verstappen na desconfortável zona de turbulência, onde a pressão aerodinâmica é menor, o carro escorrega mais e os pneus se desgastam prematuramente. Um rádio recuperado nesta altura da prova mostrava Verstappen surpreso dizendo à equipe que Hamilton estava andando “super devagar”.

A mensagem de Max sugere que seu ritmo natural teria sido mais forte, e que sua progressão acabou sendo quebrada logo no início. Para piorar, seus pneus se desgastaram mais rapidamente, levando-o aos boxes antes dos rivais diretos. E, se a decisão tivesse dependido apenas dele, a troca teria ocorrido ainda mais cedo.

Da forma como tudo se desenrolou, Verstappen teve de enfrentar as Mercedes no segundo stint fazendo uso de pneus que já acumulavam mais desgaste, e a presença próxima de Bottas o obrigou a antecipar também a segunda parada tão logo a janela de duração dos compostos médios permitiu que ele fosse capaz de levar o carro até a bandeirada sem parar mais uma vez, a fim de evitar que o finlandês se antecipasse e ganhasse a posição nos boxes. A Mercedes, por sua vez, não era ameaçada por ninguém e se permitiu aproveitar toda a vida útil dos pneus, retardando a segunda troca a ponto de calçar seus carros com borracha macia para as voltas finais.

Ao colocar tudo isso na balança, o fato de Verstappen ter conseguido sustentar a segunda colocação chega a ser surpreendente e faz parecer que ele teve de se esforçar mais que os rivais para chegar onde chegou. Uma impressão recorrente que tem levado muita gente a apontá-lo como o piloto do ano até aqui. Tal interpretação, todavia, talvez não seja justa com Hamilton, pelo simples fato de que nos últimos anos raramente ele tem sido exigido ao limite para seguir vencendo. Ora, se é possível vencer andando a 95% da força máxima, por que assumir riscos desnecessários? Tampouco parece justa com a Mercedes, que reagiu rapidamente aos problemas de Silverstone e tratou de proteger seus pneus, mesmo em condições desafiadoras.

Seria muito interessante, no entanto, se pudéssemos ver Lewis e Max dividindo os mesmos boxes no futuro próximo, por mais improvável que isso pareça na geração atual.

Os “não acontecimentos” da F1, no entanto, são brincadeira de criança perto daquilo que esteve perto demais de acontecer na etapa austríaca da MotoGP.

Dando materialidade ao risco evidente representado por um trecho de alta velocidade no qual vira-se levemente à esquerda em meio à aproximação de um “cotovelo” à direita, onde veículos que eventualmente escapem por fora seguirão pela grama em velocidade rumo a alvos lateralizados e quase estáticos, uma tragédia de enormes proporções deixou de acontecer em razão de algo que só pode ser descrito como um milagre, quer o leitor creia neles ou não.

Sendo atacado por Franco Morbidelli, Johann Zarco fechou a porta de maneira tardia e incompreensível, dando início ao que, numa conjunção astrológica menos favorável, teria terminado em carnificina. As duas motos seguiram sem pilotos rumo à curva 2, onde as Yamahas de Viñales e Rossi se encontravam, sem qualquer conhecimento a respeito do que se passava.

As imagens do quão perto os dois pilotos estiveram de receber impactos potencialmente mortais são de gelar a espinha, e me fazem aqui, publicamente, agradecer a Deus por não estar escrevendo um ou mais obituários, tanto mais daquele que há muitos anos é o piloto que mais admiro no esporte a motor.

A forma como relargou e levou sua moto a uma competente 5ª colocação – a melhor entre as Yamahas – acrescenta mais um episódio de bravura à carreira de Valentino Rossi, que neste domingo nasceu de novo. Num ser humano normal, esse tipo de situação poderia muito bem ser encarada como um sinal de que o débito para com o anjo da guarda já está alto demais, e o momento de saborear outros prazeres reservados a uma lenda viva talvez tenha chegado.

Não há, no entanto, nada de normal nesses pilotos.

Ainda bem.

Márcio Madeira

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

3 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Marcio,

    a vitória de Hamlton no GP da Espanha apenas confirma o que já está confirmado …não há na Formula 1 um conjunto piloto/carro para bate-lo no campeonato …pode acontecer numa etapa especifica, como foi em Silverstone, mas nunca no campeonato …
    O que aconteceu na Moto GP foi algo de surreal … apavorante mas ao mesmo tempo magnifico … e melhor … ninguém se machucou

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  2. Carlos Chiesa disse:

    Excelente análise. Como de hábito. Mas desta vez conseguiu cobrir 2 categorias top. Levanto meu boné.

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