O melhor de todos os tempos – final

O melhor de todos os tempos – parte 3
07/08/2017
Senhoras e Senhores, o M23
11/08/2017

Relembre os capítulos anteriores clicando aqui.

1938 começa com uma tragédia.

Mercedes e Auto Union comparecem no mesmo dia, 28 de janeiro, a um determinado trecho da Autobhan que liga Frankfurt a Darmstadt, com o mesmo objetivo: bater recordes de velocidade pura. A Auto Union detinha os recordes, a Mercedes queria bater e a outra rebater.

As especificações técnicas regulamentares estavam baseadas na capacidade do motor, e assim ambas podiam utilizar como base seus carros de GP.

Rudi começa, com um W125 especialmente carenado (Rekordwagen) e com motor mais potente.

Ele estabelece 432,7km/h para o quilometro lançado e 432,4km/h para a milha lançada, recordes que permanecem até hoje.

Quando é a vez de Bernd, ele é atingido por uma rajada de vento quando estava a mais de 400km/h. O carro é jogado para fora da pista, capota duas vezes e Bernd morre.

Isso causou profunda impressão em Caracciola: “Qual o sentido de homens darem caça um ao outro até a morte por causa de alguns segundos? Para servir ao progresso? Para servir à humanidade? Que frase ridícula em face da grande realidade da morte. Mas então… Por que? Por que? E pela primeira vez, naquele momento, senti que toda vida é vivida de acordo com suas próprias leis. E a lei para um lutador é: imolar-se até a última fibra, não importa o que aconteça com as cinzas.”

A formula para 1938 tinha mudado novamente, com o abandono do sistema anterior baseado em restrições de peso, passando a limitar o deslocamento dos pistões.

O novo Mercedes W154 mostrou-se competitivo, com von B vencendo na França, Rudi em segundo e Lang em terceiro, barba-cabelo-bigode.

Caratsch vence o GP da Suíça, debaixo de chuva. Seu colega, o ingles Dick Seaman, liderou por 11 voltas mas foi ultrapassado.

Rudi vence a Coppa Acerbo, termina em segundo na França, Alemanha e Pau; terceiro em Tripoli e Italia, e assim obtém o campeonato pela terceira e última vez.

1939 começa sob a sombra da guerra e mais uma tragédia.

O primeiro GP, da Bélgica, acontece somente em Junho. Chuva pesada. Até Rudi sai fora da pista, na La Source, tendo que empurrar seu carro para trás das árvores por segurança. Nessa mesma curva, mais tarde, Dick Seaman roda, bate e seu carro irrompe em chamas. Desacordado ou impossibilitado de se mover, ele é consumido pelo fogo. Morre no hospital naquela noite.

A equipe inteira vai a Londres para seu funeral. Alemães e ingleses ainda não eram inimigos.

Mas nem tudo era harmônico. Caratsch acha que a equipe está favorecendo Lang.

Escreve uma carta ao CEO, Dr. Wilhelm Kissel:

“Vejo poucas chances de mudança nessa situação. Começando com o Sr. Sailer (Max Sailer, diretor da divisão de competições da Mercedes) até Neubauer, passando pelos mecânicos, há uma obsessão por Lang. O sr. Neubauer admitiu francamente ao sr. von Brauchitsch que estava apoiando o homem que tinha sorte, para quem o sol brilhava… Eu realmente gosto de correr e quero continuar pilotando por muito tempo. No entanto, isto pressupõe que eu lute com as mesmas armas que meus colegas de equipe. Isto parece difícil de ocorrer, uma vez que a quase totalidade dos mecânicos e dos especialistas em motores estão do lado de Lang.”

De certa forma, o “nobre italiano da Rheinland” se incomodava com o suábio vindo do povo, por diversos motivos.

Lang foi declarado campeão pela NSKK (Nationalsozialistisches Kraftahrkorps – Corpo Motorizado Nacional Socialista, em tradução livre). Isso nunca foi ratificado pela AIACR e  Herman Paul Müller, piloto da Auto Union, poderia ser declarado campeão pelo sistema oficial de pontuação, mas a guerra interrompeu a disputa.

Com o início da guerra, Rudi e Baby foram para Lugano e lá ficaram até o fim do conflito.

Inatividade total, devido ao racionamento de combustível.

A dor na perna piorou e ele voltaram à clínica de Bologna para consultar o especialista que o tinha atendido após o acidente. Ele recomendou cirurgia mas Rudi preferiu declinar dessa solução.

Hoje a cirurgia para implante de prótese na cabeça do femur é corriqueira e feita frequentemente em idosos.Mas naquela época…

A partir de 1941 Caracciola passou boa parte do tempo tentando tomar posse das duas W165s que competiram no GP de Tripoli de 1939, para que não se perdessem no meio da guerra. Quando conseguiu, no início de 1945, as autoridades suíças as confiscaram como propriedade da Alemanha.

Terminada a guerra, ele é convidado a participar da Indy 500 de 1946. Ele tencionava usar uma das W165s mas não conseguiu que fosse liberada a tempo. Mesmo assim foi para os EUA para assistir a corrida. Joe Thorne, dono de uma equipe local, ofereceu a ele uma das suas Thorne Engineering Specials. Era como oferecer água a um viajante que acaba de atravessar o deserto. Caracciola aceitou alegrementemas durante um treino foi atingido na cabeça por um objeto, talvez um pássaro, e acabou batendo na muro sul. A sorte é que estava usando um capacete de metal, aparentemente usado por tripulantes de tanque, e só o estava usando porque os organizadores insistiram. Mesmo assim ele sofreu uma severa concussão e permaneceu em coma por vários dias.

Em 1952 a Mercedes está de volta às pistas, graças ao milagre econômico alemão, e trata de reunir a turma para guiar o novo W194, outra criação de Uhlenhaut, em corridas de carros esporte. A primeira prova importante é a Mille Miglia. Karl Kling termina em segundo, Caractsh em quarto. Posteriormente surgiu o boato de que o carro dele tinha um motor menos potente, talvez por causa da falta de  tempo de preparação para essa corrida.

Carros esporte faziam corrida de aquecimento para o GP da Suíça e a Mercedes levou suas 300SLGullwing para lá.A de Caracciola teve uma roda traseira bloqueada quando ele duelava com seu velho rival Hermann Lang e saiu fora da pista indo bater em uma árvore. Fratura na parte de baixo da perna esquerda, praticamente esmagada. Seis meses engessado, dois anos em cadeira de rodas.

Quando as Silver Arrows voltaram ao circuito Grand Prix com as W196 totalmente carenadas, fazendo dobradinha logo na estréia, Fangio vencendo Kling por margem muito pequena, Caracciola estava reaprendendo a andar. Tinha chegado o momento de abandonar sua tão amada, longeva e extraordinária carreira.

Depois de recuperado passa a atuar como homem de vendas da Daimler, focando nas tropas da OTAN estacionadas na Europa.

Ele organiza shows e demonstrações em bases militares, obtendo bons resultados para a cia..

No inicio de 1959 ele adoece, apresentando sinais de icterícia, que pioram apesar do tratamento. Alguns meses depois é diagnosticada cirrose avançada. Em 28 de setembro ele morre em Kassel, quando seu fígado deixa de funcionar. Tinha 58 anos. Está enterrado em Lugano.

Como Caracciola lidou com o nazismo?

A partir de 1933, com a chegada ao poder do partido nazista, tornou-se impossível para qualquer celebridade alemã vivendo na Alemanha não ser exposta à máquina de propaganda, portanto ser colocada compulsoriamente a serviço dos interesses do Führer.

Caracciola encontrou Hitler pela primeira vez em 1931. O líder máximo do partido nazista tinha encomendado uma Mercedes 770, top de linha. Mas sua lista de especificações era tão extensa que a linha de produção atrasou. Para abrandar a mais que provável irritação do futuro ditador, Rudi foi escalado para entregar o carro, em Munique. Ele levou Hitler e sua sobrinha para dar uma volta pela cidade e relatou – depois da guerra – não ter ficado bem impressionado, achou que aquele sujeito não tinha qualificação para governar a Alemanha.

Como a grande maioria de seus colegas, Rudi não tinha muito como recusar fazer parte da NSKK, organização paramilitar dedicada aos esportes a motor. Ao final das corridas, os ases alemães eram obrigados a participar de eventos organizados pelo líder do NSKK, Adolf Hühnlein, diante do público e de autoridades do partido. Consta que Caracciola nunca foi um membro ativo dessa organização e é sabido que nunca se filiou ao partido nazista.

Tinha residência em Lugano desde o início dos anos 30.

Durante a guerra, mesmo fora da Alemanha continuou a receber seu salário até 1942, quando a Mercedes cedeu à pressão nazista e suspendeu.

Resultados.

Venceu mais de 100 corridas e 28 GPs. Versátil, também venceu 3 vezes consecutivas o campeonato europeu de Subida de Montanha (1930~32). O recorde de seis vitórias no GP da Alemanha permanece com ele até hoje. A curva Karussel de Nurburgring passou a ser chamada de Caracciola Karussel.

O lendário Alfred Neubauer, seguramente um dos maiores chefe de equipe de todos os tempos na categoria máxima do automobilismo, que o conheceu melhor que qualquer outro chefe, disse o seguinte a seu respeito: “… entre todos os pilotos que conheci, Nuvolari, Rosemeyer, Lang, Moss ou Fangio, Caracciola foi o maior de todos.

Carlos Chiesa
Carlos Chiesa
Publicitário, criou campanhas para VW, Ford e Fiat. Ganhou inúmeros prêmios nessa atividade, inclusive 2 Grand Prix. Acompanha F1 desde os primeiros sucessos do Emerson Fittipaldi.

6 Comments

  1. Carlos Chiesa disse:

    Pessoal, me desculpem a ausencia, estive viajando e não pude acessar. Agradeço imensamente os generosos elogios. Rubergil, obrigado pelos complementos, completamente adequados. Annibal, entendo que você concorda comigo, que qualquer exame sobre o tema “os melhores pilotos de todos os tempos”, no plural ou no singular, não pode deixar de estudar Caratsch e seus contemporâneos.

  2. Annibal Magalhães disse:

    Parabéns por nos continuar a brindar com essas colunas da “Década de Ouro.”
    Apesar das mudanças ocasionadas pela Segunda Guerra, considero a divisão dos GPs no antes e depois é nutrida mais pela F-1 do que pelos acontecimentos bélicos.
    A F-1 se alicerçou no legado construído até aquele momento, como equipes, circuitos, autódromos lendários (Ferrari, Alfa, Mercedes, Nurburgring, Spa, Monza, Mônaco . . .)
    Não sabemos até quando irá durar a categoria máxima, mas as corridas de Grande Prêmio continuarão a existir sem ela. E no final, isso é o que vale.

  3. Rubergil Jr. disse:

    Chiesa, seu texto está impecável e maravilhoso, mas permita-me 2 complementos. São textos aqui do GPTotal, um do Ico sobre Rudi (apenas completa a passagem deste em Indy) e um outro seu mesmo, sobre Bernd Rosemeyer:

    http://gptotal.com.br/2005/Colunas/LuisFernando/20070620.html
    http://gptotal.com.br/2005/Convidados/Chiesa/20090325.html

    Abraço!

    Rubergil Jr

  4. Mauro Santana disse:

    Show Chiesa, Parabéns, fechou de maneira magnífica!!!

    Concordo com o amigo Fernando, Caricciola foi o maior de todos!

    E que tempos eram aqueles, uma espécie de era medieval do automobilismo.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  5. Fernando Marques disse:

    Chiesa,

    simplesmente sublime “O melhor de todos os tempos”.
    Rudi Caracciola foi o maior de todos.
    Com toda certeza

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  6. Rubergil Jr. disse:

    Belíssima história! Uma homenagem digna da história deste homem.

    Caracciola é uma lenda e um dos monstros desta época. Tanto pela habilidade como pela coragem.

    Rubergil Jr

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