Nós somos um idiota

Vem aí o primeiro livro do GPtotal
19/01/2005
O TOURO E AS VAQUINHAS
24/01/2005

A Ferrari renovou com Bernie Ecclestone até 2012, a Fórmula 1, pelo menos até lá, está salva e agora posso afirmar com todas as letras: nós (o plural é majestático, como convém a situações solenes, não tendo nada a ver com você, leitor) somos um idiota.

Idiota por perder tempo achando que as piranhas (os donos das equipes) não se entenderiam com a piranha-mor, Mr. Bernie, o próprio. Idiota por temer que o dinheiro não se arreglaria com dinheiro, o poder com poder. Idiota por ter vibrado com aquela carta “legalista” de Ron Dennis e Frank Williams (lembram-se dela? O idiota aqui até a distribuiu pelo e-mail) e com as palavras de Luca di Montezemolo, que disse em entrevista a AutoSprint algo do gênero: “organizar a Fórmula 1 não é um trabalho tão extraordinário porque, com todo respeito a Ecclestone, ele o faz com Lattuneddu e dez ragazzotti.
Ou seja, não estamos falando da Nasa.”

Mudou Montezemolo, Bernie ou a Nasa? Talvez tenhamos apenas visto mais uma aplicação da lição imortal de Lampeduza: as coisas precisam mudar para continuarem iguais. Talvez Bernie tenha aumentado a grana da Ferrari e tudo ficou por isso mesmo. Mas o idiota aqui, provavelmente, continuará igual.

E vocês vão ter de me engolir.

///

Não sou, vocês já devem ter percebido, um cara propriamente sucinto. Em minhasmãos, os assuntos se desdobram e alargam, tenho dificuldades em abandona-los e sempre acho que fiquei devendo uma informação ao leitor.

Então vocês podem fazer uma idéia da minha angústia em tentar reduzir em pouco mais de duas mil palavras a história recente da Fórmula 1, como fiz (ou tentei fazer) em minhas colunas de 6 e 10 de janeiro.

Me perdoem, portanto, voltar a um tema que, acho, merece mais explicações: a mudança no estilo de pilotagem ao longo dos anos 70/80, com o advento do efeito-solo e dos motores turbo.

Este salto de potência dos carros, de algo como 500 para 1000 cavalos, e de velocidade em curva, em alguns casos, de uns 20%, foram o ponto de partida de toda uma série de desdobramentos que trouxeram para a categoria muitos dos seus problemas atuais.

Por exemplo: os pilotos passaram a necessitar de muito mais força física para conduzir os carros. Como explica Niki Lauda em sua autobiografia Minha História, um dos mais admiráveis depoimentos de piloto que jamais li (e fica aqui a dica para Alessandra Alves, nossa valente boss da Editora GPTotal), manter a cabeça ereta durante a corrida tornou-se um problema. Licença para reproduzir trechos do livro, em espanhol mesmo pois não quero trair ninguém:

“al poner la marcha seguiente, el impulso del turbo te tira la cabeza hacia atrás, luego llegas al límite de revoluciones y tu cabeza vuela hacia adelante, metes la marcha seguiente, tu cabeza es desplezada hacia atrás. y así tres veces consecutivas”.

E também, falando aqui especificamente dos carros asas:

“la fuerza de gravedad se acentuaba tanto en las curvas, que era imposible mantener erquida la cabeza junto con el casco”.

E mais, falando sobre os impactos sofridos pelo corpo do piloto tão logo os carros, quase que desprovidos de suspensão, passavam sobre a mais insignificante irregularidade da pista:

“En las rectas de Monza, por ejemplo, era tan tremendo que sentías los golpes simultáneamente en la columna vertebral y también en la cabeza. Daban ganas de llorar de dolor y de impotente rabia. Andabamos a los saltos como animales enloquecidos, ese era nuestro job”.

Graças a estas e outras informações de Lauda, podemos entender algumas coisas da Fórmula 1 de hoje:

1 – porque a preparação física, um luxo de poucos pilotos nos anos 70, tornou-se um imperativo atual, com seus desdobramentos inevitáveis. Experimente passar duas ou três horas por dia, sete dias por semana, numa academia, caprichando na preparação aeróbica (corrida a pé, por exemplo) e anairóbica (musculação) e depois me diga se terá animo para farras, como as que notabilizaram pilotos como Mike Hailwood e James Hunt. Chico Rosa, empresário de José Carlos Pace durante os anos dele de Fórmula 1, me contou que, ao chegar aos hotéis às vésperas de um GP, se preocupava em conseguir um quarto bem distante do de Hailwood, pois só assim garantiria para ele e Pace uma boa noite de sono.

2 – O salto de potência dos motores tornou imprescindível o avanço da eletrônica embarcada. Acho que não erro em dizer que a corrida da eletrônica começou com o refinamento dos controladores de giro do motor, de forma a conter um pouco os
problemas decorrente dos saltos de potência na passagem das marchas. Não que os projetistas estivessem particularmente preocupados com o conforto dos pilotos mas é que estes saltos causavam spins incontroláveis nas rodas traseiras, limando os pneus e comprometendo o desempenho.
Desencadeada a corrida eletrônica, ninguém mais a segurou.

3 – O crescimento da velocidade em curva significou o começo do fim da dupla de Lesmo, em Monza, Curvas 1 e 2 de Interlagos, Stowe, em Silverstone, e tantas outras curvas velozes que separavam meninos de homens.

É por isso que os pilotos de hoje demonstram tanta surpresa e admiração pelos seus colegas mais velhos quando pilotam carros daquela época. O amigo Manuel Carvalho, de Santos, e este propósito, envia frase de Damon Hill, sobre os carros do passado: “I can’t drive these cars; they don’t stop, they don’t turn in, they don’t do anything. I don’t know how you guys did it”.

Bom final de semana a todos

Eduardo Correa
Eduardo Correa
Eduardo Correa
Jornalista, autor do livro "Fórmula 1, Pela Glória e Pela Pátria", acompanha a categoria desde 1968

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *