O PILOTO E O FOTÓGRAFO

Aí que saudade do meu volante…
26/10/2001
Grandes pilotos, grandes mancadas
31/10/2001

Edu,

Vamos falar de coisas boas? Gil de Ferran, bicampeão da Fórmula CART/Indy/Mundial (escolha o nome que preferir…), merece nossos cumprimentos. Reverteu no final do campeonato uma campanha que já parecia perdida para ele. Fiquei contente, é um prêmio justo a um bom piloto que teve competência, capacidade de julgamento e serenidade para reconhecer as melhores oportunidades profissionais para si e aproveitá-las.

O Gil poderia ter insistido em tentar a F 1, mas percebeu cedo que tinha melhores perspectivas na CART/Indy/Mundial. Mudou-se de mala e cuia para os Estados Unidos e vem se dando muito bem. Merece os bons resultados que vem conseguindo.

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Muita gente talvez não saiba que o Gil fez alguns testes com carros de F 1. O primeiro foi no final de 1992: ele andou no Williams-Renault daquele ano como prêmio pelo título inglês da F 3. Foi em Silverstone, o tempo estava tipicamente britânico (nublado e com chuvas esparsas) e ele acabou virando mais rápido que Alain Prost, que estava testando o Williams visando a temporada seguinte. No ano seguinte, ele teve oportunidade de testar um Footwork (Arrows) em Estoril e, em 1994, guiou um McLaren apenas para fazer filmagens. No ano seguinte, estreou na Indy.

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O Gil é amigo de infância do Luca Bassani, um dos melhores fotógrafos brasileiros de automobilismo. Ambos correram juntos no kart, estudaram juntos e depois cada um seguiu seu caminho, mas sempre se cruzando em função do gosto em comum por corridas. É claro que um fica sempre feliz pelo sucesso do outro, mas houve uma época em que o Gil preferia saber que o amigo estava bem longe. Parece incrível, mas corrida que o Luca cobrisse era garantia de que o Gil se acidentaria na primeira curva.

Em 1992, o Gil disputava o Campeonato Britânico de F 3. Tradicionalmente, uma das etapas é preliminar do GP da Inglaterra e todos os pilotos encaram essa corrida como a mais importante do ano. O Gil, líder, havia pontuado em todas as etapas disputadas até ali. Evidentemente, contava em conseguir mais um bom resultado na frente de todos os chefes das equipes da F 1. O Luca, por sua vez, viajou a Silverstone para cobrir as corridas de F 1 e F 3 para a Auto Esporte.

Chega a hora da corrida de F 3 e o Luca fica na primeira curva, esperando fotografar o Gil liderando o pelotão. Largada, um toque, o Gil saiu da pista e abandonou ali mesmo, bem na frente do Luca. Foi o primeiro abandono do ano… Felizmente não atrapalhou a conquista do título.

Em 1993, o Gil disputava a F 3000 e foi convidado pela Footwork (nome que a Arrows usava na época) para testar um F 1 em Estoril, na semana seguinte ao GP de Portugal. Eu cobri a corrida, mas não ia ficar para os testes. O Luca viajou a Estoril e, durante o final de semana, conversamos sobre as boas perspectivas do Gil nos testes.

O cockpit do Arrows estava apertado demais para o Gil e, depois de umas poucas voltas de adaptação, o brasileiro parou no box e pediu aos mecânicos que fizessem algumas mudanças no carro. Como o intervalo seria razoável, aproveitou para esticar as pernas com uma caminhada pelo paddock. Acabou dando uma cabeçada na porta do caminhão da Footwork, levou uns pontos na cabeça e não pôde mais testar…

No ano seguinte, o Gil continuou na F 3000 e chegou à etapa de Spa (preliminar da F 1) disputando a liderança do campeonato. Já tomou um susto quando viu que o Luca estava lá para cobrir a corrida, mas procurou afastar qualquer mau pensamento. Largada com chuva, um enrosco qualquer e o Gil rodou e perdeu a tampa que cobre os amortecedores dianteiros. Isso aconteceu na primeira curva, a La Source. O Luca estava bem ali e fotografou tudo… Menos mal que o Gil continuou na corrida e terminou, se não me engano, em 5º lugar.

O Gil não foi campeão da F 3000, mas subiu para a CART em 1995. Naquele ano, cobri pela primeira vez a 500 Milhas de Indianapolis – e eu sabia que o Luca também viajaria para lá. Cheguei à cidade, fui para a pista e encontrei o Gil. Começamos a conversar, perguntei se ele já havia cruzado com o Luca e ele ficou branco: “Ele vem para cá? Você não está falando sério, né?…”.

Na corrida, adivinhe o que aconteceu? Houve um acidente monumental na primeira curva e o Gil atingiu um pedaço de carro qualquer com a roda dianteira direita. Conseguiu chegar ao box, mas não havia como reparar a suspensão danificada e a corrida dele acabou ali…

No final de 1995, quando confirmaram para o ano seguinte a realização da primeira corrida da Indy no Brasil, bati um papo com o Gil por telefone e ele me disse brincando: “Vou pagar para o Luca e a mulher dele viajarem ao Caribe, de primeira classe, no final de semana da corrida”. No fim, o Luca cobriu normalmente a corrida e a má sorte que perseguia o Gil nas corridas que tinham sua presença parece ter acabado…

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Meu amigo Livio Oricchio publicou no “Estadão” de ontem uma reportagem sobre as mulheres que correram (ou tentaram correr) na F 1. Coincidentemente, no começo da semana passada chegou às bancas a edição da “Autoesporte” com uma matéria minha na qual explico as razões pelas quais a F 1 teve em sua história tão poucas mulheres e nenhum piloto negro.

A reportagem do Livio traz várias informações interessantes, inclusive entrevistas com mulheres pilotos. Mas o que me motivou a escrever a respeito foram as declarações de Bernie Ecclestone (“As exigências orgânicas da F 1 de hoje não permitem que uma mulher venha a fazer sucesso”, uma teoria no mínimo polêmica) e outra de Nelson Piquet (“Está programado nos genes delas a necessidade de reproduzir, garantir a manada. Cabe ao homem chefiar a manada”, frases que coloco entre as mais infelizes do tricampeão).

Levantei para a Autoesporte os seguintes números: entre 1950 e 2001, a F 1 teve 761 pilotos que se inscreveram em pelo menos uma corrida. Somente cinco eram mulheres – uma porcentagem de 0,66%. Dessas cinco, somente duas (Lella Lombardi e Maria-Teresa de Filippis) conseguiram largar, com Lella sendo a única a pontuar. Nenhuma delas teve a chance de guiar um carro competitivo – mas, mesmo que tivesse, a abismal inferioridade numérica deixaria apenas como milagre a possibilidade de uma mulher vencer um GP de F 1.

Acho que isso já basta para explicar por que nenhuma mulher se destacou na categoria. Ninguém nega que o automobilismo (e a F 1 por extensão) é um esporte machista. Mas também é verdade que muito mais homens se interessam por carros do que mulheres. Conheço várias mulheres que são ótimas motoristas, mas por mera necessidade e não por prazer ou paixão pela arte. Faça uma pesquisa informal com casais e veja quantos casos existem de mulheres que gostam mais de dirigir do que seus respectivos maridos/namorados/noivos/o que for. Diante disso, o número de mulheres cuja paixão e aptidão sejam tamanhos a ponto de correr fica ainda mais reduzido. De chegar à F 1, então, nem se fala.

De duas, uma: ou se fazem competições automobilísticas com números iguais de homens e mulheres para ver quem se sai melhor, ou então separa-se definitivamente os sexos como acontece em outros esportes – e cria-se logo o “Campeonato Mundial Feminino de F 1”. Do contrário, nenhum julgamento a respeito da capacidade das mulheres no automobilismo será justo.

Só para constar: em 1982, as francesas Michele Mouton/Fabrizia Pons foram vice-campeãs mundiais de rali, literalmente deixando muitos homens comendo poeira. E, dois anos antes, a sul-africana Desirée Wilson venceu uma etapa do campeonato inglês Aurora AFX, disputado com carros de F 1, pilotando um Williams. Bem ou mal, foi a única mulher a vencer uma corrida com carros de F 1.

Boa semana,

Panda

GPTotal
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A nossa versão automobílistica do famoso "Carta ao Leitor"

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