O mecânico mais veloz do mundo – parte 1

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O mecânico mais veloz do mundo – parte 2
06/11/2017

Caracciola e von Brauchitsch, as estrelas de primeira grandeza da Mercedes Grand Prix (pré 2a. Guerra), eram Hochwohlgeborene (gentlemen). Rudi era descendente de um nobre italiano que foi comandante de uma fortaleza alemã em outros tempos e o prefixo von é um designativo da nobreza teutônica. Não era o caso de Hermann Lang.

Um homem comum, nascido em 1909 em Bad Cannstatt, nas redondezas de Stuttgart. O caçula entre 4 irmãos. Seu pai morreu quando tinha 14 anos e para a família sobreviver foi ser aprendiz de mecânico de moto.

Logo o gosto pelas corridas se instala e as motos são o meio mais barato de competir naquele período economicamente frágil para a Alemanha pós-1a. Guerra.

Com suas economias compra uma velha Norton, que ele mesmo prepara, e obtém a vitoria entre os amadores em sua primeira corrida, em 1927, no circuito Solitude em Stuttgart.

Interessou-se pelas corridas de sidecar e torna-se piloto da equipe oficial da fabrica de motocicletas alemã Standard.  Ao invés de duas rodas, tres.

Vai colecionando vitórias e em 1931 se torna campeão alemão de subida de montanha em sidecars.  Sucesso, mas longe de o tornar financeiramente independente.

Ao contrário, com a Alemanha ainda em dificuldades, tendo que pagar uma colossal dívida de guerra, ele se viu desempregado. Vida difícil, e ele volta a procurar emprego como mecânico enquanto trabalha como piloto de… locomotiva.

Em 33 a Daimler-Benz o contrata como mecânico para o Departamento Experimental, leia-se útero das Silver Arrow. Nessa condição ele era encarregado, ocasionalmente, de testar os freios dos carros da fórmula 750 quilos.

Num desses testes, em Monza, Jakob Krauss, o responsável pelo departamento de bodywork, pergunta se ele ainda é o homem que se destacou tanto nos sidecar.

Lang não hesita em afirmar que sim.

Krauss não esquece disso e algum tempo depois o transfere para o departamento de testes, onde ele cumpre incontáveis quilômetros testando os carros de passeio.

Mas não era seu destino final. Ele é destacado para ser o principal mecânico do carro de Luigi Fagioli, e com isso tem a chance de guiar ocasionalmente, e andar forte.

Um dia ele é chamado ao escritorio de Neubauer, o chefe do departamento de corridas.

Este conta que Krauss o havia recomendado para um teste para pilotos novatos.

O talento aparece e ele passa a ser piloto reserva, sem deixar suas funções de mecânico de Fagioli. A experiência de Lang em tres rodas, e não duas, era uma vantagem, segundo ele, porque a aproximação das curvas era similar à de quatro rodas.

Em 1935 ele participa de várias corridas, fazendo seu aprendizado de piloto de GP.

Mas a ascenção de um johann-ninguém não foi bem vista por Rudi e von B.

Era uma situação inédita, em um esporte para bem-nascidos. Caratsch, em particular, se sentiu muito incomodado, a ponto de, mais à frente, achar que Lang era intencionalmente favorecido.

Seja como for, a relação entre eles passou a ser conturbada e Neubauer teve que se empenhar para não comprometer o espirito de equipe.

Mesmo assim, Lang posteriormente disse: “Não importa o que possa acontecer entre Caratsch e eu, uma coisa tenho que admitir, com toda franqueza: ele sempre foi meu ideal, o maior piloto de todos. Sua tocada tremendamente elegante era inigualável.  Eu nunca parei de estudá-lo e de admirá-lo.”

Rudi e von Brauchitsch eram pilotos da escola tradicional, não se interessavam pelos aspectos mecânicos do carro. Lang era o oposto. Era um mecânico que pilotava e não tinha problema algum em pegar uma ferramenta e participar dos ajustes. Por isso os mecânicos o adoravam, era um “deles” subindo na vida, lutando de igual para igual com aqueles nobres, aqueles representantes das altas camadas.

Por isso sempre que podiam tratavam de dar alguma coisa a mais para o carro de seu colega Hermann.

Em 1936 ele participa de sua primeira corrida como piloto da Mercedes-Benz, na International Eifel Race, e termina em quinto.

Não foi um bom ano mas fez o suficiente para receber um convite do Dr. Porsche para fazer parte da equipe da Auto Union.

Ele argumenta que a Mercedes é quem tinha lhe dado a primeira chance e por isso se sentia na obrigação de ser leal a ela.

Não por acaso seu contrato foi renovado logo em seguida.

Em 37 a equipe acabou ficando dividida entre um senior team, Rudi/von Brauchitsch e um junior team, com o ingles Dick Seaman e Lang. Essa divisão começou a se aprofundar ao longo do tempo e novamente Neubauer teve que se esforçar para manter a equipe trabalhando unida.

A temporada começa em Tripoli e Lang obtém sua primeira vitória, 10 segundos à frente da estrela maior da Auto Union, Rosemeyer. Lang e sua esposa faltam à festa de comemoração de sua primeira vitória. Simplesmente não tinha roupas adequadas! Ele era o rapaz pobre mesmo.

Há uma frase de von Brauchitsch que dá uma pista da barreira que Lang tinha que vencer, além das pistas: “- Champanhe para Rudi e para mim, e uma limonada para o garoto.”

Para Avus a equipe leva carros com carenagem, streamlined. Nos treinos experimentam uma solução radical, com as rodas cobertas. Lang sai para testar um desses carros e, quando estava perto dos 400km/h a frente do carro levanta do chão. Ele só pode ver o céu!  Está andando apoiado somente nas rodas traseiras! Como um avião com bequilha indo para a cabeceira da pista! Imediatamente Hermann começa a diminuir a velocidade, tomando o cuidado de manter as rodas retas. Depois de uma eternidade a frente literalmente aterrisa na pista. Ele chega aos boxes branco e não tem muita dificuldade em convencer a equipe a remover a cobertura das rodas.

Ele prova que o susto não o abalou vencendo a corrida.

Eram as duas corridas mais velozes do campeonato.

Em Brno (Tchecoslováquia) ele tem o único acidente grave de sua carreira. Ele derrapa na terra jogada na pista por outros pilotos, é jogado para fora do carro, que segue desgovernado matando dois espectadores. Por uma sorte incrível Hermann sofre apenas alguns cortes.

A sequência dessa história você vê na próxima segunda-feira.

Carlos Chiesa
Carlos Chiesa
Publicitário, criou campanhas para VW, Ford e Fiat. Ganhou inúmeros prêmios nessa atividade, inclusive 2 Grand Prix. Acompanha F1 desde os primeiros sucessos do Emerson Fittipaldi.

7 Comments

  1. PH disse:

    Maravilha, von Chiesa!
    Fast and curious!
    Abraço

  2. Mauro Santana disse:

    Que tema incrível, Chiesa!

    Ansioso pela próxima parte.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba PR

  3. Fernando Marques disse:

    Chiesa,

    Que bela historia … que só poderia ser contada aqui no GEPETO … como para mim tudo é novidade fico aqui já ansioso pela 2ª parte ….

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Carlos Chiesa disse:

      Muito obrigado por seu comentário, Fernando. Os americanos tem uma expressão interessante, “the big picture.” quando querem dizer que você precisa olhar o todo. Nós sabemos também que para ter uma idéia mais realista dos impactos que vivenciamos é preciso distanciamento histórico. Por isso tenho muito cuidado quando leio que pilotos de destaque da geração atual ou imediatamente anterior estão entre os maiores de todos os tempos. Talvez estejam, nada contra, mas será que quem emitiu essa opinião levou em conta essa turma do pré-guerra? Se não levou, deveria ter observado. E é por isso que acabo voltando ao tema. Não é porque passou muito tempo que devem ser esquecidos e avaliados conforme as circunstâncias da época. Forte abraço

      • Fernando Marques disse:

        Chiesa,

        vou mais além … a Formula 1 se quiser voltar ao que era em seus bons e verdadeiros tempos de outrora precisa estudar seu próprio passado …

        Fernando Marques

        • Carlos Chiesa disse:

          Também acho que é preciso estudar o passado, no automobilismo e em qualquer outra atividade. Costumo dizer que na vida você tem que olhar o passado como olha o retrovisor, não é o foco principal mas não se pode perder de vista. Infelizmente, pelo que vejo na maioria dos comentários sobre videos antigos, é raro alguém ter alguma ideia do contexto histórico e seu valor.

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