O professor foi pescar

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O que era para ser uma coluna analisando o campeonato e outros detalhes do mundial de 2012, se tornou uma homenagem ao grande Sid Watkins.

Todos lembram aquele GP da Suécia de 1978 como o dia em que o Brabham-Ventilador BT46B de Gordon Murray aniquilou a concorrência e foi usado como moeda política para a ascensão de Bernie Ecclestone. Em troca da aposentadoria imediata do polêmico porém eficiente carro, único que podia superar os insuperáveis carros-asa da Lotus, Bernie conseguiu a representatividade que tanto almejava através da associação dos construtores, a FOCA, ascendendo ao poder que o tornou o “supremo” da F1. Meu querido amigo Manuel Blanco explicou todos os detalhes deste processo em uma coluna escrita em 2004. 

Mas nem só de business ardilosos vivia Bernie naquele fim de semana. Ele havia conhecido, tempos antes, um renomado neurocirurgião chamado Sidney, a quem convidou para ser oficialmente o médico das equipes integrantes da FOCA a partir daquela corrida em Anderstorp. O dirigente, preocupado em aumentar a segurança da F1, estava disposto a pagar 35 mil dólares por ano para ter aquele médico, que trabalhava no London Hospital, presente em todos os fins de semana de corrida. Mesmo diante daquela ninharia (uma vez que o montante não incluía despesas com transporte, estada e alimentação), o médico prontamente aceitou, trazendo consigo a certeza de que poderia fazer muito por aquele esporte que tanto admirava.

E nas 422 corridas seguintes, até novembro de 2004, lá estaria no carro médico que arranca no fim dos grids o simpático e cuidadoso Professor Sid Watkins, que mesmo aposentado continuou trabalhando até ano passado no FIA Institute for Motor Safety and Sustainability em campanhas pelo melhoramento da sgurança nas rodovias. O doutor nos deixou nesta quarta-feira (12), após recém-completados 84 anos muito bem vividos e uma incontável contribuição para a segurança do esporte.  

A Fórmula 1, como amplamente debatido, vinha de um caminho macabro de mortes e perdas estúpidas, das quais o primeiro a dar um grito de basta foi Jackie Stewart após sua traumática experiência em Spa 1966. Tudo foi ainda mais amplificado quando David Purley realizou heróicos esforços diante das câmeras de TV para tentar salvar seu companheiro Roger Williamson de um carro que havia se transformado em uma infernal bola de fogo.

As tragédias haviam começado a se intensificar na entrada da década de 1960 e, após muito tempo, o primeiro ano do esporte a motor internacional sem mortes foi 1976 – isso apenas porque Niki Lauda recusou-se a entregar-se diante de uma extrema-unção em Nürburgring. Era um tempo em que, se você fosse piloto e quisesse uma atendimento médico minimamente satisfatório, teria que pagar do próprio bolso, como faziam o próprio Niki, Carlos Reutemann e Emerson Fittipaldi.

Watkins, em seu cargo, seria um dos responsáveis pelo aprimoramento dos serviços médicos oferecidos nos circuitos, avaliando hospitais para que pudessem ser considerados aptos a receber pilotos em caso de acidente grave. “As estruturas médicas não impressionavam naqueles dias. Algumas vezes, o centro médico não passava de uma tenda”, disse certa vez em entrevista para Joe Saward. A partir de 1981, ele passou de médico da FOCA para presidente da comissão médica da antiga FISA, absorvida posteriormente pela FIA.

A atuação do doutor Watkins também se materializou no campo acadêmico. Ele foi o pioneiro em estudos e pesquisas médicas para o melhoramento da segurança dos competidores e padronizou procedimentos técnicos de atendimento e resgate em situação de acidente. Ele criou o arquivo de fichas médicas dos pilotos, com tipagem sanguínea, histórico e reações alérgicas, entre outras informações relevantes em caso de resgate ou internação. Também ajudou a introduzir os crash tests na F1 a partir de 1985, e seus estudos levaram à criação do Head And Neck Supporter (Hans), o mais recente equipamento de segurança dos pilotos.                

Daquele médico que era primeiramente visto como “polícia”, Sid logo mostrou que estava presente para ajudar e conquistou a confiança de todos, sempre com simpatia e profissionalismo exemplar. Realizou um trabalho brilhante em todos os locais em que a F1 correu, com apoio de médicos e hospitais locais, além de grande admiração conquistada junto a pilotos e equipes da F1, que sempre o reverenciavam como Professor. Suas experiências e relacionamentos o levaram a escrever três livros: Life at the Limit: Triumph and Tragedy in Formula One (1996), The Science of Safety: The Battle Against Unacceptable Risks in Motor Racing (2000) com David Tremayne, e Beyond the Limit (2002) com Jackie Stewart. 

Se indiretamente Watkins colaborou muito para o aprimoramento da segurança com seus estudos e trabalhos, diretamente é possível contabilizar o salvamento das vidas de Didier Pironi (Hockenheim 1982), Nelson Piquet (San Marino 1987), Gerhard Berger (Imola 1989), Martin Donnely (Jerez 1990), Eric Comas (Spa 1992), Rubens Barrichello (Imola 1994), Mika Häkkinen (Adelaide 1995) em atendimento de primeiros socorros. 

Evidentemente, mortes aconteceram durante o trabalho de Watkins, e nenhum fim de semana seria mais penoso para o médico do que Imola 1994. Após a morte de Ratzenberger, no sábado, Watkins, de fato, falou para Senna não correr. “Você já foi campeão do mundo três vezes e é obviamente o piloto mais rápido. Desista e nós iremos pescar juntos”. Os desdobramentos do dia seguinte seriam dolorosos demais e impediram que ambos, que eram muito próximos, tivessem a oportunidade de concretizar esse convite.

Quase duas décadas depois, o piloto mais rápido e o professor podem finalmente pescar juntos, no que meus olhos ficam marejados ao escrever este parágrafo e o nó na garganta torna-se inevitável. Como essa gente faz falta. Não há distanciamento jornalístico que impeça a emoção do momento. 

Eric Sidney Waktins, Cavaleiro do Império Britânico (O.B.E.), Médico (M.D.), Doutor em Ciência (D.Sc.) e Membro do Colégio Real dos Cirurgiões (F.R.C.S.), deixa a esposa Susan, quatro filhos, duas filhas e uma legião de admiradores de sua competência e profissionalismo. Inclusive deste que humildemente vos escreve. 

Godspeed dear Professor. And have a good fishing.

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

6 Comments

  1. Lucas Giavoni disse:

    Agradeço muitíssimo os comentários, meus amigos.

    Em cada momento, o microcosmo do esporte a motor pode nos trazer sensações e emoções distintas – basta a nós permitir que nossa mente e sentidos fiquem mais aguçados.

    A perda do Professor Sid é momento de profunda tristeza, pois significa o fim da vida terrena de uma pessoa especial, que representou também um período especial do esporte a motor, em que, vejam só a ironia, nos fez derrubar cada vez menos lágrimas de tristeza. É incalculável o número de vidas que este homem salvou, dentro do esporte que tanto amamos. E seu legado é permanente.

    A última vez que eu havia passado por isto foi quando precisei escrever sobre a morte de Dan Wheldon, um competidor feroz, de personalidade irreverente e brincalhona, que perdeu a vida meses depois de nos oferecer uma vitória fantástica em Indianápolis, pista em que ele pilotava demais.

    Uma das músicas mais belas e tristes que conheço é “Empty Garden”, composta por Elton John em 1982 em homenagem a John Lennon, que tinha deixado este mundo dois anos antes em uma partida tão repentina quanto brutal. Elton compara a chocante perda do amigo a um jardim vazio, em que nada mais cresce por lá, mas que antes era cuidada por um bom jardineiro – uma alusão ao Madison Square Garden, ginásio de Nova Iorque que já recebeu shows deles. No verso mais tocante, Elton passa o dia a bater à porta de “Johnny”, perguntando, em vão, se ele pode sair para tocarem juntos. No clipe da música, essa porta é igual a do edifício Dakota, casa de Lennon na Big Apple.

    Minha lista de lendas vivas, heróis que se destacam pelo compromisso, dedicação, personalidade e carisma, está cada vez menor. Ao lembrar da música e deste momento, volta em mim o nó na garganta e as imagens se borram e desfocam pela água…

    O jardim está ficando vazio.

    Abraços a todos.

    Lucas Giavoni

  2. Tocante, meu irmão. Um registro digno do personagem, em informação e emoção.
    Abraço!

  3. Eduardo Trevisan disse:

    Já chorei ouvindo “O Homem Velho” de Caetano hoje, acordei triste porque seria o aniversário de 81 anos do meu pai, que se foi há 4 anos.

    Agora li esse texto todo com nó na garganta, me segurando por estar no trabalho, e tive que sair da mesa para desabar no banheiro ao ler o fatídico parágrafo.

    Obrigado Lucas, foi uma bela homenagem.

  4. Mauro Santana disse:

    Bela coluna, amigo Lucas!

    Também estou bastante triste, e também me deu um nó na garganta ao ler o seu ultimo parágrafo.

    E sem duvida, como essa gente faz falta!

    A alguns anos atrás eu perdi a oportunidade de comprar o livro Viver nos Limites de 1996 pela bagatela de R$ 30,00, e hoje, passa dos R$ 100,00.

    Alguém teria ele em PDF, gostaria muito de poder lê-lo.

    Obrigado Prof. Sid por tudo o que o senhor fez, para que este esporte que tanto amamos, e que em muitos momentos chamamos de esporte estúpido, pudesse nos trazer muito mais alegrias do que tristezas.

    O seu legado será eterno.

    Abraço a todos!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  5. Fernando Marques disse:

    Que o Professor Sid Waktins descanse em paz … o Circo da Formula 1 e toda a sua historia devem muito a ele …

    Fernando MArques
    Niterói RJ

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